É tudo Prado

Família que mora há nove gerações na Mata Atlântica conta sobre a vida, os saberes e a luta pela floresta

Paula Rodrigues De Ecoa, em São Paulo Felipe Larozza/UOL

Antônio Baptista do Prado costumava moldar o barro na coxa até transformá-lo em telha. Fazia assim telhados em sua olaria no litoral sul de São Paulo, onde a família vive até hoje. Em algumas das peças guardadas pelos descendentes dele, é possível ler a data da confecção cravada com a letra fina de seu Antônio: dezembro de 1901. Além de uma lembrança guardada de um mais velho, a telha é para a família mais um registro da presença antiga e constante dos Prado em uma das regiões consideradas mais bem preservadas da Mata Atlântica.

"Aqui nasceu meu tetravô, meus bisavós, meus pais. Nossa geração de gente tem mais de trezentos anos. Minha bisavó, mãe de Bernardino, era morena, a vó preta, era da parte dos escravos. Eu e Onésio [seu marido] somos primos de terceiro grau. Tudo Prado!", como resumiu dona Nancy do Prado, em 2012, em uma entrevista a Carmem Lúcia Rodrigues, antropóloga que visitava o local para escrever sua tese de mestrado pela Unicamp (Universidade de Campinas).

Com ajuda de documentos da época, é possível dizer que há nove gerações os Prados vivem na região conhecida hoje como Juréia, que desde 1986 virou uma unidade de conservação.

"A gente não é rico, na verdade, temos outro tipo de riqueza. A gente quer a riqueza do conhecimento, da terra, da água, do bem viver, mas de muita luta também", define Dauro do Prado, filho de dona Nancy com seu Onésio, e um dos bisnetos de seu Antônio Baptista do Prado.

Arquivo Pessoal

Saberes que a mata ensina

Além da telha de 1901 produzida por seu Antônio, alguns documentos encontrados por pesquisadores atestam a presença dessa família na região. Dois anos atrás, por exemplo, vários pesquisadores de universidades nacionais, como USP, Unicamp e UFABC, e a Universidade de Chicago divulgaram um relatório da ocupação na região. Um documento encontrado pelos especialistas na Paróquia de Iguape (SP) mostra que em 1856 dona Maria Euzébia do Prado possuía terras ali.

A relação próxima da família inteira com a região foi herança deixada dos mais velhos para os mais novos. "O meu pai conta que meu bisavô e meu tataravô sempre viveram aqui trabalhando a questão da cura com planta medicinal. Faziam reza, sabiam usar as folhas, a fruta e as raízes. Até pouco tempo atrás a gente vivia mais usando a floresta como medicina, tanto com plantas que estavam na mata fechada, quanto nos nossos quintais."

Muito além de ser farmácia, a Mata Atlântica foi e ainda é o que dá para todos os membros da família Prado boa parte do que eles necessitam para sobreviver. Se fosse preciso chutar um número de quanto dependem do bioma para necesidades básicas, Dauro diria 80%. Da produção de alimentos até a manutenção da cultura caiçara com as festas da região, a floresta foi quem proporcionou os saberes conhecidos popularmente como tradicionais e que são encarados pela família como a maior riqueza que possuem.

Em uma breve conversa com alguns parentes, é possível ouvir lembranças passadas de boca em boca, a cada geração. Dauro conta sobre os momentos em que, ainda criança, seguia os mais velhos para dentro da mata à procura de um espaço bom para plantar comida. Aprendeu que arroz se planta em lugar alagado, ou que se plantar mandioca em lugar com muita umidade, apodrece a raiz. E assim passou para o filho Marcos.

"Minha avó dizia que se a gente tira um remédio do mato pra cuidar da gente, então temos que cuidar daquele lugar também, cuidar da região que a gente tirou. Meu avô, quando a gente vai fazer uma cerca, por exemplo, dizia que a gente não vai tirar a madeira que não vai brotar [de novo]. Você tem que tirar uma que brota, que você sabe que daqui seis meses vai ter madeira já. A gente aprende muita coisa. Os ensinamentos do nosso mais velho. A relação que eles tinham e passaram pra gente com a mata, é muito forte. É uma relação de respeito com a floresta", diz Marcos.

Felipe Larozza/UOL Felipe Larozza/UOL

"Bença, vó"

Se a floresta é uma escola, os mais velhos da família foram os professores. Foram eles que, por muito tempo, guiaram os mais jovens pela mata e compartilharam experiências e histórias que marcaram a vida de todos os filhos, netos e bisnetos. Dona Nancy, nascida e criada na comunidade do Rio Verde, junto com seu Onésio, hoje com 91 anos, foi a "enciclopédia ambulante" — como define seu neto Marcos — para os quase 50 parentes que viu nascer na Juréia.

No mês passado, porém, Dona Nancy partiu fisicamente. Mas as memórias e os ensinamentos que deixou continuam vivos em cada fala dos filhos e netos. Marcos relembra que a relação da avó com a mata chamava atenção porque era por ela que a matriarca se guiava para conseguir lembrar de alguns acontecimentos importantes.

"Como aquela memória dela era muito boa, ela lembrava não era pela data, era por fatos que aconteciam na mesma época. Falava: 'Tal roça foi feita em tal tempo que essa pessoa nasceu'. Ela tinha essa relação. E a gente aprende muita coisa assim, né?" diz.

Abalado com a perda da mãe, Dauro ainda não consegue falar sobre ela. A saudade aperta. Entre as lágrimas e as lembranças boas que ficaram, a certeza que tem é a de que agora cabe a eles continuar a vida de Dona Nancy se dedicando a cuidar da região que ela tanto amou.

"Ela era muito importante para aqui. Agora vamos continuar o trabalho da vida dela, vamos tratar tudo aqui com o mesmo amor que elas nos ensinou a ter pelas pessoas, mas também pelas plantas, pelas árvores, pela água. É muito conhecimento, muita sabedoria, a gente quer continuar isso e passar para os nossos filhos como ela passou e vai continuar passando de alguma forma. Isso aqui é uma escola aberta", completa Dauro.

Felipe Larozza/UOL Felipe Larozza/UOL

Viver em área de proteção ambiental

Mas não só boas memórias são compartilhadas pelos mais velhos. As diversas pressões que a família Prado sofreu e vem sofrendo para abandonar o local marcaram a vida de todos na Juréia. Dauro, por exemplo, diz que cresceu ouvindo histórias sobre a chegada de pessoas de fora para tentar comprar as terras dos avós dele ou incentivá-los a sair do local, entre 1940 e 1950. Em um desses momentos, a avó Joana acabou cedendo à pressão e, assim, migrou para outro espaço dentro da Juréia.

Depois disso, foi a vez das novas gerações da família passarem por pressões parecidas. Viveram nos anos 1980 a tentativa da Nuclebrás (Empresas Nucleares Brasileiras) construir uma usina nuclear, que acabou gerando polêmica entre o movimento ambientalista que dizia que isso seria prejudicial ao meio ambiente. Um complicado desenrolar dos fatos resultou na criação da unidade de conservação na área, chamada de Estação Ecológica de Juréia-Itatins, onde os Prados moram hoje.

A Fundação Florestal, que integra o Governo do Estado de São Paulo e é responsável pela gestão da reserva, realizou um cadastro para identificar os moradores da Juréia em 1990. Encontraram 119 famílias que ocupavam 3% da área e poderiam ficar no local. Mas, como conta Dauro, para manter o estilo de vida que levavam na mata, desde então, é preciso pedir permissões para plantar ou construir casas. Heber e Marcos contam que procuraram seguir o processo em 2019. Mas, sem conseguir respostas, construíram duas pequenas casas, posteriormente demolidas por agentes públicos. Questionada pela reportagem de Ecoa sobre o caso, a Fundação Florestal disse em nota que "o caso está judicializado e que os pedidos liminares para reconstrução das edificações foram negados pela Justiça." O órgão confirmou as demolições, mas disse que o processo teria ocorrido ainda durante a construção das casas.

"Os governos mudam, as tendências também, mas as comunidades tradicionais sempre vão lutar, protegendo seus territórios, seus locais de origem e sua cultura. Na minha opinião, é muito mais seguro a comunidade cuidar desse território. As comunidades querem fortalecer o seu modo de vida, para poder mesmo é melhorar a qualidade de vida de todos", diz Heber do Prado, neto de Dona Nancy.

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Arquivo Pessoal

Os dois agora lutam para conseguir convencer o governo do Estado de que, como membros de uma família tradicional caiçara que está na Juréia há séculos, eles também têm direito de construir suas casas ali. Atualmente, os dois moram com os avós, em uma das duas casas da família Prado que tem permissão para estar de pé.

Para tentar solucionar o problema, os Prados, que entraram de cabeça na luta pela permanência da família na Juréia e ajudaram a criar a União de Moradores e outras associações, escreveram e apresentaram à Secretaria do Meio Ambiente do Estado de São Paulo, em 2018, o Plano de Uso Tradicional (PUT), junto com acadêmicos de diferentes universidades, para propor que a preservação da Mata Atlântica seja compartilhada com as comunidades tradicionais caiçaras, que já vêm cuidando do bioma há tempos.

A expectativa é de conseguir continuar no local e criar ali a nova geração de Prados, passando todos os saberes, as histórias e as memórias adquiridas com a Mata Atlântica do cenário. Para eles, mais do que ser o lugar onde moram, o bioma é responsável por ajudá-los a manter viva a cultura tradicional caiçara.

Morar em outro lugar vai resultar na perda de muita coisa. A gente pode até levar algumas, mas muito vai mudar porque o território vai ser outro, as pessoas serão outras. A permanência aqui, para mim, é essencial para que a gente consiga transmitir esses saberes. Mas também fortalecendo com os estudos acadêmicos que a gente já tá envolvido pra cada vez melhorar mais essa convivência nossa com a mata. O meio ambiente tem que ser por inteiro, com a comunidade integrada, fortalecendo a proteção da natureza e a cultura da comunidade que mora nela.

Heber do Prado

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