Você diz que tenta escrever sobre a "relação do homem com a terra". Poderia ser mais específico? O que isso quer dizer?
Estamos falando de direitos humanos elementares. Quando a gente fala do direito à terra, ao território, falamos do chão onde pisamos e é uma relação que permeia tudo. Meu passado, como geógrafo, de entender o trânsito humano, sobre a Terra, me faz ver uma ligação muito forte entre nós, humanos, e o ambiente onde vivemos. A relação do homem com a terra é o foco de quando escrevi "Torto Arado": uma terra que muitas vezes é negada de inúmeras formas. Hoje, acrescento que a degradação do mundo nos afeta e afeta nossa relação com tudo.
Por que você decidiu trabalhar no Incra?
Por necessidade. Eu tinha concluído a graduação e queria um trabalho seguro Achei que seria professor, e fui aprovado em quatro concursos. No mesmo período, fui aprovado para trabalhar no Incra. Eu precisaria ir trabalhar no Maranhão quando comecei no Incra, o que foi um peso favorável. Era uma experiência nova, que me desafiaria mais do que a sala de aula. Não achei que ficaria tanto tempo, mas me envolvi e foi um privilégio. Não sei o problema que as pessoas têm contra as palavras, mas gosto da expressão "Brasil profundo". Acho que cheguei a um Brasil profundo. Saí da periferia de Salvador e entrei em um mundo rico em diversidade, desigual, e que ainda pulsa muito forte neste país.
E o que você fazia?
Comecei trabalhando com educação no campo. Era uma coisa belíssima. Acompanhei muitos trabalhos de alfabetização de trabalhadores rurais e era especial. Eu vi pessoas que aprendiam a ler e a escrever em idade avançada e era muito poderoso. Hoje há cursos até de pós-graduação para trabalhadores rurais. Depois fiz documentação de trabalhadoras rurais, voltado só para mulheres, e trabalhei para regularizar terras quilombolas. É uma política profunda que dá oportunidade de conhecer a história do país e saber o que aconteceu na pós-abolição. São comunidades que resistiram, de trabalhadores que migraram, viveram errantes, e que, depois da abolição, formaram famílias, comunidades, em um sistema de solidariedade que é um exemplo para todos. Não é um sistema perfeito, mas permitiu resistir às investidas do Estado para destruí-los de todas as formas.
Você já presenciou conflitos de terra?
O conflito faz parte desde sempre. Eu falei só das coisas boas, mas o conflito é permanente e nunca deixou de existir. Foi atenuado, mas nos últimos anos se acirrou de forma assustadora. Várias lideranças com quem me reuni e conversei foram assassinadas. O motivo foram os conflitos fundiários. Antes do Incra, para mim, eram acontecimentos do noticiário. Pouco antes de entrar no Incra, lembro do assassinato da freira Dorothy Stang [em 2005], do Massacre de Eldorado dos Carajás. Eram informações da imprensa, mas no Incra vivi isso cotidianamente. Inclusive, me senti assediado muitas vezes por pessoas contrárias às políticas públicas da instituição. Não ficamos livres do assédio de fazendeiros. A nossa vida também está em risco quando a gente aceita esse trabalho.
Foram ameaças de morte?
Hoje as pessoas são mais cuidadosas e não fazem ameaças de morte diretamente. É feito de outras formas. Já ouvi: "você não venha mais aqui"; "eu sei de você"; "eu sei por onde você anda". Não são ameaças diretas, mas veladas. A gente tem que enfrentar tudo isso, mas não deixamos de ficar com medo. Nós vemos pessoas no cotidiano, na linha de frente, que tombam. O medo não passa.
Ficou mais difícil a demarcação de terra com Bolsonaro?
Desde 2016 ficou difícil, mas o atual presidente deixou claro, durante a campanha, quais seriam as diretrizes do governo dele. Em discursos, dizia que não haveria um centímetro de terra para indígenas e quilombolas. É mais ou menos assim que tem funcionado. É uma diretriz dele e das pessoas que o apoiaram, como empresários e organizações ruralistas. É a diretriz do governo dele, mas não houve uma ruptura com a nova presidência e era algo que já vinha há um tempo.
Há uma ordem direta para demarcar menos?
Não há ordem direta, mas há sinais. Faltam recursos e muitas coisas para efetivar esse tipo de política.
Há anos se fala em distribuir a terra de maneira igualitária no Brasil, promovendo uma reforma agrária ampla. Isso é de fato possível? Um dia vamos chegar lá?
Terra tem. Falta vontade política para fazer a reforma agrária. A reforma que se defende hoje já se distanciou muito do que era no passado, pois houve uma evolução no pensamento sobre o que é a reforma agrária. O Brasil se tornou um país com uma população urbana significativa, e a cada década a população urbana cresce. Mas quem vive no campo ainda precisa ser ouvido, assistido, e acredito que a reforma agrária é, sim, o caminho para a redução das desigualdades. Mas não só. É um dos caminhos, como uma renda básica universal e a educação.
E como o acesso à terra se conecta com o país?
O grande latifúndio produz commodity e não produz alimentos para o mercado interno. Não é a alma do agronegócio [o mercado interno]. Eles produzem para exportação, e o que chega na nossa mesa vem do agricultor familiar. É o pequeno e médio que abastece o mercado interno. A reforma agrária não diz respeito apenas às populações do campo, mas diz respeito a todos os brasileiros. Estamos falando de ofertas de alimentos na nossa mesa. Um país que não pensa sobre isso peca imensamente.
Isso reflete na qualidade da alimentação? Por exemplo, a produção orgânica fruto da reforma agrária e do MST?
A produção orgânica é uma reivindicação de muitas pessoas para consumir alimentos sem veneno. O agronegócio não encampa o tema. Ao contrário. É uma "guerra" entre defensores de pesticidas e os que defendem a agroecologia. Se eu puder escolher um alimento, é claro que escolherei o orgânico, sem veneno. Imagina botar um veneno na boca. É algo que me preocupa imensamente. Em campo, já vi muito a utilização e adoecimento de quem tem contato com agrotóxicos. É assustador. Se adoece e mata quem aplica, é claro que o que vai para nossa mesa vai gerar um problema acumulativo e problemas de saúde.
Há uma solução que valha para os problemas de acesso e moradia tanto no campo como na cidade?
Não tem uma solução, mas muitos caminhos para mitigar o problema. O Brasil é um país avançado em termos de legislação. A nossa Constituição é avançada em muitos aspectos. O Estatuto da Terra e da Cidade já prevê mecanismos e punições para quem tem terras e bens econômicos usados para a especulação imobiliária, como o IPTU progressivo que reverte o valor do imposto para moradia popular. O Estatuto da Terra é de 97, já antigo, e temos uma legislação avançada que só precisa ser aplicada e não há interesse político. Aí, tem uma conjunção de forças sempre tentando impedir os avanços sociais.