Em 'Solitária', há muitos ecos de episódios da nossa história recente, como o caso Miguel e de domésticas que foram libertadas após viverem décadas em situação análoga à escravidão. Como a realidade alimenta sua literatura?
Meu projeto literário quer investigar a história que é mal contada ou apagada. A literatura pode ajudar a refazer esses caminhos, dentro daquilo que diz a [escritora e acadêmica norte-americana] Saydia Hartman sobre a fabulação crítica. É um recurso que a gente pode usar para tentar fabular essas vidas e pensar criticamente sobre o passado. E dentro disso está o presente: para que investigar o passado se não for para tentar construir a vida, a sociedade, enfim, as existências em outras bases?
O 'Solitária' na verdade é uma consequência dos outros três livros, que têm essa pegada histórica. Eu já tinha muitas informações [históricas] por conta da pesquisa dos livros anteriores, então me restava mergulhar nesse presente do trabalho análogo à escravidão, da supressão de direitos, da subalternidade.
É aí que entram a observação da realidade e a minha veia jornalística. A gente precisa realmente tentar esgotar ao máximo as informações com alguma comprovação, mesmo que seja para criar uma ficção em cima delas, para que elas não subvertam, não mintam, não enganem o leitor e principalmente para que não traiam a história. Trair a história é uma preocupação minha, então tento sempre pesquisar muito bem.
Você também coloca muito da história da sua família nos seus livros, como é o caso de 'Água de Barrela' e do próprio 'Solitária'. Pode falar um pouco sobre essa história?
Isso tem a ver com o que eu falei no início sobre essa história negada ou apagada. Eu acho que não tem uma pessoa negra no Brasil que não tenha essa curiosidade: de onde será que eu vim, de onde vieram os meus?
A partir dessa vontade de saber mais, eu fui investigando, fui descobrindo que talvez fosse possível refazer alguns passos. Senti que essa história talvez fosse a história de muitas pessoas no Brasil. E eu tenho a sorte de que a minha família é muito bem documentada: a gente tem imagens, documentos, história oral, muita coisa. Falei: bom, então vou usar isso aqui para alguma coisa. Como dizia a [escritora norte-americana] Toni Morrison, eu queria ler esse livro e como não existia fui escrever.