Diários de classe

Professores compartilham seus desafios e aprendizados durante a pandemia, e ajudam a caminhar para o futuro

Cristiane Capuchinho Colaboração para Ecoa, de Paris (FRA)

Nos corredores da escola, é costumeiro ouvir que a programação só começa depois do Carnaval. Em 2020, foi justamente três semanas após o Carnaval que tudo parou, ou melhor, mudou. Não mais que de repente, os 2,2 milhões de professores da educação básica do Brasil tiveram de ressignificar seu trabalho.

Ecoa conversou com professores que trabalham em diferentes etapas de ensino e realidades, com estudantes de 6 ou 17 anos, vivendo em metrópoles ou pequenos vilarejos do interior, com acesso à internet ou sem acesso a meios essenciais de vida. O ano letivo de 2020 vai ficar marcado na vida docente pelas adaptações.

No cenário extremo a que a educação foi exposta, problemas sistêmicos foram evidenciados, mas aprendizados e inovações também floresceram.

Este é um diário de classe de seis professores durante a pandemia da Covid-19. A partir dele, esperamos identificar aprendizados e caminhos para a educação do futuro.

Quando soube do fechamento das escolas, Mariana Soares, 38, teve medo de perder os laços com seus alunos. A professora de uma escola paulistana comprou "um chip de celular só para manter contato com as crianças": 26 alunos entre 7 e 8 anos.

Esse era o começo de uma adaptação às aulas remotas. "No começo apanhei muito", reconhece. Em abril, a Prefeitura de São Paulo disponibilizou uma plataforma e determinou que as atividades deveriam ser retomadas por meio do aplicativo. A ferramenta nova, as atividades enviadas à distância para crianças pequenas, as correções, a dificuldade para conseguir entrar em contato com os alunos, e ainda uma pandemia no país. "Tive muita ansiedade, insônia."

O relato de Mariana é o retrato de 37% dos professores paulistas, que declararam algum comprometimento à saúde mental no período em uma pesquisa feita pelo Instituto de Estudos Avançados da USP.

Trabalhando em uma escola próxima à comunidade de Paraisópolis, a educadora sabia que precisava ter um adulto próximo para que as crianças tivessem acesso ao celular. Deixou seu horário vespertino e passou a ministrar encontros por volta das 19h, "no horário que os pais estão em casa".

Durante o dia criava e enviava novas tarefas e fazia correções. "A mãe de um aluno me falou 'não estou dando conta', os professores enviavam muita atividade, todo dia, cada uma de um jeito. Ela não tinha preparo, e ainda por cima trabalha o dia inteiro", comenta.

Então, algo aconteceu. Mariana dividiu os problemas com uma colega, educadora da mesma série escolar. "Decidimos que era preciso uma linguagem que as crianças entendessem sozinhas. Ela, que é muito experiente, teve a ideia de um roteiro temático", explica. A partir de então, passaram a coordenar todas as atividades ao longo da semana em torno de um mesmo assunto, organizando atividades de diferentes disciplinas. "Esse trabalho conjunto foi inédito para mim, e eu dou aula há 15 anos. Foi um ganho muito grande compartilhar com uma colega a rotina."

O cronograma, criado em dupla, é publicado no WhatsApp da sala e na plataforma da prefeitura toda semana. Dos 26 alunos, oito têm acesso à plataforma "e agora já acessam sozinho, aprenderam como fazer e se viram. Dão um banho na gente". Outros sete fazem as atividades pelo WhatsApp, "tiram foto do caderno e me mandam. Às vezes mandam áudio porque não entenderam alguma coisa ou para contar coisas da vida", diz, entre risadas. "Viraram meus amigos."

Com as aulas remotas, as crianças continuaram a aprender, o conteúdo e também a usar a ferramenta ou escrever com ajuda de um teclado. A professora, no entanto, se preocupa. "É visível a diferença entre os alunos que têm acesso ao aplicativo e as [que estão] só no Whatsapp. As que entram na plataforma tiveram mais práticas de escrita, mais leitura."

Os outros 11 alunos que não acompanham as atividades são casos mais complicados, segundo Mariana, famílias com sérias dificuldades financeiras, sem emprego, às vezes sem celular. Sem acesso à internet, essas crianças ficaram sem ano letivo.

O panorama de acesso à educação mostra que os lares mais pobres foram os mais afetados neste ano. A pesquisa Pnad Covid, do IBGE, em domicílios com rendimento per capita de até meio salário mínimo, mostra que 21,5% dos estudantes não tiveram atividades escolares em agosto. Já entre os domicílios com rendimento de quatro ou mais salários mínimos por pessoa, o percentual foi de 7,9%.

"Vai ser preciso fazer um trabalho específico com eles. Eu não queria aula de reforço para não punir essa criança. Ela já não teve acesso, e ter aulas a mais é quase ter uma punição por não ter tido direito. Precisa de um trabalho específico dentro da sala de aula, diferente dos outros", opina.

Até março, a rotina de Lucas Fonceca, 27, era acordar às 4h30, sair com seu carro para buscar colegas no centro de Diamantina (MG) e seguir para a escola rural em que dá aulas de história.

O vilarejo fica a 22 km do centro da cidade e conta com 1,5 mil habitantes, de acordo com o IBGE. A escola estadual do campo recebe também estudantes de sítios no entorno, que são levados pelo transporte escolar. Nessa unidade, Lucas é o professor de história, dá aulas para todas as turmas de ensino fundamental e médio.

Por conta da pandemia, a rede estadual de Minas Gerais suspendeu as aulas em meados de março e em maio adotou um modelo de aulas virtuais com aplicativo e cursos televisionados. A escola dele, para abrandar as dificuldades de acesso, recebeu apostilas para distribuir entre os alunos e os professores têm enviado atividades complementares.

A apostila distribuída traz resumos com o conteúdo das disciplinas e indica leituras de aprofundamento disponíveis online. Contudo, a internet não é uma realidade para todos. Enquanto 83,8% dos domicílios urbanos tinham acesso online, nas áreas rurais o índice era de 49,2% em 2018, segundo a última pesquisa Pnad sobre acesso à tecnologia.

De seus 115 alunos, apenas 49 estão conectados com os grupos da escola ou diretamente com o professor de história pelo WhatsApp. "Eles usavam a internet na escola", completa o professor.

A pesquisa "Trabalho Docente em tempos de Pandemia", feita pela UFMG (Universidade Federal de Minas Gerais) com 15,6 mil professores de escola pública, aponta que 37,5% dos docentes nesta etapa reportam que os alunos não têm acesso aos recursos necessários para acompanhar as aulas.

A solução encontrada por ele para melhorar o material acessado por seus alunos foi a de fazer resumos curtos com conteúdo complementar. "Acho muito complicado o 'conteúdo' ser apenas três links que nem todos tem o direito de acessar. Então, por isso, eu escrevo para eles um resumo (até bastante informal), sobre os conteúdos da semana. Não dá pra escrever coisas muito grandes e abordar o tema de forma mais completa porque eles simplesmente não leem", explica.

Fonseca se inquieta pelos que não estão seguindo as atividades, apenas seis ou sete alunos de cada turma enviam de volta as tarefas completas.

"As minhas atividades com educação física são jogos, brincadeiras, danças. E como fazer isso ser uma atividade escrita?" Esse foi o problema que teve de enfrentar Rosiani Machado, 50. A melhor forma que a escola da região metropolitana de Curitiba em que ela trabalha encontrou para manter o ano letivo foi usar atividades impressas que são entregues na escola uma vez por semana.

"Tive que pesquisar muito, ler muito. A gente teve que se reinventar e todos os dias estamos tendo que nos reinventar, descobrir como fazer", lembra. Adaptação e aprendizado são as palavras mais utilizadas pelos professores para descrever o ano letivo de 2020.

Com cerca de 300 alunos do 1° ao 5° ano do ensino fundamental, ela criou atividades envolvendo a família, com roteiros que incluem atividades motoras, inclusivas e até música. Para substituir a festa junina da escola, enviou uma orientação para fazer a quadrilha dentro de casa em junho, atividade documentada em fotos e vídeos pelas famílias.

"A cada final da atividade, eu deixo um espaço para que os pais se manifestem. E tive um retorno muito bom. Disseram que transformaram a sala da casa em um arraial", conta satisfeita.

A troca de informações com os pais é fundamental para o sucesso das atividades, e com isso os laços entre famílias e escola se tornaram mais fortes no período.

O resultado, no entanto, é desigual. Em muitas casas, a falta de disponibilidade de um adulto dificulta o trabalho. Em agosto, Rosiani ficou conhecida ao compartilhar em suas redes sociais o recado de uma aluna justificando que não fez a atividade por não ter quem a ajudasse.

Neste momento, as diferenças das realidades da família batem à porta da educação: "Tem pai que tem que sair para trabalhar, criança que fica com a vó ou até com o vizinho para os pais trabalharem".

"O papel do professor é fundamental, mas não é o único fator. A rede está dando apoio? O aluno tem condições de habitação? Tem recursos? Os dados do IBGE mostram que uma parte da população compartilha um cômodo entre várias pessoas, quais as condições de estudar desta criança? Isso tudo foi agravado pela educação remota na pandemia", considera Juliana Souza, pesquisadora da Faculdade de Educação da UFMG.

Para Rosiani, essa invasão do cotidiano das famílias na escola deve servir de aprendizado. "A gente precisa considerar essa criança como um todo, tudo o que está no entorno dela, para entender o que é que ela precisa para aprender".

Na escola em que dá aulas na comunidade da Maré, no Rio, o professor André Gomes, 50, já tinha integrado as tecnologias ao seu cotidiano de trabalho com alunos adolescentes. "Eu tinha de lidar com estudantes que não param de olhar o celular, então comecei a fazer propostas usando isso."

Ele conta que, nas aulas de sociologia, história ou de projeto de vida, fez algumas vezes propostas de temas em que os alunos deveriam fazer uma roda de conversa e gravar a discussão como quisessem. "Funciona bem. Os garotos ficam animadíssimos, saem pela escola filmando."

A experiência deveria ser um facilitador para a passagem da educação presencial à remota neste ano letivo, mas a história não foi bem assim. Das suas turmas de 35 a 40 alunos, cerca de 6 ou 7 participam ativamente das tarefas desde que a rede passou a dar aulas pela plataforma online.

Para manter o interesse dos estudantes, a preocupação do educador em tornar os temas de sociologia e história mais próximos da realidade dos estudantes foi redobrado neste ano. "Comecei a esmiuçar os textos e ficar mais atento à realidade para estabelecer pontes com o que estava em volta deles. Por exemplo, as questões do racismo que estão explodindo, o feminicídio, as práticas governamentais em relação à pandemia", lista.

As trocas têm sido por escrito na plataforma ou pelo WhatsApp, aulas online não são viáveis. "Vou ser bem honesto, eu não teria um plano de internet suficiente para dar horas de aula em vídeo. Seria muito caro". Na pesquisa feita pela UFMG, um quarto dos docentes afirma usar o próprio plano de dados do celular para dar suas aulas.

Além da dificuldade de recursos tecnológicos, o número de turmas e assuntos diferentes é outro complicador. Como professor de sociologia e de história do ensino médio, para ter uma remuneração adequada, ele dá aulas para 24 turmas em quatro escolas diferentes.

O tempo economizado no transporte da educação presencial se perde na multiplicação de tarefas. "Eu acabo trabalhando muito, muito mais, em dobro. Tem que mexer com as tecnologias, reunir os textos, organizar as atividades, postar as atividades, descobrir os mecanismos da ferramenta. E ainda tem todas as tarefas domésticas porque estou em casa o tempo todo."

A descrição de André ecoa a pesquisa sobre trabalho docente, 8 em cada 10 professores relataram dedicar número maior de horas para a educação remota.

Apesar dos problemas, ele é um entusiasta das tecnologias. "A gente tem que trabalhar com as plataformas, integrar as novas tecnologias, mas temos que melhorar as políticas públicas de acesso."

Quatro em cada dez professores dizem que a participação de seus alunos caiu drasticamente neste ano letivo, por conta das aulas remotas. Essa não é a experiência de Marlon Barros, 25, professor de uma escola de ensino médio em Fortaleza.

Desde que migrou suas aulas de geografia para a plataforma online, ele diz contar com a participação nas atividades de cerca de 80% de seus alunos. A explicação, segundo Marlon, está no trabalho de professores diretores de turma. O cargo, criado na rede cearense há mais de dez anos, define professores nomeados para fazer a ponte entre escola e família e acompanhar a participação dos estudantes.

"Sempre que um aluno deixa de participar das atividades, os PDTs vão falar com ele, com os pais. Isso funciona muito bem", explica o docente. Em exames como a Prova Brasil, a escola chega a ter participação de 100% dos estudantes, uma exceção no cenário nacional.

Ainda que não majoritária, havia sim uma parte dos alunos que não acompanhava por falta de acesso à internet. A estratégia foi usar as ondas do rádio em uma parceria com uma rádio local AM.

O tempo de transmissão é um limitador. São duas horas semanais compartilhadas entre três professores de disciplinas diferentes, que resolvem atividades e destrincham questões do Enem durante a transmissão, mas ele considera bem-sucedida.

"É uma forma de democratização da educação, para os estudantes que têm dificuldade de acesso à internet", avalia. "Nossos alunos acompanham, mas também tem outros estudantes e mesmo os pais que podem ouvir."

Professora de uma escola privada e de um cursinho popular na Ilha do Mosqueiro, a 87 km de Belém, Paula Cruz, 35, vive dois anos letivos ainda mais distantes um do outro. Na rede particular, deu aulas online ao longo de todo o primeiro semestre e voltou à escola em um modelo híbrido, com cursos para estudantes presentes e outros que acompanham à distância.

No curso popular de preparação para o vestibular, suas aulas de biologia viraram atividades e vídeos enviados pelo WhatsApp, até a volta à sala de aula.

Para os dois públicos, ela teve de lidar com dificuldade de acesso à internet. No entanto, a restrição entre os 300 alunos dela é bem diferente.

No cursinho popular, os professores distribuíram apostilas, mas muitos alunos perderam a motivação. "Eu tenho aluno de comunidade quilombola, de comunidades [em situação de vulnerabilidade]. Alguns não têm dinheiro para colocar crédito em um plano de dados melhor, outros estão em lugares em que a internet não chega. Temos aqui o [programa] Navega Pará, mas são só três checkpoints [pontos de acesso]." Mosqueiro tem uma comunidade de 28 mil pessoas, segundo o IBGE.

Na escola privada, muitos pais não tinham internet suficiente para assistir às aulas no Youtube, apenas os planos de dados de celular com WhatsApp liberado. "Tive que aprender mais de edição, pegar esta aula converter em arquivo menor e mandar pelo celular. Mas aos poucos os pais foram se adaptando ao material necessário", afirma.

Algumas das experiências de laboratório que daria em suas aulas de biologia foram transformadas em atividades que os alunos faziam em casa e filmavam. O uso do vídeo foi um ganho em sua experiência.

A unidade teve de fazer melhorias, disponibilizou mais computadores para os professores trabalharem, colocou webcam em todas as salas de aula e ampliou o acesso à internet. "Caminhamos agora de uma vez para o ensino híbrido. Sabíamos que isso ia chegar, mas a pandemia acelerou esse processo."

Para onde vamos?

Há uma década, a OCDE (Organização de Cooperação para o Desenvolvimento Econômico) escreve relatórios em que indica o ensino híbrido, mistura de atividades presenciais com tarefas virtuais, como forma de atualização da educação.

Em outros, a organização aponta a necessidade de enfrentar a desigualdade social nas escolas, ampliando as condições de acesso dos alunos mais pobres. A fixação dos professores em uma única escola e o investimento em treinamento são também indicações para melhorar as condições da educação brasileira.

Em seu relatório sobre os impactos da pandemia sobre a educação, a OCDE diz "uma mudança real muitas vezes ocorre em crises profundas, e este momento traz a possibilidade de não retornarmos ao status quo quando as coisas voltarem ao 'normal'. Embora essa crise tenha implicações profundamente disruptivas, inclusive para a educação, ela não tem resultados predeterminados. Será a natureza de nossas respostas coletivas e sistêmicas que determinará como seremos impactados".

As experiências dos milhões de professores devem ajudar a pautar as respostas do amanhã.

+ Ciclo de Educação

  • Causadores: Felipe Castanhari

    "É muito injusto comparar o meu trabalho com o de um professor. Eles têm uma quantidade gigantesca de conteúdo para entregar com pouquíssimo tempo para preparar esse material. Eu tenho quatro meses pra fazer um vídeo sobre um conteúdo. Quando um professor vai ter esse tempo para preparar um material?(...)"

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