Ecoa - Esse show foi a primeira vez que muita gente preta e de quebrada pisou no Municipal, eu inclusive. O que significa isso para você? De que maneira refletiu sobre isso nesse último ano?
Emicida - Acho que isso está ligado diretamente à forma como as nossas cidades são construídas e se desenvolvem. As pessoas, sobretudo as mais pobres, são empurradas para as beiradas das cidades. Elas são colocadas numa rotina que é bastante desumana.
No nosso país, a arte é compreendida como algo supérfluo. Quando a gente fala, por exemplo, sobre saúde mental... Eu acho que a arte é fundamental para manutenção da saúde mental porque é ela que dá vasão a uma série das nossas emoções, sentimentos, sonhos. A gente se conecta com outras pessoas, consegue dissipar nossa solidão...
E acho que a gente também paga o preço por um conceito que antecede a gente, que é um conceito de "alta cultura", a que eu tenho muita aversão, porque o que é a alta cultura? É um nome chique pra discriminação de arte que não é branca, entendeu? Beethoven é alta cultura, os quadros do Pablo Picasso são de alta cultura. Mas as manifestações que surgem nesse lugar aqui não são, saca?
Na prática, o que isso significa? Que os equipamentos culturais, principalmente os equipamentos culturais que recebem essa alta cultura, eles não se transformam em ambientes convidativos para a maior parte da população que mora nas beiradas da cidade, sacou? Paralelo a isso, a gente também tem uma estrutura de segurança pública, com muitas aspas, que se esforça dia após dia para oferecer tudo, menos a sensação de segurança.
Então, a gente tem o constrangimento da pessoa que sai lá da casa dela no [bairro da zona norte de SP Jardim] Fontalis, que vai demorar 1h30 para chegar no Municipal porque ela ama um espetáculo, vamos supor, de música erudita. Só que a caminho de lá, o ônibus não vai parar para ela no ponto, ela vai tomar um enquadro, ela vai estar com a melhor roupa dela para ir ao Theatro Municipal, ela vai sofrer abordagem policial, isso já vai gerar um trauma que a pessoa às vezes prefere nem sair da quebrada dela. Isso acontece em várias dimensões, de várias formas, e assim a gente vai se distanciando do que a gente considera bonito.
A gente começa a achar que as únicas coisas a que a gente tem direito são as coisas que estão ao nosso redor, é nossa quebrada, nossa casa. Até que o poder público vem e fala que vai derrubar sua casa também, porque, às vezes, nem a isso você tem direito. Então, para mim, entrar no Municipal... Porque sozinho eu já tinha entrado, entendeu? Dois, três anos atrás eu entrei sozinho. Aí eu pensei: agora eu quero entrar com todo mundo. E foi isso que a gente conseguiu fazer: entrar com todos os irmãos, com todas as irmãs no barato pesado e falar: mano, aha uhul, o Municipal é nosso!
Mas tem um passo atrás também, mais do que não se sentir confortável, muitas pessoas nem sonham em frequentar esses espaços...
E quantas coisas são assim? Quantas coisas são assim e a gente acredita que não é para nós porque roubaram do nosso horizonte? Essa é a sensação mais foda. E por isso o Municipal também. Quando a gente está falando do AmarElo, a gente está falando do nascimento de um monte de coisa.
Já tem uma provocação interna em todos nós: o que nós somos hoje? Quem nós somos? Para onde a gente vai levar a História desse país? Aí eu acho que o Municipal serviu como o nascedouro de um sonho coletivo de ser mais. Ser grandioso. De estar à altura de um prédio tão bonito. E acabar com essa ideia de que as manifestações que nascem aqui não são dignas de ocupar esse tipo de espaço.
E como você tem definido esse documentário?
O documentário para mim é um convite. Para quem esteve lá, ele também vai funcionar como uma lembrança, que é o seu caso. Mas eu acho que o documentário é um convite para que as pessoas deem continuidade a algo tão grandioso.
E a forma coletiva como ele é apresentado é para que ele seja entendido da forma que é: isso não começa nem termina no Emicida. Eu sou só parte de uma parada. Todos nós temos poder para mudar as coisas, a gente só precisa exercer essa vontade.
No documentário, você traz muitas histórias de pessoas negras: Abdias do Nascimento, Lélia Gonzalez, Wilson das Neves... Conhecer a história dessas pessoas mudou sua vida de qual forma? E qual é o potencial de apresentá-los para a juventude de hoje?
Eu cresci cercado de impossível. Eu cresci com um monte de gente falando que uma pessoa preta não podia isso, não podia aquilo, sabe? Que meu cabelo era feio, que minha pele era feia, que minha família era feia. Cresci no meio desse lugar aí. Essas pessoas por meio da música rap, porque foi a música rap que me trouxe esses nomes, que me fez pesquisar e conhecer esses nomes, foram elas que me mostraram não só que era possível, mas que era menos complicado do que imaginava. Eu imaginava que era tudo muito mais distante.
Abdias, Lélia, Beatriz Nascimento, Clóvis Moura, a própria Sueli Carneiro, todas essas pessoas fizeram o quê? Deram um chacoalhão nesse Brasil. Elas falaram: "toma vergonha na sua cara, mano, mais da metade de você é afrodescendente, para de falar esse monte de besteira que você está falando". A gente ainda não chegou totalmente nesse lugar, mas esse chacoalhão foi tão útil que mudou a percepção do brasileiro a respeito de si mesmo.
Isso é uma conquista histórica que é pouco reverenciada, inclusive, mas é uma conquista de uma geração que vem antes da gente.