"Tenho a pretensão de ser um intelectual", diz o professor doutor Kabengele Munanga.
As aspas podem parecer falsa humildade se comparadas ao currículo do antropólogo brasileiro de origem congolesa. Nascido de pais iletrados na pequena cidade de Bakwa-Kalonji, Munanga foi o primeiro africano a lecionar na USP (Universidade de São Paulo), e o primeiro negro docente da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da universidade, em 1980. Recebeu a Ordem de Rio Branco, comenda máxima do ministério das Relações Exteriores, e a Comenda do Mérito Cívico-Cultural da Presidência da República Federativa do Brasil — além do título de Cidadania Baiana, pela assembleia legislativa do Estado da Bahia.
Mas sua mente inquieta tem uma definição exigente do ofício: "Intelectual é um cientista que influencia na mudança da sociedade humana. Você pode ser um cientista que passa a vida no laboratório, mas não se incomoda com os rumos da sociedade. É cientista sim, mas não é intelectual".
Claro que o impacto que um indivíduo tem sobre os rumos da sociedade só é mensurável em perspectiva histórica. Mas as digitais de Munanga, hoje com 79 anos, estão impressas em grandes avanços em prol da igualdade racial no Brasil, como a política de cotas e o estabelecimento da obrigatoriedade dos estudos africanos e diaspóricos no ensino nacional. Voltando umas décadas mais, sua contribuição está inscrita na Constituição de 1988, no combate a todas as formas de discriminação. Em sua rotina, há décadas, luta pelo rompimento com a hierarquização do conhecimento acadêmico.
Quando foi pego pela pandemia, já havia despachado seus livros e computador para São Paulo, para onde retornaria após seis anos como professor convidado na Universidade Federal do Recôncavo da Bahia. Se tivesse seu equipamento, talvez já trabalhasse na autobiografia, que agora promete para o pós-quarentena. "Quero que meus netos saibam quem foi o avô, caso se interessem", diz. Sorte deles. Mas é certo que a diáspora pessoal do professor encontrará leitores além das fronteiras consanguíneas. Afinal, se houvesse profusão de histórias negras escritas — tão particulares e, ao mesmo tempo, tão universais —, não precisaríamos inscrever em lei a necessidade de passá-las às próximas gerações.
Da cidade de Cachoeira (BA), munido de um celular, Kabengele Munanga concedeu entrevista a Ecoa. Disse não ser fã da futurologia para pensar o momento — "apesar da esperança em um mundo melhor". Prefere observação e ponderação. "A questão mais interessante é se essa experiência pode servir de reflexão para a construção de outros modelos de sociedade ou humanidade", diz ele.