Mãos na terra

Fazendas em São Paulo oferecem imersões na roça para quem busca conexão com os ciclos da natureza

Lia Hama Colaboração para Ecoa, de Bragança Paulista (SP) Otavio Bertolo/Divulgação

Numa agrofloresta formada por árvores nativas da Mata Atlântica misturadas a bananeiras, amoreiras, abacateiros, cafeeiros, limoeiros, laranjeiras e pés de mamona, um grupo de pessoas com tesouras de poda nas mãos ouve explicações sobre como aparar as espécies para rejuvenescer o sistema. "Vamos retirar as plantas senescentes, que são aquelas que estão encerrando seu ciclo de vida, e usá-las como matéria orgânica para adubar outras, que serão podadas", explica o agroecólogo Rafael Furtado, 31, responsável por orientar o manejo.

O grupo é de participantes do Lab da Terra, um programa de vivência na roça que ocorreu na virada do ano na Fazenda Serrinha, localizada na zona rural de Bragança Paulista, interior de São Paulo. Eram educadores, artistas plásticos, arquitetas, jornalistas, chef de cozinha, agente de viagens e músico que tinham, em comum, o desejo de colocar as mãos na terra e aprender um pouco sobre os fundamentos da agricultura sintrópica, que combina a produção agrícola com a regeneração das florestas e foi desenvolvida pelo pesquisador suíço Ernst Götsch.

Com duração de sete dias, o programa mergulha nos processos regenerativos da fazenda e inclui aulas de manejo de agrofloresta, horta, jardim e brejo, além de hospedagem, refeições preparadas no forno à lenha e aulas de ioga e qi gong (exercícios da medicina tradicional chinesa). O preço do pacote na virada do ano foi de R$ 1.860 por pessoa em quarto coletivo. Ainda não há data marcada para a próxima turma.

Assim como a Serrinha, outros estabelecimentos rurais no interior paulista oferecem cursos e vivências de manejo de sistemas agroflorestais. "Com a pandemia e as pessoas confinadas em casa, vimos um aumento na procura por essas atividades ligadas à terra", conta o agricultor e paisagista Marcelo Delduque, 48, um dos donos da fazenda.

Nosso intuito é compartilhar conhecimento para que outros núcleos de biodiversidade sejam formados. Os participantes levam sementes e mudas para casa e, com elas, alguns já fizeram suas próprias hortas e jardins nos prédios onde moram em São Paulo.

Marcelo Delduque, agricultor, paisagista e um dos donos da Fazenda Serrinha

Comida, diversão e arte

Localizada numa região de vales próxima à represa Jaguari-Jacareí, a Fazenda Serrinha pertence à mesma família há cinco gerações. Em 1899, o bisavô paterno de Marcelo, o político abolicionista Benedicto Moreira, comprou 120 hectares de terra para cultivo de café. Mais tarde, os cafezais deram lugar a plantações de eucalipto, pastos de boi e olaria, causando enorme impacto ambiental nas terras de onde era retirada argila para produção de tijolos.

Nos anos 1990, a família iniciou um processo de regeneração da terra, com projetos de restauração florestal, desassoreamento dos córregos e nascentes e criação de agroflorestas. As antigas instalações foram adaptadas como pousada, restaurante, sala de aula e ateliê. Em 2001, a fazenda foi reconhecida pelo ICMBio como Reserva Particular do Patrimônio Natural e hoje recebe visitas de escolas para atividades de educação ambiental e artística, assim como grupos de hóspedes como os que participaram do Lab da terra.

Todos os anos, o local sedia o Festival Arte Serrinha. "Em julho, vamos celebrar os 20 anos do festival com exposição e convidados que fizeram parte dessa história", conta o artista e curador Fabio Delduque, irmão de Marcelo. Um deles é o estilista Ronaldo Fraga, que ministrou oficinas no evento. "Tenho um carinho especial pela Serrinha. É oxigenante ficar 'confinado' em meio a uma natureza reinventada. Foi o primeiro festival que vi misturar moda com gastronomia, cinema, música, pintura, vídeo e performance. Lá fiz relações que duram até hoje", afirma.

Durante os festivais ou residências artísticas são criadas esculturas e instalações específicas para as paisagens naturais da fazenda. Por meio de trilhas, é possível observar obras de artistas como Eduardo Srur, Bené Fonteles, Hugo França, Lucas Bambozzi e o coletivo Bijari. No ponto mais alto da caminhada fica o mirante, de onde se vê uma instalação feita com plantas do artista franco-tunisiano Jean Paul Ganem. Após fechar por causa da pandemia, o Parque Natural Arte Serrinha, onde estão as obras, será reaberto para visitação no dia 22 de janeiro.

Arquivo pessoal Arquivo pessoal

Da engenharia à agricultura sintrópica

Na mesma região da Serra da Mantiqueira, em Pedra Bela (SP), encontra-se o Epicentro Dalva, um centro de produção, formação e pesquisa em agricultura sintrópica, que também oferece vivências para aprender sobre a produção de alimentos em sistemas agroflorestais.

"Metade do público que vem para cá são pessoas que trabalham com agricultura e querem se aprofundar no assunto. A outra metade é a turma que vem com espírito de colônia de férias: não tem intenção de trabalhar com enxada na mão, mas quer se conectar com a natureza", explica Karin Hanzi, 40, fundadora do espaço.

Nascida em São Paulo, Karin formou-se em engenharia mecânica e trabalhou na indústria de bicicletas e em uma usina nuclear nos Estados Unidos antes de retornar ao Brasil por ocasião da morte do pai. Ao voltar ao sítio da família, no interior paulista, onde passou parte da infância, resolveu largar a antiga profissão e se dedicar à vida na roça. Foi ali que, em 2015, fundou o Epicentro Dalva e desenvolve um sistema agroflorestal de fruticultura, horta, galinheiro e beneficiamento de ervas medicinais.

No período de formação como agricultora, Karin trabalhou na Fazenda Toca, em Itirapina (SP), como coordenadora de um projeto de pesquisa do suíço Ernst Götsch, fundador do movimento da agricultura sintrópica no Brasil. Na infância, Karin passava as férias escolares brincando entre os pés de cacau da fazenda de Ernst no sul da Bahia. "Era duro depois voltar para a cidade", conta. O agricultor suíço é amigo de sua mãe, Marsha Hanzi, pioneira no Brasil da permacultura (conceito criado nos anos 1970 que tem como base o planejamento e a execução de espaços sustentáveis).

O Epicentro Dalva oferece cursos sobre agricultura sintrópica que duram de dois dias a um mês. No programa presencial de uma semana, o mais procurado, há aulas de produção de mudas de hortaliças e árvores, manejo de sistemas agroflorestais, implantação de canteiros de fruticultura e produção de óleos essenciais. O preço é R$ 800 com hospedagem — as refeições são preparadas pelos próprios participantes. Durante a pandemia também foram desenvolvidos cursos online com vídeos gravados.

Arquivo pessoal Arquivo pessoal
Arquivo pessoal

Terapia na roça

"Recebemos muitas pessoas que estão em crise e desejam mudar de vida. A gente brinca que elas vêm em busca de 'terraterapia'", afirma a cientista social Flávia Altenfelder, 31, proprietária da Fazenda Malabar, localizada em Itatiba, no interior de São Paulo. A fazenda é sede da Associação Balaiar, que produz alimentos em sistemas agroflorestais. A associação conta com uma rede de 40 apoiadores que todos os meses contribuem financeiramente em troca de cestas semanais com itens produzidos no local.

A Balaiar recebe visitas de escolas e oferece programas de estágio e cursos imersivos de cultivo agroflorestal. A vivência de um mês custa R$ 1.500, incluindo hospedagem, alimentação e aulas práticas e teóricas. "Temos vagas de apadrinhamento, em que madrinhas e padrinhos pagam o curso para quem não pode custeá-lo. Com isso, atraímos pessoas que desejam, por exemplo, criar hortas urbanas nas periferias de Campinas ou de São Paulo. Isso tem sido bem legal", conta Flávia.

Segundo a cientista social, a frente educativa é importante para reconectar as pessoas com a natureza por meio de cursos e vivências. "Debaixo de sol e chuva, os participantes colocam as mãos na terra e vão entendendo, na prática, de onde vem o alimento que eles consomem e quais são seus ciclos de produção. Eles começam a perceber que é possível ter modelos agrícolas que são mais gentis com as pessoas e com o ecossistema ao seu redor."

Arquivo pessoal Arquivo pessoal

As vivências são uma ferramenta poderosa para o trabalho de sensibilização acontecer no corpo.

Flávia Altenfelder, proprietária da Fazenda Malabar

Divulgação

O que é agricultura sintrópica

Agricultura sintrópica é um conjunto de princípios e técnicas sistematizadas pelo agricultor e pesquisador suíço Ernst Götsch, 74, em mais de quatro décadas de experiência no campo da agricultura sustentável no Brasil e em países da América Latina e Europa. Por meio de sistemas agroflorestais, busca conciliar a produção de alimentos com a regeneração das paisagens naturais.

Esse tipo de agricultura se inspira no funcionamento das florestas, em que diversas espécies convivem e criam ecossistemas mais ricos do que a monocultura tradicional. Espécies florestais são combinadas com culturas agrícolas, compondo um sistema biodiverso. Periodicamente espécies específicas são podadas e as podas permanecem dentro do sistema, tornando-se biomassa para a cobertura do solo. Essa biomassa evita a erosão, retém a umidade e nutre o solo, criando um sistema autossuficiente.

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