Não há uma só história

Em busca de narrativas apagadas pelo racismo, grupos reconstroem memórias urbanas com roteiros, livros e mapas

Marcelle Souza Colaboração para Ecoa Douglas Cometti/Folhapress

Durante alguns anos, a região do Anhangabaú, no centro de São Paulo, era conexão obrigatória entre a casa e o trabalho do jornalista Guilherme Soares Dias. Ele caminhava apressado pelas escadarias, passando pelo obelisco e pelo chafariz, inspirado na Fonte dos Desejos de Roma, tendo um painel de azulejos portugueses ao fundo. "Eu nunca gostei de passar por ali, porque sempre achei que tinha uma energia forte. Só depois de um tempo que descobri que a região era um mercado de pessoas escravizadas", conta.

O comércio escravagista acontecia onde hoje é o Largo da Memória e o Obelisco dos Piques, nos séculos 18 e 19. Depois da abolição, o mesmo local tornou-se ponto de encontro, de convívio e de organização política da população negra de São Paulo. Mas essas não são as memórias registradas nos monumentos e nos equipamentos públicos da região.

"O racismo epistemológico apaga as pessoas negras da história, e nas cidades não é diferente. Então, quando a gente vê os nomes de ruas, escolas e monumentos, percebe que não somos representados", diz Guilherme, fundador da Black Bird, empresa que desde 2018 trabalha com turismo centrado na história afro-brasileira. Entre as suas principais atividades está a Caminhada São Paulo Negra, que tem objetivo de mostrar não só lugares marcados por memórias de opressão, mas destacar personalidades negras que contribuíram para o desenvolvimento da cidade.

Nos últimos anos, dezenas de iniciativas como essa proliferaram pelo Brasil, envolvendo profissionais de áreas diversas — turismo, comunicação, história, geografia, urbanismo —, com o objetivo comum de não só denunciar o silenciamento, mas promover roteiros, debates, criar aplicativo, mapa e até bloco de carnaval para divulgar as memórias negras pelas capitais do país.

"A história da cidade, como está posta, é uma narrativa dos vencedores. Então a gente quer pensar a história como múltipla, diversa e em disputa. Porque assim ela desce do 'pedestal sagrado' e passa a ser parte do cotidiano, porque eu, você, todo mundo também faz história", diz Caróu Oliveira, integrante do coletivo História da Disputa: Disputa da História.

Douglas Cometti/Folhapress
Rogério Cassimiro/Folhapress Rogério Cassimiro/Folhapress

Não se ver na cidade

A origem desses projetos muitas vezes parte de uma análise de experiências pessoais, da vontade de se enxergar na cidade, na história urbana. "O maior conhecimento da memória afro-brasileira, e a conscientização de seus apagamentos, me reconectou com um processo individual de revisão da minha própria afrodescendência. Tive clareza de que fui orientada, ao longo da minha vida, a esbranquiçar minhas referências, origens e, consequentemente, minha identidade, repelindo por anos minha autoimagem negra", diz Isabel Seixas, idealizadora e coordenadora do Rolé Carioca. O projeto tem três roteiros pela região do Cais do Valongo, antigo ponto de chegada de africanos escravizados no Rio.

O desafio é buscar fontes e produzir materiais para contar essas histórias, já que boa parte não está nos registros oficiais. Para construir a Caminhada São Paulo Negra, por exemplo, Guilherme decidiu ouvir pessoas mais velhas, enquanto o historiador Fabio Dantas Rocha, do projeto Crônicas Urbanas, foi investigar jornais antigos para saber onde e como pessoas negras ocupavam as ruas da cidade.

Nesse percurso, Fabio descobriu lugares de memória e organizações de resistência em um vasto acervo da imprensa especializada. Entre as histórias mapeadas está a do Pátio do Colégio, localizado no centro de São Paulo e marco da conversão forçada de indígenas na fundação da cidade. "No início do século 20, essa região era chamada de trincheira negra, porque as pessoas chegavam da zona leste e ficavam ali, todas bem vestidas, esperando a hora de entrar nos bailes aos domingos", conta.

A pesquisa virou um livro, o "Guia Itinerários da Experiência Negra - Um passeio histórico por São Paulo", construído a partir não só da bibliografia, mas também das leituras que jovens ativistas da periferia da zona oeste de São Paulo faziam desses espaços. "Conhecer o passado dá mais sentido à luta de hoje, mostra como a resistência é a mesma, dignifica a batalha contra o genocídio da juventude negra", diz ele

Criado em 2015, o projeto História da Disputa: Disputa da História faz rodas de conversa e aproveita as vivências dos participantes para discutir a história como algo coletivo e em movimento. "Pensamos que é uma disputa não só na forma de narrar, mas também na construção do conhecimento, admitindo outros documentos, nos baseando em princípios e processos coletivos, horizontais e participativos. Nesse sentido, memórias e afetos são parte fundamental da história, por exemplo", conta Caróu Oliveira.

Essa metodologia, baseada na tradição oral, é também uma forma de homenagear tanto personagens negras que tinham posição de destaque em suas épocas — como o arquiteto Tebas, tema de livro lançado em 2019 —, mas também os anônimos que ajudaram a construir a história.

"Gosto de falar sobre mulheres como Dandara, que representa a resistência, que foi líder de uma instituição que representa a liberdade, mas também de outras líderes de quilombos e de candomblé", diz André Luís Souza Carvalho, professor de história e cofundador do Experiência Griô, em Salvador.

Felipe Benicio / Divulgação Felipe Benicio / Divulgação
Felipe Benicio / Divulgação

Liberdade não é só Japão

Quando, em 2018, a praça e a estação de metrô Liberdade, no centro de São Paulo, receberam o acréscimo de Japão ao nome, muita gente descobriu, pelo debate desencadeado nas redes sociais, que na verdade a região guarda uma história de sofrimento e de luta de pessoas escravizadas. Isso porque mais de um século antes da imigração japonesa, ali ficava o Largo da Forca, onde eram executadas penas contra negros e indígenas. A região também foi um dos primeiros bairros de pessoas alforriadas.

A mudança de nome para Japão-Liberdade ocorreu após o pedido de um empresário que reformou a praça e queria uma homenagem aos 110 anos da imigração japonesa ao Brasil. A alteração exigiu a substituição das placas e custou cerca de R$ 1 milhão ao Metrô de São Paulo.

Uma das versões para a origem do nome do bairro diz que ele seria uma homenagem a Chaguinhas, como era conhecido Francisco José das Chagas, soldado negro enforcado no largo em 1821 por liderar uma revolta em Santos (SP) contra o não pagamento de salários. "Liberdade" teriam sido os gritos da população que acompanhava o cumprimento da sentença.

Patrícia Oliveira, professora de história, bibliotecária e mestranda em Ciências Sociais e Humanas pela Universidade Federal do ABC (UFABC), explica que há poucos documentos sobre a biografia de Chaguinhas, o que faz com que ficção e realidade se misturem. "Na bibliografia de origem acadêmica, a versão mais utilizada é a que já indica a relação entre os liberais da cidade e a nomeação de logradouros em homenagem à independência do país — e que nas pesquisas mais recentes inclusive já se menciona uma marcação de lugar para um sentimento em construção, que era o do paulista e de sua elite política. Contudo, popularmente e não menos importante ou sem significados aditivos, a versão sobre o enforcamento do Chaguinhas é a mais usual em meios diversos."

Para a pesquisadora, isso se deve ao fato de que "o enforcamento de Chagas teve todos os elementos para um evento inesquecível, por sua violência e intransigência das autoridades. E ele [o soldado] tem grande poder de síntese sobre dois processos: o da injustiça na execução do quase mal sucedido enforcamento, e também da alienação de setores da população acerca da representação de uma forma de memória na cidade, como a alteração de nome dessa rua ou local", diz Patrícia.

Outro ponto de memória é a Capela dos Aflitos, construída no século 18 e que há décadas espera uma restauração do poder público. Em 2019, a prefeitura instalou uma placa na saída do metrô Liberdade para sinalizar que ali funcionava o Largo da Forca, e outra em frente à capela, para identificar o antigo Cemitério dos Aflitos.

Até hoje, no entanto, não há homenagem ao soldado Chaguinhas.

Eu continuo achando os adornos orientais interessantes e importantes para contar a migração japonesa na Liberdade, mas tem uma outra história ali. A gente tem uma luta para construir um Memorial dos Aflitos, para lembrar do cemitério [de mesmo nome, onde eram enterradas pessoas condenadas à forca] e da presença negra no bairro

Guilherme Soares Dias, jornalista e co-fundador do projeto Black Bird

Marcelo Justo / Folhapress

Bexiga não é só Itália

Se a Liberdade ficou conhecida em São Paulo pela imigração japonesa e, posteriormente, também pela chegada de chineses e coreanos, o Bexiga atrai visitantes como um dos bairros mais italianos da cidade. Mas o que muita gente não sabe é que ali estão guardadas memórias de resistência e importantes manifestações da cultura negra.

Localizada na rua 13 de maio, a Paróquia Nossa Senhora Achiropita foi fundada em 1926 e todo ano realiza uma das festas mais famosas do bairro, que leva o nome da santa e tem no cardápio as pastas italianas. Só que nessa mesma igreja foi fundada, na década de 1980, a Pastoral Afro, com atuação em toda a cidade de São Paulo. Além disso, a paróquia celebra, todos os meses de maio, a Missa da Mãe Negra, também conhecida como "missa afro". Trata-se de uma homenagem às mulheres escravizadas, uma celebração às formas de resistência, mas também uma manifestação contra o racismo e a intolerância religiosa.

Outra celebração importante na região é a festa de São Benedito, santo negro e descendente de escravizados. No Bexiga, a procissão sai todos os anos da Escola de Samba Vai-Vai, acompanhada da bateria da agremiação, que tradicionalmente comemora seus títulos agradecendo na mesma igreja, recebendo as bênçãos do padre e, por vezes, de um babalorixá. O bairro também é lar de terreiros de candomblé, visitados em roteiros de memória como o da Black Bird.

Um livro importante para saber mais dessa história é "Bexiga - Um Bairro Afro-Italiano", do jornalista Marcio Sampaio de Castro.

O Bexiga abrigou comunidades negras que ocuparam o espaço com suas práticas culturais e resistência, como o samba e o baião de dois, encontrados em mais de um ponto da rua 13 de maio, sem falar na Vai-Vai. Com a valorização do território e a expansão dos ricos para o oeste da cidade, o embranquecimento por meio de imigrantes atuou forte ali, inclusive mais tarde taxando o bairro de italiano como estratégia turística

Caróu Oliveira, historiadora e integrante do coletivo História da Disputa : Disputa da História

Douglas Campos / Divulgação

Zona Leste de negros e indígenas

Na última década, um grupo de pesquisadores moradores da zona leste de São Paulo vêm trabalhando a ideia de patrimônio e memória na região. Ururay, o coletivo, quer dizer "rio dos lagartos" e remete ao nome que era dado para a área às margens do rio Tietê onde os índios Guaianás se abrigaram, marco da ocupação deste espaço, em 1560, formando o Aldeamento de São Miguel. Entre as ações que o grupo já fez estão livros, documentário e exposição, além de participação na Jornada do Patrimônio, evento anual da prefeitura da capital.

"Os negros, que aqui chegaram na condição de escravos e depois de libertos, atualmente são a maioria da população, mas não recebem por parte da política pública de preservação a devida atenção. Nós surgimos para dar visibilidade às memórias do nosso território que foram ignoradas, apagadas ou deturpadas. A partir das histórias oficiais, levantamos as contradições. Por exemplo: como o bairro da Penha, que tem a Igreja da Irmandade do Rosário dos Homens Pretos, construída por homens negros há mais de duzentos anos, é de origem Italiana?", questiona o geógrafo Julio Cesar Marcelino.

Ele explica que a igreja é a única construída por escravizados que existe na cidade de São Paulo. "Ela data de 1802 e ainda permanece de pé." Em relação ao patrimônio materializado, Julio elenca ainda outro local. "Também podemos citar a Praça Dona Micaela Vieira que fica no bairro da Penha que leva o nome de uma parteira negra que viveu no bairro na virada do século 19 para o 20", conta.

A história da parteira foi transformada, inclusive, em um cordão carnavalesco. Em 2019, segundo ano da saída do bloco, os organizadores foram surpreendidos pela presença da bisneta de Micaela, que ouviu falar do cordão e decidiu ir ver do que se tratava. "É uma família centenária da Penha", conta Julio. "Veio ela, a sobrinha-neta. A ancestralidade já se reconectou", disse a historiadora Patrícia Freire, também integrante do Ururay, em entrevista anterior ao UOL.

Sobre narrativas que precisam ser amplificadas, Marcelino dá outros exemplos na zona leste paulistana. "A EMEF Sebastião Francisco o Negro, que fica no bairro Cidade Líder em Itaquera, faz homenagem a uma liderança que fez parte dos sindicatos dos pedreiros de São Paulo e foi presa pela ditadura de Getúlio Vargas e depois pela Militar, pós-1964. Em Itaquera, na Cohab I, há o time de futebol fundado por uma maioria de jogadores negros e que leva o nome de Negritude, um dos maiores clubes da várzea da região", conta ele.

A zona leste de São Paulo é uma região que traz desde a sua ocupação a presença indígena. O atual bairro de São Miguel se originou no aldeamento de Ururay. Essas terras eram cheias de caminhos, que os povos originários utilizavam para chegar ao litoral, e que depois viraram grandes avenidas, como a Sapopemba

Julio Cesar Marcelino, geógrafo e integrante do coletivo Ururay

No Rio, uma Pequena África

Chamada de Pequena África, a história da região portuária do Rio de Janeiro ficou mais conhecida em 2011, quando a revitalização da área para a Copa do Mundo de 2014 e os Jogos Olímpicos de 2016 trouxeram à tona os vestígios do Cais do Valongo, porta de entrada de aproximadamente um milhão de africanos trazidos como escravos para o Brasil. A zona é um lugar de memória ainda pouco visitado, apesar de o antigo Cais ter sido declarado Patrimônio Histórico da Humanidade pela Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura) em 2017.

Um dos sítios arqueológicos mais importantes da região foi descoberto em 1996, durante a reforma de uma casa no bairro da Gamboa. O terreno abrigou o Cemitério dos Pretos Novos, considerado o maior das Américas, onde estima-se que tenham sido enterrados, no século 19, de 20 a 30 mil pessoas recém-chegadas da África e que não aguentavam os maus tratos da viagem. Enquanto a revitalização da zona portuária, projeto iniciado em 2011, teve um custo total estimado em R$ 10 bilhões, o Instituto dos Pretos Novos, que abriga o cemitério de mesmo nome, quase fechou em 2018 por conta do corte de verbas do município.

Por ali, são tombadas pelo IPHAN (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional) as estátuas gregas em referência a Minerva, Marte, Ceres e Mercúrio que adornam o Jardim Suspenso do Valongo, projetado pelo arquiteto-paisagista Luis Rey e inaugurado em 1909, com inspiração nos parques franceses do século 19. "O Jardim do Valongo, que é um mirante para a Pequena África, é a história do apagamento, porque as estátuas gregas mostram o esforço de invisibilização do tráfico de africanos escravizados", diz Hebe Mattos, professora e pesquisadora da UFF (Universidade Federal Fluminense).

Ao lado das professoras Martha Abreu, também da UFF, e Keila Grinberg, da Unirio (Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro), Hebe Mattos é uma das organizadoras do Passados Presentes - Memória da Escravidão no Brasil. O projeto lançou um aplicativo e um mapa com os principais pontos da memória da diáspora africana na zona portuária do Rio. No roteiro, há locais relacionados ao período da escravidão, mas também os que simbolizam a resistência e contribuições da população negra à cultura brasileira. Um deles é a Pedra do Sal, um quilombo urbano considerado o berço do samba no século 20.

YASUYOSHI CHIBA/AFP YASUYOSHI CHIBA/AFP

A memória negra na cidade está em todo lugar, já que cerca de 50% da população se declarou preta ou parda, segundo o Censo de 2010 do IBGE. Assim, há espaços históricos emblemáticos [no Rio], como a região do Estácio, terreiros, escolas de samba, espaços dos antigos quilombos, como a Pedra do Sal, e os atuais quilombos urbanos. Mas também é importante pensar em lugares contemporâneos, como o Viaduto de Madureira, a Feira das Yabás, o Trem do Samba, os bailes funk, todo e qualquer espaço onde a juventude negra tenha liberdade de criar memórias

Isabel Seixas, produtora e idealizadora do Rolé Carioca

Acervo Pessoal

Onde estão os afrocuritibanos?

Fora do eixo Rio-São Paulo, a história oficial também silenciou a memória de negros e indígenas em outros Estados do País. Em Curitiba, ativistas paranaenses criaram até um termo para discutir a importância da contribuição da população negra para a cidade, onde 19,7% da população se declara parda ou preta, segundo o IBGE.

"Certa vez, li um livro chamado 'Os Curitibanos' e em nenhum momento encontrei menção a afrodescendentes. A partir de então, passei a questionar: Qual é a geografia dessa Curitiba em que o negro não é citado, mas o europeu, que chega a partir de 1870, sim?", questiona Adegmar José da Silva, conhecido como Candiero, conselheiro nacional de políticas de promoção da igualdade racial e idealizador do roteiro Linha Preta Curitiba, que busca visibilizar o negro na memória da cidade.

Uma das etapas desse processo de silenciamento foi o Movimento Paranista, do início do século 20, que tinha o objetivo de criar uma identidade regional para o Estado, promovendo datas, heróis e manifestações culturais. A iniciativa faz parte de um esforço nacional, que com a instituição da República desejava difundir a ideia de um país moderno e que visava o progresso. Assim, a bandeira do Paraná ganhou um pinheiro e uma erva-mate, símbolos do desenvolvimento e dos mitos indígenas. O passado negro, no entanto, não fez parte dessa construção identitária.

Só que a própria história da cidade tem dois personagens negros muito importantes. Antônio e André Rebouças (ao lado) desembarcaram no Paraná no século 19, após uma temporada de estudos na Europa, e impulsionaram o desenvolvimento do Estado com construções como a Ferrovia Paranaguá-Curitiba. Filhos de um dos primeiros advogados negros do período imperial, Antonio Pereira Rebouças, chegaram a participar de grupos abolicionistas.

Hoje, o bairro Rebouças é uma das localidades mais valorizadas de Curitiba, mas pouca gente sabe da sua relação com dois dos mais importantes engenheiros do Brasil.

Mas é no centro da cidade que o projeto Linha Preta Curitiba aponta os principais símbolos de memória, ainda pouco conhecidos. É ali, por exemplo, que estão a segunda igreja construída na cidade, a antiga Igreja do Rosário dos Pretos de São Benedito, de 1737; a Sociedade 13 de Maio, o segundo clube social negro do Brasil; e a praça Zumbi dos Palmares, inaugurada em 1988. "Em todo o centro histórico existem marcas da presença negra, uma população que foi trazida à força e está presente desde o começo da nossa história", conta Candiero, idealizador do roteiro.

O projeto de embranquecimento de Curitiba foi incentivado com políticas públicas. O racismo estrutural deu aos imigrantes ferramentas institucionais, houve distribuições de terras, materiais, sementes, oportunidades, estrutura para que as etnias europeias pudessem fincar raízes no sul. Mas os povos negros e indígenas permanecem até hoje no esquecimento

Adegmar José da Silva 'Candiero', idealizador do projeto Linha Preta Curitiba

Divulgação / Governo da Bahia Divulgação / Governo da Bahia

Pelourinho e a resistência na Bahia

A cidade brasileira que se orgulha de ser a mais negra fora da África, Salvador, também carrega uma dívida com o seu passado. Palco hoje de rodas de capoeira, percussão e valorização da cultura afro, o Pelourinho era espaço de açoites públicos de pessoas negras durante o período de escravidão.

"O Pelourinho é um patrimônio da história, mas é também um espaço de disputa. Ele traz uma memória profunda, porque representa a tortura e a dor, o lugar onde o escravizado era levado para pagar por um 'crime'. Só que, para a elite, um fugitivo em uma situação de escravidão é um criminoso, enquanto para outros é um herói", diz André Luis Souza Carvalho, professor de história e cofundador do Experiência Griô, iniciativa que promove passeios de resgate da memória e da cultura afro-brasileira.

Atualmente, os casarões do centro da cidade, construídos com mão de obra escravizada, estão rodeados de referências ao catolicismo e a políticos e intelectuais brancos, como as estátuas do poeta Gregório de Matos e do primeiro governador-geral do Brasil, Tomé de Sousa. Apenas em 2008 o monumento à Zumbi, em referência à resistência quilombola em Palmares, foi inaugurado. Acervos de museus, como o da UFBA (Universidade Federal da Bahia) e o Muncab (Museu Nacional da Cultura Afro-brasileira), são algumas das tentativas de contar a história a partir de personagens até então silenciados pela história oficial.

A minha ideia não é lembrar o escravizado que apanhava, mas mostrar histórias de resistência, de quem conseguiu fugir e ganhar a mata graças ao domínio da capoeira, das mucamas exploradas que envenenavam os senhores para se defender do estupro

André Luis Souza Carvalho, professor de história e cofundador do Experiência Griô

A história é dinâmica

Em meio às manifestações que ganharam as ruas do mundo após o assassinato de George Floyd, norte-americano negro, em 25 de maio, por um policial branco, ativistas passaram não só a condenar atos racistas, mas também a questionar símbolos de opressão. Foi assim que manifestantes derrubaram a estátua do traficante de escravizados Edward Colston, na Inglaterra, e do navegador Cristóvão Colombo, nos EUA. Eles se inspiraram na campanha de estudantes sul-africanos, em 2015, pela retirada da estátua de Cecil Rhodes da Universidade do Cabo.

Ações como essas levantaram, no Brasil, debates em torno de representações como o Monumento às Bandeiras, do escultor Victor Brecheret, e a estátua Borba Gato, ambos em homenagem aos bandeirantes, responsáveis pelo assassinato de indígenas. Mas o que fazer com as estátuas do Jardim Suspenso do Valongo, com o Pelourinho e com a Praça Japão-Liberdade, por exemplo?

"A história é dinâmica, temos que fazer este debate. Não é mais possível termos estátuas e monumentos que prestam homenagem a figuras que levaram a aniquilação, tortura e morte a milhares de seres humanos", diz Julio Cesar Marcelino, produtor cultural e geógrafo, integrante do grupo Ururay.

"Se há tanto tempo lidamos com a presença desses símbolos opressores, o ato da destruição é legítimo e expressa uma espécie de 'basta' diante da violência institucionalizada em símbolos, de uma seleção de fragmentos de memória em favor da continuidade de uma ideologia dominante, abusiva, tirana. Faz parte da disputa de narrativa", opina Isabel Seixas, do projeto Rolé Carioca.

Para Adegmar José da Silva, do roteiro Linha Preta Curitiba, faltam informações críticas sobre esses monumentos. "As pessoas dizem que temos que derrubar estas estátuas. Acredito que algumas sim, mas não todas. Elas deveriam ser contextualizadas, com reflexões sobre a personagem e o período em que elas foram colocadas, porque as estátuas de escravocratas, por exemplo, não mencionam o seu currículo de violência."

Hebe Mattos, professora da UFF, pensa parecido. "É importante que esses lugares passem por processos de ressignificação. Não precisa trocar tudo, porque não é se livrar do passado, mas dar informações: Quem foi? Tinha escravos? Era preto ou branco? Por que tantos homens e poucas mulheres?"

Para a historiadora Caróu Oliveira, para além de derrubar ou erguer estátuas, é preciso reconhecer as culturas cotidianas que constrõem as cidades.

"Muito mais do que ressignificar os monumentos, queremos deslocar o sentido, encontrar outros monumentos, monumentalizar outras coisas. Dessa forma, pode ser positivo pensar em monumentalizar a prática dos sapateiros na praça João Mendes, por exemplo. Não é colocar estátua, mas mostrar que essa prática, que essa existência, são dignas de respeito, de valorização", diz ela.

Leandro Paulo/Divulgação Leandro Paulo/Divulgação

+ Especiais

Divulgação

Kunumi MC

Rapper quer quebrar estereótipos e mostrar tecnologias indígenas

Ler mais
Livia Duarte

Bloco carioca

Grupo fez encontro da loucura com a cidade virar carnaval

Ler mais
Rogério Cassimiro/Folhapress

Kabengele

"Modelo de democracia neoliberal que temos é um modelo em crise"

Ler mais
Topo