Uma família pelo mar

De olho na poluição, família Schurmann volta aos oceanos para a quarta volta ao mundo a bordo de um veleiro

Carlos Minuano Colaboração para Ecoa, do Guarujá (SP) Edson Lopes Jr./UOL

Não precisa ir longe para tropeçar em algum entulho jogado nas praias. É assim no Brasil e por todo o planeta. São latinhas, garrafas pet, canudos e, atualmente, com a pandemia da covid-19, milhões de máscaras descartáveis que se amontoam em toneladas de resíduos jogados fora de forma incorreta.

A primeira família brasileira a navegar num veleiro ao redor do mundo sabe bem o tamanho do problema e está de volta aos mares para sua quarta expedição global. Desta vez, com uma missão especial: liderar um movimento mundial de combate à poluição plástica nos oceanos.

Estima-se que 11 milhões de toneladas de plástico cheguem aos oceanos todo ano - número que deve saltar para 29 milhões de toneladas até 2040, segundo estudo feito pela Fundação Ellen MacArthur, Universidade de Oxford, Universidade de Leeds e Common Seas.

Testemunha ocular desse crescente imbróglio, a família Schurmann tomou um susto já em 1998 ao chegar na desabitada ilha Henderson, no Pacífico Sul. Estavam em sua segunda volta ao mundo a bordo de um veleiro e, ali, esperavam não encontrar nada, nem ninguém. Mas a realidade era outra.

"A ilha estava coberta de lixo plástico, principalmente por insumos de pesca, como bolas, anzóis", conta Heloisa Schurmann, 75, matriarca da família, em entrevista a Ecoa, realizada a bordo do veleiro Kat.

Veleiro sustentável

O encontro com a família Schurmann foi no Guarujá, litoral sul de São Paulo. Enquanto passava por uma manutenção, o veleiro Kat foi apresentado à reportagem de Ecoa.

Construído pela família para a Expedição Oriente, terceira volta ao mundo, que teve início em 2014, o barco foi batizado em homenagem à filha Kat, que faleceu em 2006, aos 13 anos.

O plano da família era construir um veleiro autossustentável. E conseguiram, garante o capitão da embarcação, Vilfredo Schurmann, 72. "45% da energia consumida na última expedição foi limpa, na nova viagem será de 75% a 100%", diz.

Além da energia captada do sol e dos ventos, ele explica que o barco possui dois hidrogeradores (pás subaquáticas que geram energia movidas pela força da água). Para reforçar, duas bicicletas ergométricas, além de ajudar a manter a boa forma física da tripulação, também geram eletricidade.

O projeto de sustentabilidade do Kat inclui ainda um compactador de recicláveis, um dessalinizador de água e um sistema de transformação de lixo orgânico em adubo, que será utilizado em uma pequena horta para garantir os temperos das refeições a bordo.

Edson Lopes Jr./UOL Edson Lopes Jr./UOL

Em um relacionamento sério com o mar

Quem nunca pensou em largar tudo e viajar pelo mundo? Heloisa e Vilfredo Schurmann começaram a cogitar a possibilidade em 1974. Tinham 20 e poucos anos, e dois filhos: Pierre e David.

O insight veio durante férias em uma ilha do Caribe. Num passeio de veleiro, incomodados com o ronco do motor, que destoava do cenário paradisíaco, decidiram desligar motores e içar as velas.

"Olha que mágico, o barco navegando só com o vento batendo nas velas", comentou Vilfredo. "Foi o momento da virada na nossa vida, foi amor à primeira vista", lembra Heloisa. Se comprometeram a voltar ao local, a bordo da própria embarcação.

A preparação envolveu solucionar questões financeiras, desapegar de coisas materiais, aprender navegação, primeiros socorros e até como educar os filhos em alto mar. Mas rolou. Até hoje estão em um relacionamento sério com o mar.

Em 1984, já com o terceiro filho, Wilhelm, a família se lançou na primeira volta ao mundo no veleiro Guapos. "Os filhos foram crescendo a bordo, Wilhelm tinha 7 anos, David, 10 e Pierre, 15 ", conta Heloisa.

O plano era viajar três anos, mas levou uma década. O caçula, Wilhelm, que tinha 7 anos no início da expedição, viveu até os 17 dentro do barco.

Depois de educar os filhos em alto mar, na segunda expedição, realizada de 1997 a 2000, Heloisa criou um programa voltado para a educação.

Conhecimentos sobre diferentes pontos do planeta por onde passavam foram compartilhados com estudantes do mundo inteiro. "Teve a participação de mais de dois milhões de crianças", lembra ela.

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Nova expedição

Enquanto mostrava o barco, Vilfredo Schurmann contou que completará 73 anos no próximo dia 30 de outubro. As velinhas do bolo, claro, serão apagadas a bordo do veleiro. Após içar as velas no dia 29 de agosto, a família navega pela costa brasileira até o final do ano.

Os Schurmann seguem para as ilhas do Caribe, a costa atlântica dos Estados Unidos e o arquipélago das Bermudas, de onde retornarão ao Caribe para cruzar o canal do Panamá até Galápagos. Em seguida, pelo sul do Oceano Pacífico, partem para a Polinésia para finalmente, em 2023, encerrar a expedição na Nova Zelândia.

A viagem é a espinha dorsal do projeto Voz dos Oceanos, que apresenta uma proposta audaciosa: registrar a poluição marítima e identificar soluções para o problema, estruturadas em três eixos principais: ciência, educação e inovação.

A ideia nasceu no mar, em sua última volta ao mundo. A família navegava de Papua-Nova Guiné rumo ao Japão e passou por uma ilha muito pequena chamada West Fayu.

"O dia estava maravilhoso" descreve Vilfredo. "Decidimos visitar a ilha, mas quando desembarcamos encontramos uma quantidade enorme de plástico, garrafas pet, chinelos, redes de pesca e outros lixos."

Em menos de uma hora, eles recolheram mais de 300 garrafas plásticas. O filho, David, 47, filmou tudo e o vídeo do cenário estarrecedor rapidamente viralizou nas redes. "Ali nasceu o Voz dos Oceanos", afirma o capitão Schurmann.

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Ciência e educação em alto-mar

"O que sabemos fazer bem é navegar pelos mares e contar histórias", esclarece David. Ou seja, para tentar solucionar o problema do lixo nos mares, a família recorreu a parcerias com cientistas, ambientalistas, ONGs, empresas, empreendedores e gestores públicos.
O eixo científico terá o papel central de investigar o impacto que os oceanos estão sofrendo. Para a missão, o veleiro Kat terá um aparelho instalado no barco com cerca de 20 sensores.

Enquanto o barco navega, o equipamento vai gerar dados sobre plástico e microplástico nos oceanos - entre outras informações - que serão compartilhados mundialmente em um hub de conteúdo.

"Vamos compartilhar esses dados para encontrar soluções", diz David. Segundo ele, será uma rede global fechada, acessível apenas para estudos sérios, mas garante que serão centenas pelo mundo todo. Universidades do Chile, Alemanha e Brasil já pediram acesso.

A expedição também terá a bordo um drone equipado com uma câmera, chamada hiper-espectral, capaz de fazer imagens que identificam os tipos de plásticos na superfície do mar e até o tempo que estão lá. "Vamos passar por lugares que nunca foram estudados dessa forma", comemora David.

O projeto científico será coordenado pelo cientista ambiental e marinho Bruno Libardoni e por um conselho formado por 14 oceanógrafos de diferentes países.

Por onde a expedição passar, também serão realizadas jornadas educativas, com escolas e parceiros locais, sobre oceanos, resíduos e sustentabilidade. A proposta é incluir a temática no currículo escolar.

Enrique Talledo/Oceana Enrique Talledo/Oceana

Soluções para lixo

Outro eixo importante da viagem é o da inovação. A família Schurmann pretende localizar startups com soluções inovadoras para o desafio do lixo plástico nos oceanos. Serão selecionados 1,5 mil projetos do mundo todo que poderão ser adotados por indústrias, passar por aceleração e receber investimento.

Mais complexa do que viagens anteriores, a nova aventura da família Schurmann tem o apoio do Programa da ONU para o Meio Ambiente (PNUMA), dezenas de parcerias, e o patrocínio das empresas Ambev, Natura, Faber Castell e Sabesp.

Além de investir na viagem, as empresas também estão se engajando para ajudar a resolver o problema. A marca Kaiak, da Natura, vai expandir um projeto de limpeza de praias, que em 2020 retirou 300 sacos de 100 litros de resíduos do litoral sul de São Paulo. Em 2021, a marca pretende realizar a limpeza de 25 praias de nordeste a sul do Brasil, em parceria com o Instituto Ecosurf.

Recuperar e reciclar mais plástico do que produz e distribui é a bandeira da cerveja Corona, da Ambev. A empresa anunciou em junho deste ano na Semana Mundial dos Oceanos ser a primeira marca global de bebidas neutra em resíduos plásticos. E a Faber Castell prometeu até 2030 substituir o uso de plástico convencional em seus produtos por alternativas sustentáveis.

Edson Lopes Jr./UOL Edson Lopes Jr./UOL

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