ÉRIKA E GABRIEL

Para o casal trans, família é um misto de amor, aceitação e mito; em seus DNAs, acharam respostas para isso

Beatriz Mazzei Colaboração para Ecoa, de São Paulo (SP)

Os caminhos do ator Gabriel Lodi e da vereadora Érika Hilton se cruzaram em 2017. Naquele momento, a ativista negra, vinda de um lar matriarcal na periferia, conheceu o ator branco do interior, criado no seio de uma família católica que coloca as realizações masculinas em um pedestal. Apesar de as diferenças terem tudo para os afastar, foi na vivência como pessoa transgênero que os dois encontraram um esteio para a união. Hoje, o casal avalia o que é formar uma família multirracial e distante das ideias socialmente atribuídas ao gênero de um e de outro.

Com esse espírito, os dois toparam compartilhar com Ecoa as reflexões que fizeram sobre as origens de seus antepassados. Para ele, a surpresa foi dupla. "Metade das histórias da minha família já caiu por terra. Ou eu sou adotado ou é mentira", ri. E continua: "Uma amiga minha diz que sou inevitavelmente branco. A gente sabe. Mas deu 98% Europa. É muita coisa para um brasileiro". Para ela, a confirmação: "Essa sou eu, uma mistura de África com as Américas".

Os dois concordam que ancestralidade é menos uma conversa sobre o passado, mais o que se faz a partir disso. "Não venho de um continente que saiu devastando as coisas, mas de um lugar invadido, cujo povo foi escravizado, reis e rainhas, destronados, e mulheres, estupradas. Contar isso é fazer a minha futura geração não precisar lidar com os horrores da ausência das nossas histórias", diz Érika.

"Pegando o gancho no que a Erika diz, acho que é a oportunidade de as pessoas começarem a se enxergar como brancas. 'Essa é minha branquitude, ela foi construída dessa forma e os referenciais de vida que nos deram é que só é ser humano quem é branco'. Mas o que isso significa? Eu estou aqui na disposição de pensar sobre mim, homem e branco."

"O meu sonho de viagem é ir para a Bahia", diz Hilton, vereadora paulista pelo PSOL. Para a candidata mais votada nas eleições de 2020 e é a primeira mulher trans a ter um cargo na Câmara Municipal de São Paulo, o estado mais negro do Brasil é uma aspiração.

No DNA, a resposta pelo anseio. Mais da metade de seu material genético veio do continente africano, principalmente do Oeste e Norte, onde estão Nigéria, Camarões e Angola. Essa diáspora negra da África ao Brasil continuou dentro do país. Do interior da Bahia, boa parte da família de Érika foi para Francisco Morato, na região metropolitana da capital paulista, onde ela viveu toda a infância.

Desse estado que nunca viu, Erika já ouviu muito. Eram histórias de tios, primos e da bisavó, a vó Naninha. A anciã materna era misteriosa, mistura de conto e lenda. Tanto que a luta contra a pobreza é contada com carinho e uma pitada de misticismo. Do lado de seu pai, a avó Verônica, vinda da roça do Paraná, era uma mulher branca, a quem Érika atribui a parcela europeia de seu DNA. Casada com vô Mário, um homem negro retinto, deram origem a uma família com traços negros. De cabeça, Érika ainda se recorda de Vó Zumira, filha de Naninha, uma baiana casca grossa que "gostava de entoar seus cantos dessa terra e dos parentes que deixou para trás".

Era quase um lamento. As memórias eram do aqui e do agora, mas também da terra e da infância

Érika Hilton, vereadora (PSOL-SP)

Na periferia paulista, Érika cresceu rodeada de familiares, que compartilhavam um sobrado de três andares. Ela morava na casa do meio, com a avó e a mãe. Tias e primas viviam nas moradias de baixo e de cima.

No lar matriarcal, eram as mulheres que davam as cartas. Enquanto as tias de Érika eram e ainda são trabalhadoras domésticas, a mãe gerenciava uma loja de peças para automóveis. Todas as quartas-feiras, encontravam uma folga para fazer cuscuz de milho e se sentarem juntas à mesa. "Nesse momento elas falavam de novela, do programa do Eli Corrêa, dos maridos, de tudo. Em casa, as mulheres conduziam os processos, mandavam até nos maridos. Era uma gritaria, uma loucura maravilhosa", lembra.

Foram elas que a protegeram para que não fosse hostilizada por ser uma criança trans. "Eu vestia salto, colocava toalha na cabeça para fingir que era cabelo, usava as roupas da minha mãe. Todas ao meu redor cuidavam para eu não ser desrespeitada", conta.

Gabriel Lodi cresceu como uma criança que se sentia fora de lugar, a pequena Vargem Grande do Sul, no interior de São Paulo. A cidade interiorana de 40 mil habitantes é marcada por fazendas e forte religiosidade. "Costumo dizer que a cidade não tem bairros e, sim, paróquias. O padre é uma autoridade. A tríade do poder é o prefeito, o delegado e ele", conta.

A infância foi agradável. Mas a população local se incomodava com a criança trans. Por isso, apesar de ser sociável, não teve muitos amigos. Um conforto era saber de onde a família veio. Afinal, cresceu ouvindo que os antepassados paternos e maternos eram italianos. Seu teste de DNA, porém, ajuda a desconstruir o mito de que famílias brancas sabem suas origens: metade de seu material genético é oriundo de Portugal e Espanha, enquanto a Itália responde por 29%.

Que coisa esse negócio do DNA. Eu fiquei passado, alguma mentira aconteceu no meio do caminho."

Se na casa de Érika, as mulheres contavam as histórias de suas mães, na de Gabriel, falar sobre quem veio antes era prerrogativa dos homens. Para ele, o processo de submissão da mulher influenciou na ideia de formação da família. Seu avô paterno, o italiano Arnaldo Lodi, veio para o Brasil por volta de 1900, calcula. Ao chegar, a família da mineira Iraci Constante concedeu a mão dela em matrimônio ao estrangeiro. Casaram e formaram a família de Gabriel.

"Por tradição, a gente só sabia dos homens da família. Eu só sabia dos meus avôs italianos, que são os paternos", conta.

No lar em que os homens diziam saber de onde vinham, a certeza escondia lacunas na origem. Lodi se tornou o nome da família, mas é, na verdade, uma cidade na Itália, muito provavelmente de onde partiram os ancestrais de Gabriel. "Eu paro nos meu avós, dali pra trás não se sabe mais do que o primeiro nome." Também são incógnitas por qual motivo e como esses parentes vieram parar no Brasil. Mas o ator tem uma hipótese.

Acho que uma família que vem para a América tem uma história para contar. Agora, quando não têm é porque está fugindo da pobreza, da fome, de uma alguma desgraça.

Gabriel Lodi, ator

Apesar das boas memórias da infância, tanto Érika quanto Gabriel tiveram uma adolescência conflituosa. No pano de fundo de ambas as tensões, está a religiosidade. No caso dela, o embate culminou no rompimento com a família por anos. "Em dado momento, o meu lar, até então extremamente amoroso, mudou. A igreja entrou na minha família, converteu todo mundo ao cristianismo, e eu fui expulsa de casa. Fui rechaçada por ser quem eu sou ", diz.

Por experiências como essa, a transexualidade de Gabriel e Erika ultrapassa as diferenças de criação. Em um exercício cotidiano de escuta e respeito, o casal aprende junto. "O amor transporta e supera qualquer questão. Eu não estou com um menino branco, patriarcal, racista e misógino. Não se trata disso. O Gabriel é um menino trans, que tem suas vivências, que também abdica da família em determinado momento por conta da condição de gênero, assim como a maioria de nós, pessoas trans, precisa fazer ao longo da vida", conta a parlamentar paulistana.

A cidade de onde Gabriel veio, diz ele, é marcada pelo racismo, que fez com que a questão racial não tenha sido natural para sua família. Antes de apresentar Érika aos pais, ele foi sentindo o clima em casa. Temia que ela se desgastasse ou presenciasse algo desconfortável. Aliviado, ele diz que o receio foi se desfazendo e, hoje, a relação da família com a companheira é muito boa. "Eles já estão mimando a Erika. Levam vinho para ela na piscina e riem quando ela grava memes."

Não só isso. O amor dos dois mudou a forma como os pais, de 70 anos, enxergam a vida, as relações e a religião. "Através do meu relacionamento com a Érika, eu comecei a mostrar as questões estruturais, e eles conseguiram deixar de se culpar por terem feito errado. Passaram a entender que os meus pensamentos são fundamentados em um monte de coisas que são inerentes à gente, que estão aí... Outro dia, meu pai falou: 'Nossa, pela primeira vez, entendo que o mundo não é assim só porque disseram que ele deve ser. Agora, não consigo mais parar de pensar desse jeito'."

Frequentadora de uma congregação cristã, a mãe de Érika mudou para aceitá-la, conta Gabriel. "Ela passou a dizer: 'Não, Deus não é isso. Se Deus é ódio, eu não concordo. E, se Deus não é isso, minha filha vai estar comigo dentro da minha casa'."

Juntos como família, Érika e Gabriel se unem por todas essas vivências e pelo amor. Para o casal, o teste de DNA ajuda a reforçar quem são e ressignificar suas origens. No caso de Érika, ser uma mulher composta por África e América Central a faz entender a importância de deixar um legado e contar a verdadeira história de seus antepassados para as futuras gerações.

"Resgatar essas histórias faz com que a gente resgate nossa personalidade e que passemos a nos aceitar da forma como somos, sem querer afinar o nariz, alisar o cabelo, diminuir isso ou aumentar aquilo. Esses traços são marcas do que somos. Nos faz ter orgulho do que nos antecedeu".

O entendimento de sua origem também transborda na profissão de Érika. Para a vereadora, o contexto onde cresceu e a conexão com seus ancestrais potencializam a força que sempre teve para o exercício da política. Em sua trajetória, tornou-se presidente da Comissão de Direitos Humanos. Também é ativista pelos direitos humanos, pela luta por equidade para a população negra, pelo combate à discriminação contra a comunidade LGBTQIA+ e pela valorização das iniciativas culturais jovens e periféricas.

Para Gabriel, entender suas raízes europeias faz com que ele possa se enxergar como branco e buscar entender a ideia da branquitude, que assim como a negritude, traça dimensões culturais, sociais, políticas e históricas para os povos brancos de todo o mundo. O ator também é militante pelos direitos humanos.

Em ambos os casos, entender-se como indivíduo ajuda a fortalecer não só o "eu", mas o "somos". Juntos, Érika e Gabriel sabem que a família vai muito além da ciência. Para o casal, a ideia de família consanguínea é um mero detalhe. "Família mesmo são os laços que permitem se afetar, se transformar e por fim, construir e caminhar juntos", conta Gabriel.

O exame de DNA se popularizou e virou uma ferramenta importante para resgatar e discutir a ancestralidade do povo brasileiro. Em 2021, Tilt propôs, e 20 personalidades negras toparam fazer o teste e olhar para a cicatriz histórica gerada pela escravidão no Brasil, na primeira temporada do Projeto Origens. Se você quer entender o papel da ferramenta genética e como o Estado brasileiro moeu memórias, leia o texto "Quando o DNA diz de onde vim". Agora, em 2022, Ecoa convidou, e três famílias olharam para seu passado a partir das descobertas genéticas. Esta é a segunda temporada do Projeto Origens. Você está no capítulo "ÉRIKA E GABRIEL". Veja os outros.

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