Luzes que brilham

Emicida quer inspirar geração de futuras potências negras e construir caminho para a transformação do Brasil

Paula Rodrigues De Ecoa, em São Paulo Jeff Delgado/Divulgação

Era começo de 2018 e uma frase escrita na porta da geladeira da casa de Dona Jacira falava sobre sonhos impossíveis que haviam sido prometidos ali anos atrás. Rindo, quando perguntada, ela respondeu que era coisa do Leandro, um de seus quatro filhos. Quais seriam esses sonhos? "Os de comer mesmo, minha filha, tipo de padaria. É que falei que ia fazer para ele e acabei não fazendo", ela contaria.

Leandro — mas pode chamar de Emicida - subiria no palco do Theatro Municipal no ano seguinte, em 27 de novembro, para realizar dois shows de estreia de AmarElo, terceiro álbum de estúdio.

Ali, continuaria a falar de sonhos, só que dessa vez com seriedade, relembrando a todos não apenas da importância de levar um show de rap para uma das maiores Casas de Ópera do país, mas do que isso representou para cada pessoa que o assistia. O resultado está registrado no documentário "AmarElo - É tudo para ontem", que estreia hoje (8) na Netflix.

"O documentário para mim é um convite. Para quem esteve lá, ele também vai funcionar como uma lembrança, que é o seu caso, mas eu acho que o documentário é um convite para que as pessoas deem continuidade a algo tão grandioso. E a forma coletiva como ele é apresentado é para que ele seja entendido da forma que é: isso não começa nem termina no Emicida. Eu sou só parte de uma parada. Todos nós temos poder para mudar as coisas, a gente só precisa exercer essa vontade," diz Emicida em entrevista a Ecoa.

Ecoa - Esse show foi a primeira vez que muita gente preta e de quebrada pisou no Municipal, eu inclusive. O que significa isso para você? De que maneira refletiu sobre isso nesse último ano?

Emicida - Acho que isso está ligado diretamente à forma como as nossas cidades são construídas e se desenvolvem. As pessoas, sobretudo as mais pobres, são empurradas para as beiradas das cidades. Elas são colocadas numa rotina que é bastante desumana.

No nosso país, a arte é compreendida como algo supérfluo. Quando a gente fala, por exemplo, sobre saúde mental... Eu acho que a arte é fundamental para manutenção da saúde mental porque é ela que dá vasão a uma série das nossas emoções, sentimentos, sonhos. A gente se conecta com outras pessoas, consegue dissipar nossa solidão...

E acho que a gente também paga o preço por um conceito que antecede a gente, que é um conceito de "alta cultura", a que eu tenho muita aversão, porque o que é a alta cultura? É um nome chique pra discriminação de arte que não é branca, entendeu? Beethoven é alta cultura, os quadros do Pablo Picasso são de alta cultura. Mas as manifestações que surgem nesse lugar aqui não são, saca?

Na prática, o que isso significa? Que os equipamentos culturais, principalmente os equipamentos culturais que recebem essa alta cultura, eles não se transformam em ambientes convidativos para a maior parte da população que mora nas beiradas da cidade, sacou? Paralelo a isso, a gente também tem uma estrutura de segurança pública, com muitas aspas, que se esforça dia após dia para oferecer tudo, menos a sensação de segurança.

Então, a gente tem o constrangimento da pessoa que sai lá da casa dela no [bairro da zona norte de SP Jardim] Fontalis, que vai demorar 1h30 para chegar no Municipal porque ela ama um espetáculo, vamos supor, de música erudita. Só que a caminho de lá, o ônibus não vai parar para ela no ponto, ela vai tomar um enquadro, ela vai estar com a melhor roupa dela para ir ao Theatro Municipal, ela vai sofrer abordagem policial, isso já vai gerar um trauma que a pessoa às vezes prefere nem sair da quebrada dela. Isso acontece em várias dimensões, de várias formas, e assim a gente vai se distanciando do que a gente considera bonito.

A gente começa a achar que as únicas coisas a que a gente tem direito são as coisas que estão ao nosso redor, é nossa quebrada, nossa casa. Até que o poder público vem e fala que vai derrubar sua casa também, porque, às vezes, nem a isso você tem direito. Então, para mim, entrar no Municipal... Porque sozinho eu já tinha entrado, entendeu? Dois, três anos atrás eu entrei sozinho. Aí eu pensei: agora eu quero entrar com todo mundo. E foi isso que a gente conseguiu fazer: entrar com todos os irmãos, com todas as irmãs no barato pesado e falar: mano, aha uhul, o Municipal é nosso!

Mas tem um passo atrás também, mais do que não se sentir confortável, muitas pessoas nem sonham em frequentar esses espaços...

E quantas coisas são assim? Quantas coisas são assim e a gente acredita que não é para nós porque roubaram do nosso horizonte? Essa é a sensação mais foda. E por isso o Municipal também. Quando a gente está falando do AmarElo, a gente está falando do nascimento de um monte de coisa.

Já tem uma provocação interna em todos nós: o que nós somos hoje? Quem nós somos? Para onde a gente vai levar a História desse país? Aí eu acho que o Municipal serviu como o nascedouro de um sonho coletivo de ser mais. Ser grandioso. De estar à altura de um prédio tão bonito. E acabar com essa ideia de que as manifestações que nascem aqui não são dignas de ocupar esse tipo de espaço.

E como você tem definido esse documentário?

O documentário para mim é um convite. Para quem esteve lá, ele também vai funcionar como uma lembrança, que é o seu caso. Mas eu acho que o documentário é um convite para que as pessoas deem continuidade a algo tão grandioso.

E a forma coletiva como ele é apresentado é para que ele seja entendido da forma que é: isso não começa nem termina no Emicida. Eu sou só parte de uma parada. Todos nós temos poder para mudar as coisas, a gente só precisa exercer essa vontade.

No documentário, você traz muitas histórias de pessoas negras: Abdias do Nascimento, Lélia Gonzalez, Wilson das Neves... Conhecer a história dessas pessoas mudou sua vida de qual forma? E qual é o potencial de apresentá-los para a juventude de hoje?

Eu cresci cercado de impossível. Eu cresci com um monte de gente falando que uma pessoa preta não podia isso, não podia aquilo, sabe? Que meu cabelo era feio, que minha pele era feia, que minha família era feia. Cresci no meio desse lugar aí. Essas pessoas por meio da música rap, porque foi a música rap que me trouxe esses nomes, que me fez pesquisar e conhecer esses nomes, foram elas que me mostraram não só que era possível, mas que era menos complicado do que imaginava. Eu imaginava que era tudo muito mais distante.

Abdias, Lélia, Beatriz Nascimento, Clóvis Moura, a própria Sueli Carneiro, todas essas pessoas fizeram o quê? Deram um chacoalhão nesse Brasil. Elas falaram: "toma vergonha na sua cara, mano, mais da metade de você é afrodescendente, para de falar esse monte de besteira que você está falando". A gente ainda não chegou totalmente nesse lugar, mas esse chacoalhão foi tão útil que mudou a percepção do brasileiro a respeito de si mesmo.

Isso é uma conquista histórica que é pouco reverenciada, inclusive, mas é uma conquista de uma geração que vem antes da gente.

Agora, nossa geração tem uma lição de casa que é foda: a gente precisa produzir algo que tenha essa mesma proporção. Subir esse degrau, isso é um desafio desgraçado.

Emicida

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Você tem feito um pouco disso, não? É esse pensador, disseminador de consciência e conhecimento. Como tem sido isso? É muita responsabilidade, não?

Sim, é uma grande responsabilidade. Mas ser pai também é. A gente se relaciona com uma série de responsabilidades no decorrer da vida, só que a gente naturaliza ela. A gente tem que naturalizar o fato de que fazemos coisas grandiosas também. A gente fica jogando muita luz em coisas pequenas que a gente faz, e a gente tem que entender que essas coisas pequenas são o que constrói as coisas grandes. Está tudo no mesmo projeto, é parte de uma construção.

Eu não fico pensando: "nossa, eu sou referência", não fico pensando nesse lugar porque isso aí alimenta mais a minha vaidade do que qualquer outra coisa. Então, o que eu quero dizer para as pessoas quando coloco esses nomes e compartilho essas coisas: eu me sinto grandioso porque essas pessoas se sentiram grandiosas. E elas se sentiram e se sentem grandiosas porque outras pessoas disseram para elas que elas eram grandiosas.

O que eu tô fazendo aqui é compartilhar essa grandiosidade para que essa geração que vai se conectar com que eu fizer, dê continuidade a isso da maneira mais bonita possível. É sobre isso que estou falando.

Fico super lisonjeado de ser uma referência, me deixa muito feliz, mas tô mais curioso é pra ver a consequência dessas pessoas que estão sendo inspiradas. Porque, mano, o tanto de gente que vai escrever, vai pintar, que vai cantar, construir, entrar na política, entendeu? Que vai construir esse mundo no qual a gente gostaria de viver. Por isso eu acho que esse outro mundo é possível, porque estou em contato com um monte dessas pessoas e elas me fazem ter esperança.

Podemos olhar para essas pessoas como guias para construirmos novos caminhos como sociedade?

Claro, claro. E acho que esse momento é muito propício para isso, porque é um momento que provoca a gente. Se a gente tivesse uma estabilidade melhor, a gente não estaria tão preocupado com isso. Muitos problemas a gente nem ia ver porque estaríamos todos centrados em nós mesmos.

A gente precisa urgentemente ser radical no sentido de combater todas essas desigualdades do Brasil. Isso pede radicalismo mesmo. Só que isso precisa de organização. Precisa de projeto. Precisa de intelecto. E é por isso que falo que o filme, pra mim, é um convite para que a gente reflita sobre a História, aprenda sobre o contexto e produza algo tão relevante quanto, que influencie a política, a arte, a cultura, a sociedade como um todo e que a gente possa olhar daqui há 30 anos e falar: "caramba, ainda bem que certas coisas ficaram no passado".

É foda, tudo parece muito difícil porque a gente é colocado numa posição de desacreditar, mas, mano... Sei lá, não sei se eu que sou muito esperançoso também. Nelson Mandela falava um bagulho muito foda, ele falava que a gente quando encontra uma responsabilidade grande se pergunta: "quem sou eu para fazer tal coisa?". E a verdade é que a gente tinha que se perguntar quem sou eu para não fazer tal coisa?

A crença mais profunda que tenho é que, quando a gente brilha, a gente inspira as outras pessoas a brilhar. E a luz se conecta uma com a outra, nada separa a luz, ela sempre se une. É isso que a gente precisa fazer, mano: brilhar, esperar que as pessoas brilhem e criar possibilidade para que cada vez mais gente brilhe.

E como você acha que a gente pode fazer isso? O que mais pessoas podem fazer para atingir esse potencial?

Informação e sensibilidade. Por quê? Eu falo muito sobre isso com o meu pessoal: A gente precisa entender informação como uma forma de terapia. Não simplesmente o ato de se informar com o que acontece no mundo. Porque um determinado conjunto de palavras cria em você um estado de espírito que te deixa ansioso, inseguro, te deixa amedrontado. Você precisa saber se informar para que consiga as informações que precisa sem que isso tire seu centro.

Você precisa ter esse amadurecimento de poder receber essas informações e falar: "não, peraí, vou racionalizar isso aqui", entendeu? Para mim, informação é uma forma de terapia. É assim que vejo, porque é a partir desse lugar que eu vou conseguir organizar o meu discernimento. Se não, vou entrar na histeria do mundo. Aí alguém precisa baixar a poeira e falar: "gente, calma!".

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Lembro que, quando AmarElo foi lançado, você disse em entrevista ao UOL que antes era um incendiário, que "queria que o mundo se fodesse". E agora, ouvindo o disco e assistindo ao documentário, vejo que tem muita calma. Uma tentativa de construção de um mundo que, mesmo em "decomposição", como você diz, pode ser diferente, mais positivo. Isso é fruto de uma mudança de visão?

Paula, nós temos que construir, mano. Para destruir já basta o [presidente Jair] Bolsonaro. Ou a gente se concentra em construir, conversar, dialogar e avançar, ou então, mano, a gente entra em uma espiral de destruição que quando terminar não vai sobrar nada.

Eu tenho essa fé. E acho que a música é possível por isso. Eu, por ser uma pessoa que viveu em um ambiente de muita descrença durante boa parte da vida, também tinha uma descrença em mim. Eu desacreditava do meu potencial. Tive uma perspectiva mais individualista durante muito tempo da minha vida. Então, não me preocupava, tá ligado? Era tipo: "eu estou aqui fazendo meu corre e cada um que faça o seu". Eu tinha essa cabeça.

A partir do momento que comecei a ficar um pouquinho mais inteligente, e a música, principalmente a música rap fez isso comigo, eu comecei a ficar mais sensível para um monte de coisa. E a partir dessa sensibilidade que desenvolvo, começo a me colocar no lugar dos outros. A paternidade me fez ver muita coisa como eu não via, sabe? Tudo isso me deu um puxão de orelha.

Não vou nem te dizer que eu era orientado pelo ódio, mas eu era muito mais indiferente. E tem uma coisa muito interessante: o contexto no qual a gente trabalha, a música rap, o movimento do hip hop, esse movimento estava pronto para um disco como AmarElo há 15 anos? Não tava. A gente teve que construir esse contexto. Hoje faz sentido a gente falar que, mano, a gente precisa desconstruir esse conceito de masculinidade. Ele é assassino, ele mata homem para caralho também. E nem cheguei ainda nas mulheres, que são as atingidas por isso. A gente tem que construir uma série de outros contextos para possibilitar que as ideias façam sentido.

E um desses contextos que você vem tentando criar é de relembrar da nossa coletividade como seres humanos. Na música nova, que aparece nos créditos finais e será lançada dia 10, você fala bastante disso, né? "Viver é partir, voltar e repartir", diz o refrão. O que você estava pensando quando a escreveu?

É, tem uma experiência de parece que está falando de reencarnação, e de certa forma está. A gente vai e volta. Mas também está falando que é sempre tempo da gente voltar e compartilhar o que recebeu. É aquela coisa dos evangélicos lá: "a riqueza partilhada é abençoada". Eu também acredito nisso.

Aí você chama o Gilberto Gil para ler um texto do Ailton Krenak nela...

Putz (risos), e pior que eu tive a ideia e pensei: será que os caras [Gilberto Gil e Ailton Krenak] vêm? Bom, vou tentar, o não eu já tenho.

Eu amo esse texto do Ailton Krenak porque ele é muito cirúrgico na dualidade humana. O mesmo povo que pode construir coisas frustrantes, pode construir coisas maravilhosas, certo? Eu acho incrível a conclusão a que o texto chega, aquele "mais ou meeeeenos". Eu acho que ele fala bem do nosso potencial de ser destruidor, mas fala também do nosso potencial de ser criador.

Essa música pra mim tem um peso muito especial. Eu escrevi pouca música esse ano. Talvez seja o ano em que eu menos escrevi. Escrevi isso durante a pandemia. E eu queria ir para outro lugar. Se você prestar atenção, as primeiras frases, nenhuma dela rima. E eu gosto desse lugar da não rima porque a não rima dá uma sensação de afogamento. A gente tem uma expectativa meio óbvia, tipo assim: "batatinha quando nasce, esparrama pelo chão, menininha quando dorme compra um tênis novo" (risos), sabe? E aí todo mundo dá risada porque tinha que rimar. O psicológico já sabe que tinha que rimar.

Esse lugar que tira a rima do lugar de onde ela deveria estar, isso foi uma coisa que fiquei estudando muito aqui porque queria tirar a rima do lugar óbvio dela. Para que essa sensação de que tem alguma coisa errada, estivesse na emoção da composição. Então, a gente começa no ano que tem uma energia esquisita, no momento da História que tem uma energia esquisita, e a gente tem uma música em que a ausência de rima nas primeiras estrofes também gera uma energia de: "meu, tem alguma coisa faltando".

À medida em que a rima vai entrando, a gente vai percebendo que a vida vai fazendo sentido. De certa forma, a sensação é a de que parece que estamos tirando a cabeça de dentro da água, sabe? A gente pode respirar de novo. Até que chega no refrão, e a gente se encontra e entende que a vida é isso mesmo, é um grande vai e vem, onde a gente dá sentido para ela quando conseguimos partilhar o que recebemos.

E o documentário termina com uma ligação dos tempos atuais de pandemia. Trazendo comparações históricas com o fim da pandemia de gripe espanhola e como o samba foi o escolhido simbolicamente para celebrar o fim daqueles tempos. E, agora, o que vai nos guiar para a reconstrução desse mundo quando a pandemia Covid-19 acabar?

Ó, pensa em uma coisa, o samba atravessa o filme inteiro como um personagem. O samba está posto ali não só como um gênero musical, mas como um movimento pensador do Brasil. Um movimento construtor desse Brasil de possibilidades infinitas. A nossa esperança está ligada diretamente a conseguir se conectar com movimentos que são potencializadores desse Brasil possível, por isso eu acho que o samba continua sendo o nosso ponto de encontro, porque o samba é a melhor síntese do Brasil que pode dar certo.

Jeff Delgado/Divulgação Jeff Delgado/Divulgação
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