Por duas décadas Helio de La Peña não se deu conta de que era um dos únicos, talvez o único humorista negro na maior emissora de televisão brasileira. Foram precisos 61 anos de idade, três filhos, uma porção de enquadros policiais, conselhos de ativistas do movimento negro e centenas de lembranças até ser capaz de revisitar memórias que envolvem o preconceito com sua raça.
Helio considerava-se uma criança no meio do caminho. Não havia nascido na favela, nem na zona sul do Rio de Janeiro. Tinha uma vida que chamava de desimportante, sem extremos sociais, e foi assim que viveu boa parte dela: como um infiltrado misturado à paisagem. "Eu brinco que era 'Mogli, o menino preto'. Fui criado no meio dos brancos", diz.
Dia desses, um amigo o lembrou de um jantar em sua casa. Era um dia banal, em que nada parecia ter acontecido, e que foi apagado pela mente de Helio. Sentado à mesa, a empregada preta reclamou ao patrão de que não serviria a alguém da mesma cor. A presença de Helio desfazia um combinado silencioso na casa, pois ela mesma não se sentava onde o garoto esperava o jantar. A recordação é uma das amostras sobre como um dos sete criadores do humorístico "Casseta & Planeta" tem entendido a presença como um homem preto na sociedade brasileira. "Há coisas que enterramos na memória para ter a ilusão de que somos iguais a todos", diz em entrevista à Ecoa.
Helio Antonio do Couto Filho nasceu em 1959 na Vila da Penha, de onde vem o nome artístico. É também um trocadilho com a Praça Saenz Peña, na Tijuca, zona norte do Rio, um pouco mais abastado e onde desejava morar um dia. Conheceu os amigos Beto Silva e Marcelo Madureira no curso de Engenharia de Produção pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) - lá, criaram um jornal para tirar sarro com a urgência e a seriedade do movimento estudantil. Os demais "cassetas" saíram de publicações como o tradicional "Pasquim" e uniram-se na clássica publicação "Planeta Diário". Nos anos 1980, a Globo os contratou para escrever o revolucionário "TV Pirata". No início da década de 1990, estrearam um programa próprio. O Casseta & Planeta Urgente! ficou no ar até 2010. Por dois anos, também fizeram o Casseta & Planeta Vai Fundo.
A emissora e o grupo de humor romperam contrato por uma suposta pressão de anunciantes e pelo desgaste natural do tempo. O Casseta se desfez como se desfaz uma banda de rock que tocou por muitos anos, com um misto de respeito ao passado e o cansaço da estrada. Claudio Besserman Viana, o Bussunda, morreu de ataque cardíaco durante a Copa do Mundo em 2006; Marcelo Madureira tem uma empresa de conteúdo para a internet; Beto Silva lançou um livro; Carlos Manoel tornou-se documentarista; Hubert Aranha voltou às charges de jornal e Reinaldo Figueiredo pôde seguir carreira como contrabaixista de jazz. Já Helio, o único negro do grupo, escreve roteiros e vendeu a adaptação de um livro de sua autoria para o cinema. O longa "Correndo atrás" deve ser lançado em circuito comercial — streaming ou cinemas, a depender da Covid-19 — até o final deste ano.
O grupo ainda se reúne e racha dinheiro para manter os direitos autorais sobre a marca "Tabajara", empresa fictícia de produtos de segunda-mão, uma piada com produtos piratas. No início dos anos 2000, "organização Tabajara" foi uma sensação nacional. Ironicamente, o uniforme do Tabajara Futebol Clube, o "pior clube de futebol do mundo", nas cores amarelo e roxo, tornou-se um artigo tradicionalmente pirateado em todo o país.
Com o tempo, o humorístico desgastou, nas palavras de Helio, e novos comediantes surgiram, como o Pânico e o CQC. "Virou a briga o leão velho contra o leão novo", lembra. O humorista ainda é lembrado por esquetes como "Chocolate Cumprimenta", em que o personagem Chocolate cumprimenta pessoas nas ruas em uma paródia com a novela "Chocolate com Pimenta". Mas hoje quem o cumprimenta, para manter a piada, aperta a mão de um cara diferente. "Só agora percebi e pude explorar a riqueza da minha trajetória", diz a Ecoa.