África chega a Pinheiros

Contra atraso histórico, escolas de elite em São Paulo investem em formação antirracista

Lucas Veloso Colaboração para Ecoa, em São Paulo (SP) Bruna Bento/UOL

Filho de uma empregada doméstica e de um eletricista, Pablo Damasceno começou os estudos numa escola pública, na periferia da zona sul de São Paulo (SP). Hoje, aos 48 anos, ele é diretor da Escola da Vila, organização que aposta num projeto pedagógico ousado: combater o racismo desde a infância, por meio de ações na rotina escolar dos alunos.

Incentivado pelo pai a seguir com os estudos, Pablo foi o primeiro da família a fazer faculdade. Introduzido às questões raciais pelo hip hop, ele lembra que, em sua infância, raça não era um assunto da conversa em família, e tampouco na escola.

À frente de uma escola particular, juntamente com colegas na instituição, ele quer proporcionar aos estudantes um contato do qual ele mesmo foi privado em sua infância e adolescência.

Hoje (28), no Dia da Educação e no ano em que a Lei 10.639, que introduziu o estudo de "História e Cultura Afro-Brasileira" no currículo das escolas, completa 20 anos, Ecoa conversou com gestores de escolas privadas, professores e educadores, além de funcionários, alunos e responsáveis, para conhecer como o antirracismo tem sido abordado em sala de aula.

Bruna Bento/UOL
Divulgação/Bruna Bento Divulgação/Bruna Bento

Antirracismo na educação

Sob a direção de Pablo, a Escola da Vila, que conta com 9% de alunos negros, aceitou participar de uma metodologia desenvolvida pela Ação Educativa, associação civil sem fins lucrativos que atua nos campos da educação, da cultura e da juventude.

O processo oferece insumos que permitem à comunidade escolar avaliar suas práticas cotidianas e pensar, coletivamente, uma educação à luz da igualdade racial.

"No ano passado, um dos temas do material tratou das relações raciais dentro da escola, e uma assembleia foi convocada com representantes de pais, alunos, famílias e funcionários. Mais de 200 pessoas participaram do encontro para discutir o assunto e uma cartilha foi desenvolvida para orientar ações futuras", lembra Pablo.

Junto à comunidade escolar, a escola se planeja para propor ações antirracistas por toda a rede, desde a contratação de pessoas até o ensino propriamente dito.

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Outras instituições têm seguido um caminho parecido com a Escola da Vila. É o caso do Recreio, que atua com crianças no berçário e na educação infantil.

Localizada no Alto de Pinheiros, a escola, que conta com 4% de alunos negros, tem buscado integrar a pedagogia antirracista em seu contexto de ensino.

Com as ações divididas em quatro eixos (letramento, revisão curricular, atitudes e relacionamentos e representatividade), o Recreio está buscando ampliar o conhecimento da comunidade sobre negritude, além de dar visibilidade a personagens negros de nossa cultura e de aumentar o espaço de culturas indígenas, africanas e afro-brasileiras no currículo escolar.

"A escola é reflexo de nossa realidade, por isso ainda pode reproduzir esse sistema racista", afirma Claudia Regina Passos, que é coordenadora do Recreio, destacando a importância de resistir a essa estrutura.

Mãe de uma menina de 3 anos que estuda na escola, Carolina Arantes avalia que as ações escolares têm sido realizadas com cuidado e responsabilidade, sensíveis à importância do tema para as famílias e profissionais negros da comunidade.

Como mãe, ela aprendeu que o envolvimento, por parte dos pais, passa por uma tomada de consciência muitas vezes difícil — doar tempo para o projeto antirracista se confunde com reconhecer privilégios e agir para mudá-los.

O movimento negro se fortaleceu muito nos últimos 50 anos, mas é preciso mais engajamento por parte da sociedade

Claudia Regina Passos, coordenadora da escola Recreio

Divulgação/Escola da Vila

Só uma bolsa não resolve

Na Escola Alecrim, que conta com duas unidades no bairro de Pinheiros, em São Paulo, 16% dos estudantes são negros. A instituição concede bolsas para alunos não brancos, mas avalia medidas de extensão da política, já que o benefício é insuficiente para suprir despesas essenciais, como material, transporte, saídas pedagógicas, entre outros.

A intenção, segundo coordenadoras ouvidas pela reportagem, é que a criança ou adolescente e sua família façam, de fato, parte da comunidade escolar, sintam-se acolhidos e ouvidos por todos.

"Ação antirracista vai além de atender, diretamente, a população. Aqui temos alunos filhos de refugiados, por exemplo", afirmam as coordenadoras Angela Calabria, Samanta Relvas e Silvia de Macedo Chiarelli.

Além de contar com o Naca (Núcleo Antirracista da Comunidade Alecrim), grupo formado por familiares dos alunos, a escola tem pensado, diariamente, em novas ações antirracistas, incluindo rodas de conversa sobre a temática racial e a inclusão de personagens negras e indígenas nos currículos de diferentes áreas do conhecimento — um esforço pedagógico para ser, cada vez menos, eurocêntrico.

Divulgação/Bruna Bento

Balé e natação são para poucos

Em conversa com Ecoa, gestores escolares foram unânimes ao apontar uma avaliação positiva dos pais sobre o projeto antirracista.

Muitas famílias, segundo eles, procuram a escola especialmente devido a isso, o que facilita a integração e a compreensão do debate, ainda que conflitos e questionamentos se façam presentes.

O casal de atores Rosana da Silva Araújo dos Santos, 43, e Leandro de Almeida Dias, 42, é responsável por Diana da Silva Dias, de 5 anos. A menina negra é bolsista na Escola Alecrim.

"Ao ser contemplada com essa bolsa, nossa filha passa a fazer parte de uma proposta pedagógica maravilhosa, com afeto, respeito, formação. Mas, por outro lado, a Diana acaba se chocando com estruturas sociais que estão dentro da própria Alecrim, o que não poderia ser diferente, pois somos todos frutos dessa construção racista", afirmam.

Em sala de aula, imagens, livros e bonecas são inspirados em personagens negros da história - Bruna Bento/UOL - Bruna Bento/UOL
Em sala de aula, imagens, livros e bonecas são inspirados em personagens negros da história
Imagem: Bruna Bento/UOL

Enquanto a maior parte dos alunos chegam à escola de carro e fazem aulas de natação, balé, capoeira, dentre outros, Diana não tem acesso a essas atividades e usa o transporte público para ir à escola, junto com os pais.

Além disso, Rosana e Leandro preferem economizar nos custos, evitando gasto com comida na escola — todos os dias, Diana leva consigo um lanche preparado em casa.

Recém-chegado à Alecrim, o casal participa das discussões do núcleo antirracista voltado à comunidade, onde percebe avanços na incorporação de mecanismos antirracistas pela cultura e estrutura da escola. "É um caminho longo e trabalhoso, mas também enxergamos como urgente", dizem.

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Faltam aliados

Outras escolas, como a da Vila, também têm o seu próprio núcleo antirracista para as famílias. Patrícia Moura e Souza e Priscilla Rodrigues Veneruci, mães de alunas da instituição e integrantes do núcleo, concordam que é imperativo discutir raça nas escolas, mas reconhecem os desafios.

"Nosso objetivo é ambicioso, mas ainda temos poucos aliados", diz Patrícia. "Esse é um processo longo, uma luta diária, e todas as conquistas são válidas, mas não é fácil", acrescenta Priscilla.

O mesmo é dito pela coordenadora do Recreio. Claudia Regina Passos afirma que as famílias, em sua maioria, valorizam o projeto de educação antirracista, mas a participação efetiva ainda é tímida.

Ela ainda diz que, algumas vezes, fica evidente a diferença entre a recepção dos alunos e a de seus pais. "As crianças se mostram muito interessadas por todo o repertório cultural africano, afro-brasileiro e indígena que lhes é apresentado".

No caso das irmãs Clara e Vitória, filhas de Priscilla Rodrigues, o debate chega em tempo oportuno — por serem brancas, ambas corriam risco de deixar a sala de aula sem se aprofundarem na questão. "Na outra escola não se falava muito sobre isso [o enfrentamento ao racismo], mas aqui, sim, desde o começo", diz Vitória.

Nosso desafio agora é constituir ações sólidas que tenham continuidade, que realmente incluam todos e todas, deslocando formas de gestão escolar que compactuem com as exclusões.

Claudia Regina Passos, coordenadora do Recreio

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'Nenhuma escola é antirracista'

Membro da Liga Interescolas por Equidade Racial, rede formada por coletivos antirracistas de escolas privadas em São Paulo, a advogada Cleude de Jesus, 52, reconhece que o atual cenário não é dos mais favoráveis para pautar o antirracismo em sala.

"Há algumas poucas escolas levando o tema a sério, impulsionadas por pressão das famílias; já outras pensam que basta uma ação afirmativa para salvar a sua atividade econômica", diz.

Segundo a advogada, o maior espaço midiático dado ao tema é bem-vindo, mas muitas escolas ainda o tratam de maneira superficial.

"Mesmo com a Lei 10.639 prestes a completar 20 anos, estamos visibilizando demandas que, na verdade, já eram pautadas pelo movimento negro desde os anos 70 [...] as escolas que incluíram, verdadeiramente, a história africana e afro-brasileira em seus currículos ainda são incipientes", afirma.

Para Cleude, as escolas que mais avançaram no combate ao racismo são as que souberam envolver as famílias de forma efetiva.

Em busca de mudanças, algumas comunidades escolares estão dialogando e criando comissões e núcleos antirracistas, mas muitas ainda ignoram essas iniciativas e a forma como a comunidade vivencia o racismo no ambiente escolar.

A advogada é enfática ao pontuar que, na prática, nenhuma escola paulistana é antirracista. É mais apropriado classificar esses espaços, diz ela, como lugares engajados na implementação um projeto de educação antirracista — quando se fala em transformação, nada acontece de um dia para o outro.

Não podemos conceber que a escola seja um pedaço isolado da sociedade. Se vivemos num país que perpetua o racismo, não é possível haver uma 'escola antirracista', mas um projeto em andamento

Cleude de Jesus, advogada

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