Um Jesus caracterizado como mendigo marcou o desfile da Mangueira no Carnaval deste ano no Rio de Janeiro, que trouxe várias representações de Cristo. A imagem correu o mundo e provocou reações, levando seu intérprete, o ator, escritor, poeta e pastor Henrique Vieira, 33 anos, da Igreja Batista do Caminho, a refletir sobre as razões para tanto incômodo. Cinco meses depois, a experiência agora é contada em um dos dois livros escritos por ele durante a quarentena. "A partir do Evangelho, quero mostrar que a imagem hegemônica que se tem sobre Jesus hoje é uma imagem muitas vezes contraditória com a mensagem do Evangelho. O Jesus apresentado na Bíblia nada tem a ver com fundamentalismos", diz ele em entrevista a Ecoa. "Deus sofre com a humanidade."
Do Rio, onde mora, ele conta por telefone que, além dos livros, ainda a serem publicados pelo grupo Companhia das Letras, tem conciliado os cuidados com a casa e a filha, de dois anos, com as demandas da igreja e da assessoria parlamentar da qual faz parte. "Produzir em tempos de quarentena é mais desafiador. A sensação é de sobrecarga", diz o pastor, que recorreu à meditação para lidar dar com as tarefas, que incluem ainda a preparação de um curso online de teologia negra e a produção de um novo programa de podcast.
A fala calma, seguida sempre de uma respiração profunda, contrasta com as críticas contundentes que ele faz sobre autoridades políticas e o papel de algumas correntes religiosas na pandemia. Para ele, o negacionismo científico é contrário ao espírito da fé, e o discurso que desdenha as mortes pela covid-19 tem traços de eugenia. Afirma também observar a construção de uma narrativa messiânica em torno do presidente Jair Bolsonaro — que, segundo ele, se adequa perfeitamente à categoria do Anticristo. "Ele usa o nome de Jesus para fazer tudo aquilo que Jesus jamais faria. É diabólico porque é baseado na mentira."
Vieira coloca a luta antirracista no centro do compromisso cristão e diz que existem muitas formas de o racismo "tirar o oxigênio da alegria do coração do negro". Sendo o racismo estrutural, afirma o religioso, não discuti-lo significa reproduzi-lo. "O racismo é o modo de funcionamento da nossa sociedade. O curso normal dela é o corpo negro abatido no chão."
Ex-vereador de Niterói (RJ), o pastor, que é filiado ao PSOL, afirma também que o sistema capitalista é incompatível com a democracia, os direitos humanos e o meio ambiente. "O contrassenso do progresso do capitalismo é que ele pode levar ao fim da humanidade", diz. Por fim, vê a urgência de mudanças profundas: "Diante dessa dor, nos cabe uma reflexão séria e uma decisão radical. A vida nos pede coragem para reorientar os rumos da sociedade". Leia abaixo a entrevista.