O homem é o lobo do homem

Escritor João Silvério Trevisan é uma das maiores mentes do país e investigou os problemas em ser homem

Marcos Candido De Ecoa, em São Paulo Renato Parada/Divulgação

O escritor João Silvério Trevisan acaba de lançar o livro "Seis Balas Num Buraco Só" (ed. Objetiva). A obra foi publicada pela primeira vez na década de 1990 e atualizada para responder à pergunta: o que é, afinal, ser homem? Trevisan pesquisou sobre história, antropologia, psicanálise, literatura, religiões, filmes e jornais. O autor discute como a masculinidade tóxica se relaciona com os feminicídios brutais, com o o machismo de políticos, a violência urbana, o abandono paterno e a destruição ambiental.

Nascido em 1944, Trevisan é um dos nomes mais respeitados na literatura e pensamento brasileiro. É escritor, cineasta, ensaísta e um dos criadores da lendária "Lampião da Esquina", uma das primeiras publicações LGBTQIA+ no país. Nos anos 1980, traçou a história da homossexualidade com o marco "Devassos no Paraíso".

Agora, Trevisan demonstra como o homem tenta definir tudo que existe, como "coisa de homem e de mulher", mas pisou na própria armadilha. Ele fala a Ecoa sobre essa construção e os impactos que têm na sociedade.

"O homem é alguém em crise permanente devido às definições que ele mesmo criou para si", diz. Assim, surgiu um homem violento, desafetuoso e intolerante. "O problema do masculino, no contexto do patriarcado, é que ele se julga o dono do pedaço."

Ecoa - Há um episódio breve em "Seis Balas Num Buraco Só", e mais profundamente em "Pai, Pai", um de seus livros anteriores. Nele, você conta quando foi jogado em um rio por parentes. Poderia me contar essa história e o que te fez pensar sobre ser homem?

João Silvério Trevisan - Eu devia ter uns oito a nove anos, não tenho certeza. Era um menino extremamente delicado e gostava de brincar com as minhas primas, tinha horror em brincar com a meninada da rua — sempre achei as brincadeiras [deles] de uma grosseria sem tamanho. Era um menino que escrevia bem desde pequeno e a professora elogiava. Eu adorava fazer bonequinhos de cera e brincava de circo, fazia cenas em um palquinho no fundo do quintal e cobrava um palito de fósforo, com muito cuidado para não me darem um palito já queimado. Era o meu mundo - e sofria muita solidão. Não sabia que eu era diferente, mas sentia ter alguma coisa estranha.

Adorava pescar e, em certa ocasião, fui convidado por uns primos e vizinhos para pescar num rio afluente do Tietê, na minha cidade de Ribeirão Bonito [SP], chamado rio Jacaré. Chegando lá, fiquei desconfiado. Meu pai era um padeiro muito medíocre e em nossa casa tinham sacos de farinha vazios, que minha mãe usou para me fazer um calção que eu vestia naquele dia. Eu ainda percebia um clima estranho, quando fui agarrado e jogado no meio do rio.

Não sabia nadar e fiquei em pânico. Havia uma correnteza muito forte e ouvi as gargalhadas das pessoas na margem, mas não conseguia chegar até a margem por causa da lama. Fiquei quase sem fôlego, me debati até chegar na margem, todo enlameado, em meio às gargalhadas. Eu ouvi eles gritando: "é para você aprender a ser homem!" Foi tão traumático que me esqueci desse dia e só o resgatei em análise. Fiquei muito espantado de ter reprimido esse trauma que foi um momento crucial na minha vida e que determinou tudo.

Marcus Leoni/Folhapress Marcus Leoni/Folhapress

E o que te fez perceber?

Compreendi que não era igual. Dentro de casa ainda tinha um problema grave: meu pai violento. Eu era o filho mais velho e tomava surras sem saber o porquê. Em meu livro "Pai, Pai", percebo que não correspondia ao que se esperava de um homem para meu pai. Ele disputava com os irmãos e era uma humilhação ter um filho mais velho que não correspondia ao padrão de macho dentro da família. Os chutes e murros que meu pai me dava, a maneira que me tratava sem nenhum afeto, eram uma resposta à sua frustração. O resgate da minha infância se desdobra até chegar no livro "Seis Balas Num Buraco Só". Foi aquele episódio em Ribeirão Bonito que me fez ter um olhar crítico para o masculino hegemônico, algo a que tenho horror a vida inteira.

O que é ser homem?

Ser homem é uma incógnita. Eu não tenho uma definição e esse é o problema da crise do masculino: tenta-se dar uma definição para uma coisa que não é definível. Discuto as recentes quebras de definição: as novas identidades de gênero, como um grande movimento. A [filósofa] Judith Butler é fundamental para entender essa questão: há uma performatividade dos gêneros. O que isso significa? Que é possível criar um personagem de gênero, como se quiser, porque o gênero é uma criação imposta e tenho direito de criar o meu, pois estamos diante de uma tentativa de tentar definir o que é indefinível, então tenho todas as condições de pensar o meu gênero. O problema do masculino, no contexto do patriarcado, é que ele se julga o dono do pedaço: acha que através do pênis detém a força fálica, um grande mal-entendido, essa força psíquica que está presente em todas as pessoas.

Quando há uma confusão sobre quem manda, a coisa fica complicada, pois o homem se acha o dono das definições, aquele que define o que é feminino, o que é criança, o que é uma mulher. É quase inevitável não gerar uma toxicidade: o homem é alguém em crise permanente devido às definições que ele mesmo criou para si, e para os outros, sobre coisas que não existem. Ele sofre terrivelmente pois nunca vai se enquadrar dentro desse masculino idealizado.

João Silvério Trevisan, escritor e ativista pelos direitos LGBTQIA+

Reprodução
João Silvério Trevisan nos anos 1990

Pode dar um exemplo?

É muito comum você ver na rua alguém fantasiado de macho. Eu olho e penso: esse cara deve estar fazendo um esforço para andar assim, durão, sem flexibilidade. Mas é um cara resistente, que se coloca como um cara corajoso. Enfim, é um macho. Para sumarizar sua pergunta, não existe um masculino, é um grande mal-entendido. O masculino está em construção o tempo todo, desde os ritos de passagem das culturas ancestrais às modernas, mesmo que sejam ritos [com efeitos] negativos.

Como essa masculinidade interfere na política?

O meu ponto de vista é de que o masculino hegemônico tomou o poder em Brasília. O Bolsonaro e o bolsonarismo são uma imagem perfeita da crise do masculino. Vai desde o ressentimento, passando pelo armamentismo, pela misoginia, pelo culto à violência, pelo fascismo. São elementos que fazem parte da problemática do masculino hegemônico tóxico, que criou a própria crise. O bolsonarismo é incapaz de enfrentar a realidade, porque eles não têm a menor condição e o menor interesse de enfrentá-la. Inclusive, eles acham que a realidade são eles. É daí que nasce o negacionismo, não é?

O presidente é medíocre, não muito inteligente, mas extremamente esperto porque sempre cultivou o poder hegemônico, do macho aliado a questões como as armas, das Forças Armadas, do poder obtido a qualquer custo. É interessante como o bolsonarismo que está esperneando é o espelho de um homem violento, acuado, que perde espaço no mundo moderno.

Felipe Gabriel/Projetor/Folhapress Felipe Gabriel/Projetor/Folhapress

E de que maneira afeta a paternidade?

Cotidianamente, você pode entender a paternidade como uma contradição fundamental na construção do masculino. Como é que um macho ficaria dentro de casa, tomando conta dos filhos? Para o macho hegemônico, esse não é seu papel. É fora de casa que ele se encontra com outros homens para compreender a própria masculinidade. Eles estão nos bares, nos estádios que já não são tão masculinos assim e, enfim, cria redutos onde o masculino permite a ele certa intimidade. É uma certa intimidade, pois ele não permite a intimidade entre homens. Por exemplo: o próprio Sándor Ferenczi, grande psicanalista húngaro, menciona como os atos de violência são, na verdade, distorções de uma intimidade que não pode ser trocada. [Nessa análise] você briga com outro homem porque no fundo busca um contato íntimo.

No livro, você narra um momento em que foi xingado por um homem ao tentar salvar uma árvore. Existe uma relação entre o ataque ao meio ambiente e masculinidade?

Assim como existe o racismo estrutural, eu acredito no conceito do antiambientalismo estrutural. Nós somos criados com essa mentalidade, não? O masculino hegemônico continua a incentivar a ideia de que devemos ganhar dinheiro, não abraçar, não tocar, não amar o meio ambiente. O meio ambiente não cabe dentro do cabresto dele, no conceito de masculinidade ideal na qual ele manda em tudo. Isso se reflete em alguns comentários: "Comer planta? Sou macho. Eu como carne, pô". Apesar de ser uma explicação prosaica, está no nosso cotidiano. Quando tentei salvar uma arvorezinha de ser atropelada por um caminhão, o cara virou e me chamou de viado. Na cabeça dele, fazia todo sentido eu ser um viado por me preocupar com uma árvore, porque um homem para ele está preocupado com outras coisas, não com uma folhinhas.

Felipe Gabriel/Projetor/Folhapress Felipe Gabriel/Projetor/Folhapress

Há um conceito no livro contra a masculinidade tóxica que é aceitar o fracasso. Eu iria te pedir uma solução para sermos homens melhores, mas queria saber se você ainda tem esperança de que possa haver homens melhores ou se devemos abraçar o fracasso.

Eu seria muito pretensioso se buscasse uma solução, porque o problema todo do masculino hegemônico é que ele tenta sempre dar a sua solução. O fracasso é um elemento que habita o nosso dia a dia. Aceitar o fracasso é aceitar que as coisas fogem ao nosso controle o tempo todo em nossa experiência humana e tudo que temos que fazer é buscar sempre uma lapidação.

Com acesso a todo esse material, você se sente um homem melhor?

Eu não usaria o termo melhor. Me sinto cada vez mais inseguro, alguém que vai envelhecendo e já está muito próximo do prazo de validade. Você tem no envelhecimento a possibilidade de um olhar mais amplo sobre a realidade. Isso também significa que você tem a possibilidade de ter um olhar mais complicado.

Você pode comprar o livro "Seis balas num buraco só", de João Silvério Trevisan.

Conheça as obras de João Silvério Trevisan

  • "Devassos no paraíso"

    Considerada uma das obras mais completas sobre a homossexualidade no Brasil, livro narra da vida de personagens homossexuais na história à luta contra a homofobia da colônia aos dias atuais

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  • "Pai, pai"

    Trevisan narra a relação violenta com o pai, a compreensão sobre a própria sexualidade, a internação em um seminário e saída do Brasil durante a ditadura militar. Enquanto isso, a memória paterna continua à espreita

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  • "A idade de ouro no Brasil"

    A história ficcional se passa no interior de São Paulo e narra como um grupo de políticos endinheirados contrata travestis para uma festa. A noite parecia promissora, mas há um desfecho inesperado e violento

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  • "Seis balas num buraco só"

    Uma reflexão sobre o masculino. Trevisan discute machismo, misoginia e homofobia e mostra como a arte, a política, a história a religião e o meio ambiente se conectam com um ideal impossível de masculinidade

    Imagem: Divulgação
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