VIGOR PELA EDUCAÇÃO

'Fui vítima de preconceito na universidade por ser pobre', diz Gil do Vigor

Juliana Domingos de Lima De Ecoa, em São Paulo (SP) Paulo Campos/Divulgação

"Tô rica, Brasil!". Antes do BBB 21, outro acontecimento já tinha mudado a vida de Gilberto Nogueira. Através do sistema de cotas, ele pôde entrar na Universidade Federal de Pernambuco para cursar economia. De família pobre, o autor da célebre frase "Eu não vim do lixo para perder para basculho" diz que não teria conseguido fazer faculdade se não fossem as políticas que democratizaram o acesso ao ensino superior no Brasil nas últimas décadas. O ex-BBB é um grande defensor da importância da Lei de Cotas, que acaba de completar dez anos.

Gil concluiu o curso com muito esforço — trabalhando para se manter, estudando com vigor para tirar as melhores notas e enfrentando o preconceito de colegas contra cotistas. Esse vigor que acompanha seu nome, segundo ele, nasceu como um protesto contra quem o oprimia.

Hoje, depois de sua participação no Big Brother torná-lo uma personalidade nacional com milhões na conta, Gil não abandonou a carreira acadêmica. Está fazendo um doutorado na Universidade da Califórnia em Davis, nos Estados Unidos.

"Estou me estabelecendo, indo com mais frequência à igreja e já consigo ter menos medo do idioma. Tem sido uma experiência muito legal. Acho que agora as pessoas conseguem ver o Gil do Vigor, o Gilberto Nogueira, o Juninho, o economista, o ex-BBB, tudo junto. Eu sou tudo e ser tudo é maravilhoso", disse a Ecoa.

Da Califórnia, ele falou sobre os impactos da política de cotas, os desafios que enfrentou em sua jornada acadêmica, a importância da representatividade e de tornar a economia um tema mais acessível.

Edclenio Bernardo/Divulgação Edclenio Bernardo/Divulgação

Cotas

Ecoa — A Lei de Cotas acaba de completar dez anos. Como a democratização do acesso à universidade pelas cotas impactou a sua vida?

Gil do Vigor — Eu nunca teria entrado na universidade se tivesse que pagar, porque eu era "pobre de marré deci". Imagina, ganhando mil reais por mês, o curso de economia na maioria das universidades privadas custava de quatrocentos a seiscentos reais, tendo que pagar aluguel, água, luz, alimentação e tantas outras coisas. [Sem democratizar o acesso] a academia perde mentes pensantes. Com o sistema de cotas, a gente começa a ver a diferença na universidade. Isso faz com que [ela] cresça tanto em termos de ciência quanto [em termos] sociais, porque coloca as pessoas para conviverem com a diferença e acho que esse convívio é muito positivo para nossa sociedade.

O sistema de cotas veio como um "resolvedor" rápido de um problema que existe há muito tempo. Alguma coisa tinha que ser feita, mas a gente sabe que durante esse tempo não dá pra viver apenas do sistema de cotas: precisamos focar em melhorar a educação pública para ter um sistema em que os jovens consigam ter igualdade em suas competições acadêmicas e tenham preparo vindo tanto de escolas privadas quanto públicas para acessar as universidades públicas.

Você enfrentou dificuldades no ambiente universitário?

O sistema de cotas foi uma salvação. Por isso sou tão grato pelas políticas públicas terem sido feitas focando de fato em dar acesso aos jovens mais humildes, para que a gente conseguisse ver mais diversidade dentro da universidade. Mas ao mesmo tempo a gente acaba sofrendo, porque as pessoas acham que as universidades são do povo que tem mais dinheiro. Eu vejo algumas pessoas falando que o sistema de cotas está tirando a vaga de outras pessoas, quando a gente não está tirando a vaga de ninguém. Estamos simplesmente tentando resolver um problema que nunca deveria ter acontecido, que é a disparidade educacional entre pessoas com diferentes rendas.

Quando a gente entra na universidade, as pessoas começam a olhar o cotista como alguém que está ali sem merecimento. Quando não, nós merecemos. Por que não é só ser cotista para entrar na universidade, precisa de uma nota.

Em termos acadêmicos, várias variáveis afetam quão preparado eu vou estar. A renda dos pais, a escola de que você veio, os teus amigos, se você trabalhou ou não, tudo está relacionado à nota que você vai tirar no vestibular. Quando você é colocado pra disputar com pessoas que têm uma realidade social parecida com a sua, essa competição acaba sendo um pouco mais justa.

Quando a gente entra na universidade, a gente tem que explicar isso e lidar com esses olhares. Como essa política de cotas foi implantada há alguns anos, as pessoas hoje já começam a ter uma visão diferenciada disso. A gente começa a fazer com que as pessoas entendam um pouquinho mais sobre a importância do sistema de cotas, que ninguém está roubando vaga de ninguém, pelo contrário, nós estamos de fato reivindicando aquilo que é nosso.

Mas ainda assim é uma dificuldade conviver nesse ambiente em que as pessoas nos olham diferente. Elas têm algumas frases e palavras que acabam nos machucando, alguns falam que não é proposital, mas é justamente nessa inocência que se faz com que um aluno que lutou muito pra conseguir desista do curso, não consiga se manter ali porque começa a se achar inferior.

A síndrome do impostor começa a atacar em cima de você. Ela afeta a todos, é aquela ideia de que você não é merecedor. Só que imagina quão mais pesado ela afeta quem veio de escola pública, entrou através do sistema de cotas e começa a olhar pros seus pares e percebe que as pessoas do seu convívio te veem como um impostor.

Gil do Vigor

Caique Borges/Divulgação Caique Borges/Divulgação

Representatividade

Há pessoas que defendem que as cotas deveriam ser só sociais e não raciais. Como você vê essa questão?

As pessoas perguntam o seguinte: 'se você é pobre vai ter o mesmo ensino, então por que cota para o preto?'. É muito diferente, porque o preto além de não ter base acadêmica tem que lidar com o racismo estrutural que existe, que faz com que ele seja desestimulado. Não é militância, a gente está falando sobre um problema real que os cientistas estão pesquisando e trazendo dados concretos que mostram que isso acontece. O problema do racismo é muito tenso. Se você convive com isso, além da renda, isso vai afetar diretamente a nota do vestibular. É o mínimo nós tentarmos equalizar essas diferenças.

Eu durante muito tempo me considerei um homem preto, mas quando eu falava isso pras pessoas, elas olhavam pra mim e falavam que eu era no máximo moreno. Aquilo me incomodava. É importante falar sobre autodeclaração: eu me autodeclaro preto e ninguém tem que questionar isso. Foi um ponto tocado que me machucou muito [no BBB21], mas entendi que era algo que nós precisávamos falar. Os problemas surgem [no reality] porque refletem o que a nossa sociedade já vive. O Big Brother consegue trazer problemas que a gente não consegue ou não quer enxergar.

Em relação a isso, você se tornou uma personalidade nacional, faz comercial, está em programa de TV. E tem outras dimensões de representatividade que você traz como um jovem que é nordestino, LGBTQIA+ e religioso. Qual a importância disso?

Assim como me inspirei em várias pessoas durante a minha jornada acadêmica, quero inspirar também outros jovens que se veem [em mim]. Tanto na questão da religião - eu continuo indo pra igreja, eu me amo, eu aceito quem eu sou e minha minha conexão com Deus é uma questão minha, não diz a respeito a ninguém mais -, na questão acadêmica, porque eu fui vítima de preconceito na universidade por ser pobre, mas também por outras coisas. A gente sabe que a homofobia está em todas as esferas da nossa sociedade, ainda mais num curso que é predominantemente branco, elitizado.

Eu consegui o meu respeito por conta das minhas notas. Eu falava 'você pode falar o que for, meu amor, vai ter que aguentar o meu dez enfiado na sua goela'. O vigor é um protesto. Quando estou sendo humilhado, destratado, eu vigoro pra fazer as pessoas engolirem aquilo. A gente queria um lugar em que a gente pudesse ter respeito sem precisar gritar nem lutar. Mas infelizmente a gente ainda vive nessa sociedade em que a gente precisa gritar, perder a voz e muitos perderam a vida pra que as pessoas pudessem entender o que o respeito significa em todas as esferas.

Cada vez que alguém vinha com algum ato de racismo, preconceito, homofobia, ou elitismo pra cima de mim eu esfregava dentro da goela deles o meu vigor e as minhas notas.

Facilitar os termos acadêmicos faz com que a nossa sociedade se liberte. As pessoas precisam aprender economia pra se libertarem. Nossa sociedade só vai ser transformada quando for liberta através da educação e da informação.

Gil do Vigor

Economia

Você mostra esse seu conhecimento de maneira acessível, quando fala de temas complexos em uma linguagem simples. Como tornar a economia mais compreensível?

A gente fala sobre PIB, inflação, câmbio, extrato, índice de Gini e tudo isso é o economês. E a gente precisa ser acessível. O vocabulário técnico é muito válido entre os acadêmicos porque pula várias etapas. Facilita a conversa, é muito mais rápido e a gente se entende, é quase como códigos.

Mas a grande massa da população não entende que a economia rege o mundo. A economia não é só sobre PIB, sobre dólar. Ela está vinculada à política, à violência. É o que define se tu está passando fome ou não. É algo muito importante de nós entendermos. Isso afeta a nossa democracia. Como é que eu vou conseguir fazer uma escolha consciente se dentro daquela proposta, na parte econômica que é tão importante, eu não consigo entender dois mais dois do que eles estão falando?

Você já tinha essa ideia quando escolheu estudar economia?

Não tinha não, não vou mentir pra te agradar visse? [risos] Eu assisti o filme "À procura da felicidade", vi lá o Will Smith e amei. Ele criava uma realidade que não existia pra fingir pro filho dele que estava tudo bem, quando estava tudo bem ruim, tudo lascado! Aquilo me machucou tanto porque eu me via naquela situação, naquela realidade, me fazia chorar. Mas no final ele fica bilionário, né? Eu ainda estou lutando pra chegar lá, mas a gente já andou uns degraus. Eu falava: vou ser igual a esse homem. Ele trabalhava na bolsa de valores, então eu fui procurar economia porque queria isso. Mas acabei me apaixonando não pelo mundo das finanças, mas pela política.

Qual legado você gostaria de deixar para o Brasil como economista?

A consciência social de como economista ver os números mas também as pessoas. Pra mim não vale a pena ser o país que mais produz se a gente não conseguir converter esse PIB, esses índices, em realidade pras pessoas, em tirar a miséria, trazer bem-estar de fato pra elas.

Divulgação Divulgação

Entrevistas

Divulgação

Marina Santa Helena

"Por que precisamos ter tantas peças de roupa?"

Ler mais
Carlos Macedo/Divulgação

Jeferson Tenório

"A literatura foge dos rótulos identitários"

Ler mais

Djamila Ribeiro

"Luta ambiental sem trazer a questão racial é vazia"

Ler mais
Topo