O primeiro choque da vida universitária para o então calouro Jorge Gauthier, 33, viria no final de 2004, antes mesmo dos trotes ou da primeira semana de aulas do curso de Comunicação Social/Jornalismo. No momento de efetivar a matrícula, semanas após a aprovação no vestibular, ele soube que as aulas de sua turma começariam apenas no segundo semestre de 2005 -- uma outra turma de 1º ano de Comunicação, porém, teria aulas já no primeiro semestre.
O ano de 2005 foi o primeiro de cotas para diversos cursos da UFBA (Universidade Federal da Bahia), instituição em que o filho do motorista João Demóstenes e da professora do ensino fundamental Evandir Andrade estreava. Gaultier, a exemplo da maior parte de sua turma, havia sido beneficiado pela política de cotas.
No começo do semestre, novo choque. "Eu entrei na sala de aula, e vi, no fundo dela, alguns alunos conversando compulsivamente em semicírculo. Uma colega me disse que eram 'os ricos', ou os não-cotistas, que haviam se conhecido na fila da matrícula, meses antes, e, como tinham acesso à internet, criaram comunidade no Orkut para se enturmar e para combinar passeios de barco no [bairro do] Rio Vermelho. Estava totalmente integrados. Eu nem computador em casa tinha."
Com uma espécie de cisão dentro da sala, o jovem encontrou no grupo de cotistas, que carinhosamente se batizou de "Povo do Gueto", suas relações acadêmicas mais afetivas. "Criou-se uma união entre a gente, porque aquilo era um terremoto. O jeito era se unir para se fortalecer".
Ele observa que o bom desempenho acadêmico dele e de outros amigos cotistas foi o que ajudou a impor respeito entre colegas de turma que acreditavam, a exemplo de alguns professores, na perda de qualidade do curso, com o ingresso via cotas.
"A medida que o tempo foi passando, alguns colegas começaram a entender que aquilo não era 'culpa' nossa. E como foram entrando mais e mais cotistas, nos semestres seguintes, e a faculdade foi empretecendo, as coisas foram ficando menos difíceis", diz.
À época, Gauthier tinha dois professores negros na Facom, a Faculdade de Comunicação. "Um deles era cientista político, pós-doutor até nos quintos dos infernos, uma coisa impressionante", diverte-se. "Esse professor, negro, passava e olhava todos com o nariz para o alto, com um ar de sabia que era melhor do que os que estavam ali. Eu via aquilo e dizia: 'um dia, quero andar assim'".
O estudante precisou trabalhar desde o começo do curso para se bancar e chegou a obter, pouco antes da formatura, uma bolsa de iniciação científica graças ao empenho pessoal de um professor. Assim que surgiu um processo seletivo para o jornal Correio, um dos principais de Salvador, tentou uma das dez vagas e conseguiu - dentre cerca de 7 mil candidatos, salienta.
Ele segue no jornal até hoje - começou como estagiário, cavou outras oportunidades e agora concilia o posto de coordenador de assuntos digitais e engajamento com um canal focado no universo LGBTQIA+.
"Fui para o jornalismo de gênero e para a militância LGBT e acredito que trago a minha visão de mundo adaptada e formatada na universidade — especialmente a de perceber de fato que, para você fazer qualquer transformação, precisa de informação e de estudo para isso", afirma. "Não vou acabar com o preconceito dos outros, mas faço pelo menos com que os preconceituosos tenham consciência do preconceito deles, assim como eu fiz com meus colegas na universidade - muitos não tinham a percepção de que algumas atitudes eram racistas, mas acredito que a gente pode auxiliar as transformações sociais também se fortalecendo e buscando estratégias para o enfrentamento".
Um dos grandes incentivadores do jovem, o pai faleceu no começo de 2007. Deu tempo de ver o filho acessar a sonhada carreira na universidade federal. "Imprimi o resultado da aprovação em uma lanhouse e saí gritando aos meus pais e minha irmã que eu tinha passado. Meu pai olhou para mim e disse: 'Você vai ser feliz como eu nunca fui.' Ele tinha estudado até o quinto ano do fundamental", relata, emocionado.
Desde 2009, o jornalista pesquisa a história de Irmã Dulce, canonizada no ano passado pelo Vaticano. Em 2014, ele lançou o livro "Irmã Dulce: os milagres pela fé", por meio do qual ouviu milhares de relatos de devotos da santa que nasceu e morreu em Salvador.
Se tem algum conselho aos cotistas que chegaram depois dele, ou aos que ainda vão chegar?
"Estude, porque, infelizmente, temos que provar que somos bons sempre. Se não for suficiente, estude o triplo - e, junto a isso, levante a cabeça: apesar do acesso pelas cotas, você tem os mesmos direitos de quem não é cotista. Os bancos são os mesmos", define.