Entoando cantos de revolta

Ao fazer da filosofia arma de questionar opressões, Ivo Queiroz samba para embalar reflexões e tocar corações

Guilherme Henrique Colaboração para Ecoa, de São Paulo Theo Marques/UOL

Ivo Queiroz, 68, cursava o último ano da graduação em filosofia na PUC (Pontifícia Universidade Católica), em Curitiba (PR), no início da década de 1980, quando foi dominado por um incômodo. Não queria fazer uma monografia sobre filósofos brancos e europeus. Não ver sua pele negra refletida nos pensadores que encontrava nos livros deu ao hoje professor universitário aposentado a certeza do que fazer. "Precisava estudar o meu povo, minhas raízes", diz.

Escolheu filosofia após refletir sobre sua existência como ser humano. Mas adotou no magistério uma missão: ante professores e alunos majoritariamente brancos, privilegiou o estudo de intelectuais negros para influenciar a formação de uma consciência negra no país.

Nas ruas, foi uma das pessoas responsáveis por estabelecer o MNU (Movimento Negro Unificado) em Curitiba, na década de 1990. Ivo também teve como aliadas as rodas de samba, onde une poesia, pandeiro e cavaquinho para cantar sua luta contra o racismo.

Resgatar o passado para mudar o futuro

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Ao longo de mais de 20 anos em salas de aula, Ivo voltou suas pesquisas sobre como a diáspora africana está relacionada ao trabalho, à tecnologia e à formação de uma consciência intelectual negra no Brasil.

Seu objeto de estudo são os instrumentos e saberes desenvolvidos por homens e mulheres escravizados na África para sobreviver distantes de sua terra, mas exercendo influência em áreas tão amplas como agronomia, agroecologia, engenharia e elaboração de medicamentos.

Neste sentido, ele pautou seu trabalho no que considera fundamental para a mudança no país: resgatar o passado para fazer com que os jovens não fossem "cooptados" pelo eurocentrismo apenas pela falta de referências de matriz africana e para que pudessem usar seus conhecimentos em prol da população negra.

"Não quero que os meus entrem nas universidades com o auxílio dos programas educacionais e saiam de lá bitolados a serviço do capital: lucro, prejuízo, eficiência e eficácia. É muito mais do que isso. É sobre um povo a salvar. Onde há um corpo negro, há ancestralidade. Nós só precisamos aprender a ouvi-lo e amá-lo na dimensão mais profunda do humano."

Ivo Queiroz, filósofo e militante do movimento negro

Libertação

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Uma de suas maiores influências é o psiquiatra Frantz Fanon (1925-1961), um dos principais pensadores da interação entre racismo e colonialismo e que refletiu sobre como nações e pessoas submetidas a essa lógica poderiam escapar dela. No livro "Os Condenados da Terra", o pensador nascido na Martinica, ilha das Pequenas Antilhas, no Caribe, explica que a África precisaria de engenheiros e cientistas para conseguir se libertar das amarras europeias, diz Ivo.

"Quando fala da África libertada, Fanon conceitua a construção de corpos sadios para promover essa libertação e a luta contra o racismo", conta o filósofo.

Para Ivo, pensar a filosofia africana, chamada também de afrodiaspórica, é entender o ser humano que se quer formar no Brasil e como ele poderá se conectar com o mundo respeitando e conhecendo suas origens. "Um novo país passa pela formação do pensamento científico, tecnológico, baseado na diáspora negra", diz.

Arquivo pessoal Arquivo pessoal

Das salas de aula às articulações nas ruas

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A vivência na Academia deu a Ivo a possibilidade de criar formas de diálogo para lutar contra a discriminação racial. Levou isso das salas de aula para as ruas. Ele participou e organizou ações do MNU (Movimento Negro Unificado) na capital paranaense e em outros estados. As mobilizações nas ruas eram ancoradas em atividades culturais, envolvendo música, mais especificamente o samba, o teatro e a educação.

A descoberta da luta pela igualdade e contra a discriminação racial se deu a partir de 1983, quando tinha 30 anos. Neste período, ele começou a articular encontros no grupo Gente Negra, que discutiam a situação do negro no Brasil, e com os APNs (Agentes de Pastoral Negros), que organizavam reuniões semanais nas proximidades da Igreja Bom Jesus, no centro da cidade, para realizar ações de caridade, como visitas a asilos, mutirões em construções de casas, e conscientização política com discussões sobre o racismo.

"Participava de manifestações, lia autores negros, dialogava muito sobre a nossa situação no país. Aquilo foi tomando conta da minha vida, compondo uma rotina de ação. Havia uma atividade política forte", comenta.

A proximidade com a Associação Cultural de Negritude e Ação Popular dos Agentes de Pastoral Negros foi mantida até meados de 1995, quando ele começou a se aproximar do MNU, por meio do amigo e professor Carlos Alberto Santos de Paula, atualmente vinculado ao Centro de Ciências da Saúde na UFRB (Universidade Federal do Recôncavo Baiano), e pró-reitor de Políticas de Ações Afirmativas e Assuntos Estudantis na mesma universidade.

Vitórias ainda que tardias

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Vitórias ainda que tardias

No início do ano seguinte, ele já estava em contato com Milton Barbosa, popularmente conhecido como Miltão, ex-metroviário e um dos fundadores do MNU, e Luiz Alberto, petroleiro aposentado e ex-deputado federal pelo PT na Bahia, entre outros militantes. A partir da filiação ao MNU, Queiroz passou a participar da série de articulações que vinham se estruturando na cidade.

Pouco tempo depois de abraçar o movimento, no início de 1996, houve o assassinato de Carlos Adilson Siqueira, um iluminador de teatro, que aos 23 anos recebeu três tiros, dois na nuca e um nas costas, de um integrante do Carecas do Brasil, grupo de skinheads, no Largo da Ordem, no centro histórico de Curitiba.

"Aquilo causou uma revolta muito grande, uma comoção nacional. Veio todo mundo de São Paulo, fomos à prefeitura pressionar as autoridades, questionar a polícia", relembra.

A morte ocorrida em março gerou dois meses depois um ato considerado histórico por militantes negros na cidade, na Boca Maldita, conhecido por receber atos políticos. Cerca de três mil pessoas promoveram ações culturais para debater formas de enfrentar o racismo.

As batalhas na trajetória de Queiroz são muitas, e as vitórias tardaram, mas aconteceram. Ainda nos anos 1990, ele lutou ao lado de quilombolas da comunidade Invernada do Paiol de Telha, em Guarapuava (PR), contra a desapropriação de terras pelo Estado. Após 30 anos, em junho de 2021, o Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) concedeu às famílias quilombolas o direito a 1,2 mil hectares de terra.

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Fé que salva, mas tem passado

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Filho de pais migrantes de Minas Gerais, Ivo - que teve cinco irmãos - nasceu cercado pela mata e o trabalho rural. A adolescência foi vivida em Santo André, na região metropolitana de São Paulo. Quando ele fez 14 anos, o pai decidiu que o jovem já havia estudado o suficiente. Já sabia ler e escrever. Era hora de abandonar a escola e trabalhar. A única diversão era o futebol aos finais de semana com jovens franciscanos de uma instituição de caridade gerenciada por frades.

"O futebol era uma isca. Depois de um tempo, se quisesse jogar, tinha que participar das reuniões catequéticas. Foi bom, porque comecei a pensar sobre o sentido da vida", relembra. O fato de os jovens no ambiente estarem na escola fez Ivo se sentir deslocado. A situação mudou aos 19 anos, quando ele retomou os estudos para concluir o ensino médio após o pai arrefecer desde que o emprego em uma indústria técnica de madeiras e fabricante de móveis e peças para veículos fosse mantido.

No início da década de 1970 a aproximação com a Ordem Franciscana virou uma válvula de escape para a rotina baseada no itinerário casa-trabalho-trabalho-casa da adolescência. Mas ele conta que, mesmo após os estudos voltarem à sua vida, a sensação de inadequação com jovens franciscanos não foi embora. "No período do seminário tive dificuldades, principalmente com os alunos de ascendência europeia, que vinham do sul do país. Eram muito cruéis em relação ao racismo, e não havia esse debate entre os franciscanos", analisa.

Ainda que seus laços com a fé tenham sido cruciais para sua formação, Ivo viu surgir no seio familiar a crítica sobre o papel da Igreja Católica na legitimação da escravidão. Com o tempo, ele aderiu a esse sentimento sem se afastar da instituição.

Meus parentes falavam com desprezo do catolicismo. Hoje, acho que foi um desprezo ao clero por conta da proximidade com a escravidão. Há um histórico de comprometimento venenoso

O professor reflete que a igreja é responsável por um epistemicídio (a aniquilação de saberes e traços culturais em prol do fortalecimento da cultura europeia) e o teocídio (a sobreposição teologia cristã a outras religiões). "É algo grave", reflete.

Isso é o que ele acredita hoje. Em 1975, ele se mudou para Curitiba, onde vive ainda hoje, para seguir na religião. Queria ser frade. O fervor durou dez anos até que Ivo decidiu que era hora de seguir um caminho diferente e constituir família. Casou em 1988 com a assistente social Maria Helena, com quem teve dois filhos: Janaína e Tales. Após terminar a graduação de filosofia, passou a dar aula de história e geografia em escolas públicas e privadas.

Apesar da estabilidade que a aposentadoria lhe proporciona, Ivo ainda enfrenta questionamentos sobre suas conquistas, materiais e acadêmicas.

Tenho uma boa casa, conquistei coisas que meus familiares não tiveram chance. Mas não passo uma semana sem que alguém venha aqui para resolver alguma coisa e pergunte pela 'patroa'. Quando descobrem que estou no pós-doutorado, então? O pessoal tem a pachorra de perguntar se eu fiz doutorado, mestrado

Ivo Queiroz, filósofo e militante do movimento negro

Arquivo pessoal Arquivo pessoal

Por menos meninas negras sozinhas

Ivo despeja parte de seu posicionamento político na música. Aposentado desde 2016, ele equilibra a rotina entre a pesquisa acadêmica e as atividades escolares com um grupo de samba, composto pela filha Janaína e amigos que conhece há décadas. As composições próprias versam sobre a luta contra o racismo, perseguição policial, a vida do trabalhador, entre outros temas. Ele ainda toca violão de seis e sete cordas, cavaquinho e viola caipira.

As apresentações em escolas públicas são feitas de orientações aos alunos e de cobrança aos docentes. "A gente dá uns 'pegas' nos professores, para que os casos de racismo sejam enfrentados". Em uma dessas últimas visitas antes de a pandemia causada pelo novo coronavírus paralisar as atividades, Ivo fez jus à missão que tomou para si há mais de quarenta anos. Pouco antes de a música começar, ele soube que uma menina negra vinha sendo alvo de ofensas racistas dos colegas.

No dia da apresentação, cantei uma música cujo refrão diz o seguinte: 'não há nada errado em ser negra, porque Deus a fez negra'. Esgoelei no microfone, quase estourei a caixa de som. A menina estava lá na plateia com a mãe, escondida no fundo do auditório. Fui pra cima. Quer me pegar? Me pega. Mas essa menina não está mais sozinha

CABEÇAS NEGRAS

Deborah Faleiros/UOL

Quem são as pessoas que colaboraram para a formação da consciência negra no Brasil? Criado há 10 anos, o Dia da Consciência Negra tem se consolidado como um momento de combate ao racismo e também de valorização da cultura afro-brasileira. De personalidades do cenário nacional e internacional a nomes que ficaram de fora dos holofotes, fato é que muita gente colaborou para a construção não só da data, mas para a vivência da consciência negra na prática.

  • Ana Célia

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    Ele usa a bioética para flagrar a desumanização de corpos negros -- e como reverter isso

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