Moda que transforma

"Roupa é para vestir os corpos. Independente do gênero": para estilista Isaac Silva, moda é política

Cristina Judar Colaboração para Ecoa, de São Paulo (SP) Felipe Larozza/UOL

Foi no ateliê de acolhimento e de criação livre, onde havia rendas, linhas e fitas, botões e recortes de tecido colorido por todos os cantos, que Isaac Silva, ainda criança, descobriu o que gostaria de fazer pelo resto da vida. Pelas mãos da costureira Morena, sua conterrânea na pequena cidade de Barreiras (BA) e grande amiga da família, que recebeu sua iniciação no mundo da moda e teve a oportunidade de desenvolver ainda mais o seu olhar e a sua sensibilidade para todas as formas que, futuramente, dariam sentido à sua existência e resultariam na concretização de seus talentos.

"As pessoas chegavam com um metro de tecido, revistas de moda, uma fofoca (risos) e eu amava tudo aquilo, pois sempre fui uma criança muito curiosa, ouvinte e observadora."

O encantamento que esse universo oferecia a Isaac, hoje com 33 anos, a ajudou, inclusive, a superar muitos dos medos e violências, que, naquela época, já eram uma realidade. "Eu queria brincar de bola com os meninos, eu queria brincar de casinha com as meninas, mas não me aceitavam. Às vezes eu tinha que mudar de caminho para casa porque um vizinho atirava pedras em mim. Até que um dia também atirei pedras nele. Hoje revido ao mostrar o quanto somos importantes."

Felipe Larozza/UOL

A gente quer viver, a gente quer fazer parte dessa sociedade, e a maneira que eu tenho de mostrar isso é através do meu trabalho com a moda.

Isaac Silva, estilista

Felipe Larozza/UOL Felipe Larozza/UOL

"Casa de Mulheres"

Morena, a costureira do bairro, também foi o maior exemplo sobre como exercer sua profissão com generosidade e sem preconceitos. "Perto da minha rua havia uma 'casa de mulheres'. Elas faziam suas fantasias com a Morena, que certa vez me chamou pra colaborar. Confeccionamos umas roupas inspiradas na selva, tipo tigresa. Era uma coisa meio chacrete, uma espécie de maiô, bem decotado."

Um dia, enquanto caminhava na rua ao lado da mãe, uma daquelas mulheres, que se chamava Kauana, a cumprimentou. Para sua mãe, incomodada pelo contato da filha com alguém que, segundo ela, fazia "coisas erradas", a aprendiz de costureira explicou que se tratava de uma cliente da Morena. "Uma pessoa que, além de não ter preconceitos, me ensinou a fazer roupas com amor."

Outro momento decisivo para Isaac foi a mudança com a família, aos catorze anos de idade, pra Salvador, cidade que abriu novas possibilidades de desenvolvimento pessoal e profissional e proporcionou o encontro com elementos culturais que passariam a ser fundamentais em suas criações. Como a proximidade com as religiões de matriz africana, por exemplo. "Tem uma música da Timbalada que diz mais ou menos assim: quem nasce na Bahia já nasce exaltando os orixás. E eu fui uma criança que soube adorar a natureza, exaltá-la da melhor maneira possível", conta a estilista, que mais tarde, descobriu ser filha de Iemanjá.

Foi também em Salvador que Isaac assumiu sua identidade de gênero. "Eu me revelei como pessoa queer para minha mãe. No começo ela levou um susto, pois tinha uma criança designada como do sexo masculino e esperava que eu desempenhasse o papel de 'homem provedor'. Quando mostrei que existiam outras formas de eu prover sendo uma pessoa trans, uma pessoa queer, de um modo diferente da maneira machista que a sociedade impõe, ela falou: uau, isso é possível."

Fotos Desfile da coleção da estilista Isaac Silva no SPFW

Desfile da coleção da estilista Isaac Silva no SPFW

"Roupa é para vestir corpos"

Transformada e internamente enriquecida, Isaac teve ainda mais certeza do que queria quando, após ter concluído a faculdade de moda em Salvador, se mudou para São Paulo para trabalhar na área, onde adquiriu experiência e mais conhecimentos, estabeleceu contatos e conexões. Por outro lado, recebeu muitos nãos e teve de lidar com a intolerância que há no mercado. "É real a falta de aceitação em relação às pessoas nordestinas e pertencentes à bandeira LGBTQIA+. Eu disse a mim mesma que não queria sofrer e me perguntei: se uma pessoa preconceituosa tem uma loja e consegue ganhar dinheiro com isso, por que alguém como eu não pode?".

Em 2015, resolveu sair do trabalho em que estava e, além de suas economias, juntou os valores do fundo de garantia e do seguro desemprego para investir em sua própria grife, que, conforme fez questão, levaria o seu nome. "Não queria criar uma marca e ficar atrás dela. Resolvi mostrar tudo o que tenho de incrível e maravilhoso. Eu adoro o meu nome e a marca tinha que ser Isaac Silva".

Em um caminho contrário a muitas empresas do segmento, em que o culto à magreza e o respeito a um único sistema binário masculino x feminino é regra, a estilista faz as coisas do seu jeito e conforme os seus princípios, criando roupas para todos: "Roupa é para vestir os corpos. Independente do gênero, independente do peso, independente da cor, [o que eu faço] é uma roupa para pessoas. Sempre pensei em trazer isso, seja para as passarelas, para as lojas ou para o dia a dia".

Ela diz que, no mundo glamourizado e irreal da moda, apresentar um casting realmente diversificado é uma atitude política. "Tem pessoas negras de pele mais clara, brancas, gordas, trans... porque elas também compram roupa e sonham com moda."

O que faz a moda não ser correta são os preconceituosos, misóginos e racistas que trabalham nesse sistema e o usam de uma maneira que não é legal. Então mostro como a moda não precisa ser tão distante das pessoas, assim como eu achava que ela era distante de mim"

Isaac Silva, estilista

Flora Negri
Coleção da Isaac Silva no SPFW

Panterona

Falando em inclusão e diversidade, Isaac destaca a importância do desfile da coleção "Panterona" — nome inspirado nos "Panteras Negras" partido e movimento político antirracista, popular nos Estados Unidos nas décadas de 1960 e 1970 — ocorrido na última São Paulo Fashion Week, em junho deste ano: "Foi muito lindo poder trazer Márcia Pantera, assim como outras mulheres trans, drags e homens gays e todo esse universo militante, para a passarela".

No caso de Isaac, a palavra diversidade não se trata de algo "para inglês ver", o que é muito comum. Diz respeito a algo constante e presente em todo o processo, de ponta a ponta: todas as pessoas envolvidas pertencem a grupos minoritários, são vítimas de preconceitos ou foram/são historicamente e socialmente prejudicadas.

"A minha gerente é uma mulher gorda, a maioria dos meus vendedores são pessoas negras, minha assistente de produção é uma mulher trans, conto com um costureiro boliviano e um africano, a mão de obra é uruguaia e boliviana e a maioria das pessoas que prestam serviços para a marca são mulheres. Sempre procuro trabalhar com gente que, de alguma forma, foi desacreditada em outros ambientes profissionais.

Isla de Araújo, a assistente de produção de Isaac, conta como sua vida profissional foi impactada após ter conhecido a estilista:

"Nos conhecemos há dez anos, na Casa de Criadores. Eu fazia cursos de moda e estava à procura de um estágio, sem sucesso. Mandei um e-mail pra ela, que me respondeu, dizendo que era possível. Então comecei a estagiar e iniciamos a nossa amizade. Depois de um tempo, Isaac disse que, no dia que tivesse uma loja, iria me contratar. E foi exatamente isso o que aconteceu. Somente ela me estendeu a mão. A oportunidade que ela me deu, e que nenhuma outra pessoa quis oferecer, foi maravilhosa".

A vida queria me levar para as ruas e, se não fosse a Isaac, meu futuro teria sido muito diferente.

Isla de Araújo, A assistente de produção de Isaac Silva

Felipe Larozza/UOL Felipe Larozza/UOL

"Hoje vendemos para o mundo"

Quando questionada sobre a presença da marca em outros países, a estilista revela que a ainda está se preparando para a internacionalização, embora as vendas para o exterior já sejam uma realidade. "Hoje vendemos para o mundo todo via e-commerce. Cinco por cento de nossos pedidos já são do exterior, feitas por brasileiros que moram fora e por estrangeiros que gostam da moda brasileira". Isaac também há fez parcerias com grandes marcas como Havaianas e Magazine Luiza.

Além das lojas nos bairros de Santa Cecília e Pinheiros, ambas na cidade de São Paulo, a abertura de novas unidades faz parte dos planejamentos da marca para os próximos meses: "Estamos estudando abrir uma loja no Rio de Janeiro e uma em Salvador, além de um showroom que possa vender para o Brasil todo em lojas multimarcas. Fora isso, planejamos lançar a próxima coleção em novembro", finaliza Isaac. Radiante.

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