Ecoa - Você critica a construção de conhecimento tradicional e busca romper com ela na sua produção acadêmica e artística. O que essa produção tem a ver com o colonialismo?
Grada Kilomba - A produção de conhecimento, assim como a linguagem, como o vocabulário, está ancorada em uma história colonial. E serve a uma história colonial, patriarcal, de homofobia, que exclui uma série de identidades e de corpos. Uma série de disciplinas foram criadas exatamente para apoiar essa história colonial. A filosofia, a psicologia, a etnologia, a antropologia, a pintura, o cinema, o teatro. Não há nenhuma disciplina que nós usamos hoje que não tenha sido instrumentalizada e criada para produzir um discurso sobre o outro, para definir quem é o nós em relação ao outro.
É quase impossível trabalhar com qualquer disciplina ou falar numa linguagem, com um vocabulário que não esteja ancorado na história colonial, que é uma história de 600 anos. E que cria uma hierarquia entre humanidades, entre os vários corpos humanos, tornando certos corpos os verdadeiros representantes da condição humana, enquanto outros são marginalizados e colocados numa plataforma sub-humana.
A produção de conhecimento está baseada numa relação de poder e de violência. Isso é a primeira parte. A segunda parte é que nós temos que ter em conta que o acesso à produção de conhecimento foi negado à maior parte dos seres humanos. O seu conhecimento foi invalidado.
Portanto, a produção de conhecimento que nós conhecemos através dessas disciplinas é mínima em relação à humanidade. Há uma série de vozes e de corpos que não puderam fazer parte dela. Isso é o outro lado da moeda: não só o conhecimento cria uma hierarquia entre a condição humana, como grande parte dos humanos não puderam fazer parte dessa produção de conhecimento.
Como fazer as coisas de outra maneira?
Para mim, o que é mais fascinante é exatamente desmantelar essas disciplinas. É pensar e entender que, como artista, eu não quero, nem preciso, nem posso usar as linguagens que me colocaram como outra, como inferior no discurso. Portanto, para criar uma narrativa, para criar uma imagem, eu tenho que ter a liberdade e um espaço, uma plataforma experimental para criar uma nova linguagem que não está lá, que não é igual à linguagem que me foi dada, porque a linguagem que me foi dada coloca-me sempre fora da minha humanidade.
Nós estamos num momento em que temos a liberdade, mas também quase a obrigação de desobedecer às linguagens que nos foram dadas. É importante fazer isso. É importante criar novos discursos, novas narrativas, novas imagens, novos movimentos.
A vontade de recontar mitos gregos tem alguma relação com isso?
Exatamente. Minha trilogia sobre isso se chama "O mundo das ilusões". Primeiro, eu acho a mitologia grega e todas as mitologias encantadoras. São histórias que revelam a tragédia humana, que colocam questões muito humanas: decisões, conflitos, medos, desejos, angústias. A mitologia coloca toda a psicologia humana num roteiro e numa encenação que eu acho absolutamente fascinante.
O que é interessante é ver quais são as histórias que são contadas, como são contadas e contadas por quem. A mitologia é tão complexa e tem tantas associações e tantas metáforas e imagens que pode ser desmantelada de muitas maneiras diferentes.
E, dependendo destas perspectivas, vêm uma série de outras revelações e outras partes da história que até agora foram silenciadas. Isso é que eu acho fascinante. Aquilo que parecia que já estava esgotado, contado, dependendo das artistas que contam, que olham pras histórias, conseguem revelar uma outra história que sempre esteve lá, mas que para a audiência é sempre uma surpresa, porque nunca pensou que a história de Édipo tem a ver com a política da violência, ou que a de Narciso tem a ver com a política da invisibilidade ou a de Antígona tem a ver com a morte, com a cerimônia, e com a produção de memória.