Leão na vizinhança

Moradores de Hollywood aprendem a conviver com leão da montanha e celebram nova passarela para vida selvagem

Fernanda Ezabella Colaboração para Ecoa, de Los Angeles (EUA) Santa Monica Mountains National Recreation Area

Depois de quase 30 anos morando nas colinas de Hollywood Hills, a californiana Kat resolveu instalar câmeras de segurança em sua residência durante a pandemia. Mas o que ela captou nos últimos meses foi muito além dos sujeitos suspeitos que perambulavam pela vizinhança na alta madrugada, de olho nos veículos da vizinhança.

Kat descobriu um desfile de animais selvagens bem à porta de sua casa. Filmou raposas, coiotes, bobcats (lince-pardo em português), veados e, mais surpreendente de todos, o morador mais ilustre e esquivo da região: um leão da montanha. Desde pelo menos 2012, o animal de nome P-22 habita o Griffith Park, um dos maiores parques urbanos dos EUA, aquele onde fica o letreiro de Hollywood, localizado a poucas quadras de Kat.

O felino de 55 kg virou garoto-propaganda dos esforços de conservação da vida selvagem em Los Angeles, segunda grande metrópole do mundo a conviver com animais do gênero, junto a Mumbai, na Índia. Aqui, a população de uma dúzia de leões (ou onças-pardas, no Brasil) corre o risco de extinção devido ao isolamento criado pelas infames freeways da cidade. É um problema que um projeto de US$ 85 milhões pretende resolver construindo a maior passarela selvagem do mundo.

"Certamente não saio mais para andar com meus cachorros às 5 da manhã. Foi bem nesse horário que P-22 apareceu duas vezes", contou Kat, pedindo para não divulgar seu sobrenome para evitar que curiosos descubram seu endereço e venham atrás do animal. "E quinze minutos depois, vi meu vizinho passar na câmera."

No primeiro vídeo, captado em setembro, P-22 passeia na calçada de sua casa e vai embora raspando em seu carro. No segundo, de janeiro, ele circula bem no meio da rua, devagar, balançando a cauda longa.

Gato fantasma

No nome P-22, o P vem de puma, outra alcunha para leão da montanha, também conhecido como cougar ou pantera. O número vem da sequência de felinos tagueados pelo National Park Service (NPS, responsável pelos parques nacionais). A agência do governo federal acompanha os animais nas Montanhas de Santa Mônica, em Los Angeles, desde 2002.

No total, já foram registrados 95 leões na região e arredores, mas hoje restam apenas 10 que seguem rastreados por coleira. P-22 é o único morador de Griffith Park, um território vasto e montanhoso com 4.310 acres (o Parque Ibirapuera em São Paulo, por exemplo, tem 390 acres). Cerca de 10 milhões de pessoas circulam pelo parque por ano para fazer trilhas, andar de bicicleta, jogar golfe ou visitar seu observatório, zoológico e dois museus.

"P-22 não sobreviveria num Central Park de Nova York, por exemplo. Não é um local grande o suficiente, nem está conectado a um outro espaço aberto", explicou a Ecoa a conservacionista Beth Pratt, diretora da sede californiana da National Wildlife Federation. "Sempre brinco que P-22 queria ficar famoso e por isso veio para Hollywood. E ficou."

P-22 passou a ser filmado com mais frequência no último ano pelas casas ao redor do Griffith Park graças à popularização das câmeras de segurança. "Escondam seus pets!" costuma ser a reação mais comum quando os vídeos são publicados na rede social de bairros Nextdoor. Há também os que vibram com sua presença e os que pedem sua retirada imediata.

Fazendo jus ao apelido de gato fantasma dos leões da montanha, P-22 quase nunca dá as caras ao vivo. A exceção foi quando surgiu debaixo da varanda de uma casa em 2015. Ele também é suspeito de ter sumido com um coala do zoológico em 2016.

Santa Monica Mountains National Recreation Area Santa Monica Mountains National Recreation Area

Atravessando a freeway

P-22 embarcou numa travessia perigosa para chegar até o Griffith Park. Através de teste genético, descobriram que ele é filho de P-1, o primeiro tagueado pelo NPS, em 2002. Se nascido na mesma região do pai nas Montanhas de Santa Mônica, P-22 cruzou duas das mais movimentadas freeways do país e os bairros de Bel Air e Beverly Hills para atingir o parque.

Mais de 20 pumas já morreram cruzando as rodovias. O caso mais recente aconteceu em dezembro. Além das colisões, outra grande causa de morte é envenenamento.

Leões da montanha são nômades, vivem sozinhos e brigam até a morte para defender seu território, que costuma variar de 60 mil a 160 mil acres. P-22 se vira com menos de 6 mil. Sem receber visitas de fêmeas, virou o solteirão mais famoso de Hollywood Hills. Animal noturno, alimenta-se de um veado por semana e, se calhar, traça outra presa menor de lanche.

"Tem muita comida no parque para P-22 por conta dos veados, uma população um pouco anormal devido aos gramados do cemitério vizinho e às celebridades que moram ao redor em casas repletas de grandes jardins. Todos se alimentam bem", acredita Pratt, ativista que aos 46 anos fez sua primeira tatuagem, o rosto de P-22.

"É uma ótima plataforma para a causa. Todo mundo quer saber quem é ou, se já o conhecem, perguntam como ele está."

Em fevereiro, P-22 teve a bateria de sua coleira trocada. Ele foi capturado pelo NPS e passou por um check-up. Jeff Sikich, biólogo da agência, disse que o leão está em boas condições e seu peso segue igual ao de pesagens anteriores. "Sua travessia e sua vida segura no parque são provas de que ainda existem espaços selvagens em LA", escreveu Sikich.

National Park Service National Park Service

Principais causas de morte dos leões da montanha

  • Conflitos por causa de território

    Ou seja, pumas matando pumas em confrontos

  • Colisão com veículos

    23 animais morreram ao colidir com veículos desde 2002, o mais recente em dezembro, chamado P-78

  • Envenenamento por rodenticida

    Entre 28 animais testados, 27 deram positivo para exposição ao veneno e seis morreram diretamente de envenenamento. Em setembro, o governador da Califórnia assinou um projeto de lei que proíbe o uso do rodenticida para proteger leões da montanha e outros animais

Divulgação

Uma mega passarela selvagem

As Montanhas de Santa Mônica são uma cordilheira costeira de 65 km de extensão. É possível atravessar parte dela pela estradinha cênica Mulholland Drive até chegar às praias de Malibu. Duas freeways construídas ao redor e por entre as montanhas, a 101 e a 405, isolam a população animal e prejudicam a reprodução das panteras angelenas.

"Esses felinos podem se adaptar a muitas coisas, menos a uma freeway de 10 faixas", disse Pratt, autora do livro "When Mountain Lions Are Neighbors" (Quando Leões da Montanha são Vizinhos, ed. Heyday). "Sua diversidade genética está muito baixa. No verão passado, tivemos os primeiros sinais alarmantes de filhotes com anomalias. Vamos chegar a um ponto em que eles vão cruzar entre si até deixarem de existir."

A passarela Liberty Canyon, cuja construção deve começar em novembro, será uma ponte para outros ecossistemas. O projeto de US$ 85 milhões (R$ 445 mi), em estudo há 20 anos, será o maior corredor selvagem do mundo numa região urbana, em Agoura Hills, noroeste de Los Angeles. Atravessará a 101, por onde passam 400 mil veículos por dia.

A campanha #SaveLACougars, da National Wildlife Federation, já levantou US$ 18 milhões (R$ 94 mi), boa parte da iniciativa privada. "Trabalho há dez anos neste projeto e temos muitos doadores alinhados que só estão à espera da planta, que ficará pronta nos próximos meses", disse Pratt.

A passarela deve evitar que outros pumas venham morar no Griffith Park porque dará uma opção de saída muito mais fácil ao norte das montanhas. Em janeiro, o NPS tagueou o mais recente felino do programa na região, o P-95, com 1,5 ano de idade. Em junho do ano passado, três filhotes foram encontrados com a mãe, P-54, uma puma de três anos.

Santa Monica Mountains National Recreation Area Santa Monica Mountains National Recreation Area
Reprodução/Instagram

Coleira de 900 gramas

P-22 mudou a vida de Beth Pratt, e não apenas por causa da tatuagem. Ela trabalhou duas décadas em defesa do meio ambiente e dos animais em dois dos maiores parques nacionais dos EUA, o Yosemite, no norte da Califórnia, e o Yellowstone, divisa entre Wyoming e Montana, e agora se dedica à vida selvagem nas cidades.

"Ele transformou meu jeito de abordar conservação", disse Pratt, que já viu cinco leões da montanha, mas nunca P-22. "As ideias que eu tinha durante minha educação eram de sempre manter vida selvagem e pessoas separadas. Quando li sobre P-22, não acreditei. As pessoas jogam golfe e andam de pônei no Griffith. Parecia impossível."

Ao se aprofundar na história dos pumas em L.A. e sua falta de espaço, ficou nítido que os humanos precisam também se adaptar. Para ajudar a levantar fundos para a passarela, Brett organiza desde 2015 um festival anual dedicado ao P-22, em que ela lidera uma caminhada de 80 km para simular a travessia que ele fez até o parque.

Para fazer a trilha mais realista, ela veste uma coleira de rastreamento de 900g no pescoço, a mesma usada pelos pumas, que depois é doada ao NPS.

"Sei que há muitas críticas por causa da coleira, e eu seria a primeira a admitir se achasse que são prejudiciais", disse. "Mas já a usei cinco vezes por 50 milhas e posso dizer que mal a senti. E olha que nem tenho tantos músculos no pescoço como esses animais."

Brett gosta de circular nos eventos com uma cartolina em tamanho real do P-22, perfeita para fotografias, embora saiba que a passarela não deve ficar pronta a tempo de ajudar seu felino favorito, hoje com 11 anos (seu pai, o mais velho estudado pelo programa da NPS, morreu aos 12 anos).

P-95 e os novos filhotes podem ser os primeiros a se beneficiar do corredor. É algo muito legal de se contemplar. Nos dá esperança.

Beth Pratt, ativista pelo meio ambiente e direitos dos animais

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