SE O QUARTINHO FALASSE

Vencedora do Jabuti em 2022, Eliana Alves Cruz virou 'febre' em escolas com debate sobre trabalho doméstico

Juliana Domingos de Lima De Ecoa, em São Paulo (SP) Eduardo Anizelli/ Folhapress

Desde 'Água de Barrela', seu primeiro romance publicado em 2016, Eliana Alves Cruz tem se dedicado a 'investigar a história mal contada ou apagada' da população negra no Brasil a partir da escravidão.

Depois de publicar três romances históricos aclamados, narrados a partir de um olhar afrocêntrico, a escritora, roteirista e jornalista lançou em 2022 o livro de contos 'A Vestida' - pelo qual foi premiada com o Jabuti - e o romance 'Solitária', situado num presente transbordante do passado escravocrata.

Protagonizado por Eunice, uma trabalhadora doméstica, e sua filha, Mabel, que habitam o quarto de empregada de uma família rica em um condomínio de luxo, o livro narra - ora na voz de Eunice, ora na de Mabel, ora na perspectiva de espaços como o próprio quartinho - as vidas entrelaçadas dos que servem e são servidos, recriando tragédias reais.

Com seu teor contemporâneo e urgente, o livro tem gerado identificação em leitores e reverberado até em escolas de elite, onde virou alvo de discussão.

A escritora falou a Ecoa sobre as transformações trazidas por seus livros e como a literatura pode ajudar a imaginar vidas apagadas pela história.

Eduardo Anizelli/ Folhapress

SALA DE AULA

ECOA - A lei que estabeleceu o ensino de história e cultura afro-brasileira nas escolas acaba de completar 20 anos. O que você sabe de experiências dos seus livros sendo trabalhados em sala de aula?

Eliana Alves Cruz - São centenas. Isso é motivo de orgulho. Outro dia eu recebi uma foto lindíssima de uma turma, todas meninas, que estudam na zona rural do recôncavo [baiano] - são descendentes daquelas mulheres do 'Água de Barrela' -, com o livro na mão. Isso é muita revolução! Se você voltar cinco, seis gerações daquelas garotas, vai bater na escravidão. E elas estão lá com o meu livro na mão estudando. Então isso é muita coisa.

Tem um monte de escolas que usam [meus livros]. É uma parceria, a gente cria de um lado, a educação utiliza o que a gente produz de outro e aí a gente vai formando jovens que têm uma reflexão e uma visão diferente sobre o mundo e a sociedade em que vivem.

Tive uma experiência absolutamente fantástica agora no final de 2022 com o 'Solitária': um professor num colégio na Barra da Tijuca, onde os alunos são todos de classe média alta, 99% brancos na turma, me chamou para visitar a escola e quando cheguei lá foi uma grata surpresa. Ele falou que o livro virou uma febre na escola. Os alunos leram, a maioria leu com os pais e vieram para o encontro comigo com um monte de questionamentos.

Uma menina fez uma pergunta que eu achei incrível: 'O que eu posso fazer com relação a essa realidade?'

Essa chamada de responsabilidade para ela é absolutamente fantástica, porque na geração dos pais dela tem um monte de gente que usufruiu de todos os privilégios por séculos e acha que não tem responsabilidade nenhuma com aquilo.

Se no meu tempo de estudante eu tivesse lido qualquer coisa semelhante, talvez eu fosse uma pessoa diferente, talvez tivesse acelerado processos, pensado sobre determinadas coisas muito antes. Isso me adiantaria a vida em várias coisas e trabalharia minha autoestima muito mais cedo, de uma forma muito menos dolorosa.

Eliana Alves Cruz, escritora

Fora das escolas, quais outras reações ao livro chegaram até você?

Muitas pessoas que são a Mabel [personagem que é filha da empregada Eunice] me escrevem: 'Comprei para dar para minha mãe, eu não entendia por que ela não se livrava daquela família, mas quando eu li entendi a questão dela e começamos a conversar sobre isso'.

Essa é outra coisa que não tem preço, promover esse tipo de encontro de gerações, esse tipo de olhar mais generoso com quem que propiciou aos mais jovens estarem num momento diferente. Ela talvez esteja ainda presa a essa chantagem emocional, mas a filha já não está e se não está é por causa dela. Tem que fazer essa roda girar, e é bem bonito isso. A literatura remexe as vidas.

Lucas Seixas Lucas Seixas

ÁLBUM DE FAMÍLIA

Em 'Solitária', há muitos ecos de episódios da nossa história recente, como o caso Miguel e de domésticas que foram libertadas após viverem décadas em situação análoga à escravidão. Como a realidade alimenta sua literatura?

Meu projeto literário quer investigar a história que é mal contada ou apagada. A literatura pode ajudar a refazer esses caminhos, dentro daquilo que diz a [escritora e acadêmica norte-americana] Saydia Hartman sobre a fabulação crítica. É um recurso que a gente pode usar para tentar fabular essas vidas e pensar criticamente sobre o passado. E dentro disso está o presente: para que investigar o passado se não for para tentar construir a vida, a sociedade, enfim, as existências em outras bases?

O 'Solitária' na verdade é uma consequência dos outros três livros, que têm essa pegada histórica. Eu já tinha muitas informações [históricas] por conta da pesquisa dos livros anteriores, então me restava mergulhar nesse presente do trabalho análogo à escravidão, da supressão de direitos, da subalternidade.

É aí que entram a observação da realidade e a minha veia jornalística. A gente precisa realmente tentar esgotar ao máximo as informações com alguma comprovação, mesmo que seja para criar uma ficção em cima delas, para que elas não subvertam, não mintam, não enganem o leitor e principalmente para que não traiam a história. Trair a história é uma preocupação minha, então tento sempre pesquisar muito bem.

Você também coloca muito da história da sua família nos seus livros, como é o caso de 'Água de Barrela' e do próprio 'Solitária'. Pode falar um pouco sobre essa história?

Isso tem a ver com o que eu falei no início sobre essa história negada ou apagada. Eu acho que não tem uma pessoa negra no Brasil que não tenha essa curiosidade: de onde será que eu vim, de onde vieram os meus?

A partir dessa vontade de saber mais, eu fui investigando, fui descobrindo que talvez fosse possível refazer alguns passos. Senti que essa história talvez fosse a história de muitas pessoas no Brasil. E eu tenho a sorte de que a minha família é muito bem documentada: a gente tem imagens, documentos, história oral, muita coisa. Falei: bom, então vou usar isso aqui para alguma coisa. Como dizia a [escritora norte-americana] Toni Morrison, eu queria ler esse livro e como não existia fui escrever.

Eduardo Anizelli/ Folhapress Eduardo Anizelli/ Folhapress

QUARTO DE EMPREGADA

O que aconteceria no Brasil se os quartinhos de empregada pudessem 'falar'?

A gente veria que não tem escritor, escritora, roteirista nesse país que supere a capacidade que a elite tem de ser cruel, perversa e egoísta. Seria um motivo de muita vergonha para muita gente, de muita negação também para uma determinada parcela. A gente tem uma arquitetura muito conivente com o nosso passado escravocrata. A gente vê a reprodução nos apartamentos e nas casas de classe média da mesma lógica de engenhos de açúcar e café, ou seja, tem uma casa grande que é a área social da casa e toda uma senzala para trás, quartos muito pequenos, tudo próximo da cozinha, da lavanderia, das lixeiras, coisas que beiram a insalubridade. É uma arquitetura que não humaniza as pessoas que trabalham, que são majoritariamente pretas e que a sociedade brasileira, tão racista, acha que aguentam tudo. O que a gente ouviria do quartinho é isso que a gente tenta esconder o tempo todo.

Eu não esperava que esse livro tivesse essa repercussão e eu acho que ele funcionou porque o meu objetivo primeiro era que essas pessoas que foram e são ainda empregadas domésticas ou filhas de empregadas domésticas lessem o livro. Por isso ele é tão conciso também, para que as pessoas não se intimidem com o tamanho.

Se não for para incomodar, a gente nem sai de casa!

Eliana Alves Cruz, escritora

Em 2022, você foi premiada com o Jabuti pela primeira vez. Também foi a primeira vez em que a Flip homenageou uma escritora negra, Maria Firmina dos Reis. Como você vê o momento atual em relação ao reconhecimento da literatura negra?

É um momento de reparação, de reconhecimento de gerações. Para quem está desavisado, parece que de repente começou a aparecer um monte de escritora preta, que é uma moda. Não é moda, é algo ancestral.

A nossa primeira romancista foi uma mulher negra. O nosso maior romancista foi um homem negro, o nosso primeiro editor foi um homem negro. A população negra está na gênese da literatura brasileira, mas houve uma ruptura em que a gente foi afastado desse mundo que é muito caro, no sentido de querido, para as elites, porque é onde se assenta a língua, a cultura e o poder.

É uma disputa e não deveria ser, deveriam ser narrativas que se complementam para a construção de uma identidade nacional.

Não é possível um país com uma diversidade que o Brasil tem estar sendo contado por um único perfil de pessoa! A esmagadora maioria dos romances publicados no Brasil e também dos personagens principais são homens brancos, sudestinos, de meia-idade, com ensino superior.

Ainda hoje é assim. Então eu vejo como um momento de retomada de um caminho que foi interrompido.

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