Deixa os "garoto" brincar

Jogos influenciam funk e protegem crianças da violência; metade dos gamers brasileiros são negros e pobres

Edilana Damasceno, do data_labe Colaboração para Ecoa, no Rio de Janeiro (RJ) Thiago Limón/UOL

Se a vida é um game
Aperte o play, pause
O inimigo quer dar pause
Cruzamos favelas
Passamos em tela
Desde o tempo da Lan House,

Trecho de Zé Guaritinha, interpretada por MC Jottapê e Mano Brown

"Se eu falar que vim do zero é fake, eu vim do menos cinco." É citando o rapper Froid que Derek Thompson, 24, define sua caminhada. Ele, que do seu quarto no Morro da Fé, na zona norte do Rio de Janeiro, com seu computador funcionando a duras penas, compete pelo título de melhor jogador nos campeonatos sazonais de LOR (Legends of Runeterra), não se deixa abater pelos desafios.

Sempre com um sorriso largo, Derek entende seu lugar no mundo como homem, preto e favelado e faz disso seu maior impulso para seguir batalhando: "O lugar que eu ocupo hoje em dia é um lugar onde eu quero abrir a porta para os meus".

Thiago Limón/UOL

Games salvam vidas

Thompson se apaixonou pelos games quando tinha cerca de 8 anos, jogando "Magic", um jogo de cartas colecionáveis criado em 1993, com seu irmão mais velho. Depois, o menino passou horas se divertindo com um Playstation 1, que foi presente da sua avó.

Ele não é o único: segundo um levantamento feito pela Pesquisa Game Brasil 2021, 50,3% dos gamers são pretos ou pardos. Além disso, 49,7% dos consumidores desse mercado pertencem às classes C, D e E. Para o gamer, os jogos digitais sempre estiveram em um local de afeto em sua vida já que, em sua infância no morro, a maioria das lembranças são de horas passadas na lan house com os amigos ou de reuniões na casa de um deles, em frente a um Playstation. "Favela tem disso, a rua é muito unida", comenta.

Foi em uma dessas idas a lan houses - lugares onde se pagava por horas de uso do computador - quando criança que ele encontrou, no caminho, o corpo de um homem que supostamente havia roubado pela região. Sua sentença: ser morto a tiros. Anos depois, Derek enxergou naquele momento a importância dos games em sua vida: "Será que se eu não tivesse conhecido os jogos, se eu não tivesse tido um contato mais forte, será que não poderia ser eu ali naquela situação?"

Hoje, cursando ciências sociais na UFRJ, ele percebe como a cultura da sua área nunca foi bem representada nas produções que consumia. Exceto nos jogos de tiros como no "Cross Fire", onde havia um mapa baseado nas favelas cariocas.

Mesmo vendo sua cultura silenciada nesse universo, foi por meio dos games que Thompson pôde fura sua bolha: "Pude começar a estudar por causa daquilo, estudar uma cultura diferente, um bagulho diferente, começar a estudar o idioma por esse contato muito bom com os jogos. E, em contraponto, eu vi uma galera entrando pro tráfico, tipo, amigos meus, de infância, tá ligado?".

Atualmente com o sonho de ser professor, pesquisador e de se manter no topo das competições de LOR, Derek não tem dúvidas do papel dos jogos na construção de quem ele é hoje e quer através deles fazer com que seu povo seja visto:

A gente tem muitas pessoas pretas dentro do cenário. Um dos melhores jogadores brasileiros, que é até o meu companheiro de time, é um homem preto; o Leandro 'Sucessor' Dias

Derek Thompson , jogador de LOR (Legends of Runeterra)

A favela joga no celular

Se na infância de Derek os jogos de console faziam seus olhos brilharem, para Hugo Freire, 12, é no smartphone que tudo acontece.

Para Hugo, sinônimo de diversão é jogar Free Fire com seus amigos. O jogo, lançado em 2017 pela empresa Garena, por ser exclusivo para dispositivos móveis, acabou se tornando mais acessível.

Vale lembrar que, segundo IBGE, 79,3% dos brasileiros têm celular. Já consoles (como o Playstation 4 ou o Nintendo Switch) são jogados por 48,5% dos brasileiros, segundo a Pesquisa Game Brasil 2019, realizada pelo Sioux Group, Blend News Research e ESPM.

O fácil acesso aos celulares, tornou o Free Fire uma febre. Segundo a Game Brasil, Free Fire e os jogos de battle royale são os mais conhecidos pelo público, além de serem a preferência de 53,5% dos entrevistados pela pesquisa e do jovem Hugo Freire.

Quando questionado, no entanto, o morador de periferia na Zona Norte do Rio percebeu que não havia muitos personagens parecidos com ele no jogo. "Se o pessoal daqui [onde mora] fizesse o jogo, seria melhor."

Funk e Free Fire

How, how, Brown
Acorda, sangue bom,
Aqui é Capão Redondo, tru
Não é Pokémon,


Trecho de "Vida Loka, Parte 2", Racionais MC's

Apesar da cultura da favela não ter conseguido alcançar tanto os estúdios da empresa Garena, mãe do Free Fire, da ponte pra cá a a história é outra: funks sobre o jogo são uma aposta no sucesso.

A música "Zé Guaritinha- Free Fire", interpretada por MC Jottapê e Mano Brown, principal voz dos Racionais MC's, já batia 68 milhões visualizações no Canal Kondzilla, no YouTube, em junho de 2021.

Além da incursão do autor de "Nego Drama" e "Diário de um Detento" pelo universo gamer, diversas outras letras sobre Free Fire, misturadas às batidas de funk, costumam estourar nas redes e nas plataformas de streaming, como o "Funk do Rushadão" ou o "Funk da Ranqueada".

A mistura do universo gamer com a cultura de favela não é novidade: quem ligasse o videogame para jogar futebol no "Bomba Patch", lançado em 2007, iria escutar as batidas de funk seguidas da letra "100% atualizado, é ruim de aturar, Bomba Patch virou moda e todo mundo quer jogar...", interpretada por MC Doidera.

Já em "Grand Theft Auto IV", um remix de um funk do MC Miltinho, batizado de "Kid Conga", acabou entrando de forma irregular na trilha da franquia de jogos mais popular do mundo. Só para dar uma ideia do tamanho da série de jogos GTA, seu último lançamento (GTA 5) é o produto mais lucrativo da história da indústria do entretenimento e vendeu mais de 135 milhões de cópias ao redor do mundo.

MC Miltinho, no entanto, demorou sete anos para ver a cor da grana por ter seu funk incluído no game milionário.

Um favelado no topo

Assim como na época do Bomba Patch, hoje, o jogador profissional VgzinnN faz questão de colocar funks cariocas nas trilhas sonoras de seus vídeos jogando, ou "clippadas", como ele chama as publicações em que exibe seus sucessos no Free Fire.

"Muita gente vê o funk como um tipo de música ruim, mas eu escuto desde pequeno e vejo com outros olhos. Sempre que posso, levo para o meu público", explica o gamer.

Ao acessar o perfil no Twitter de Vagner Alexandre (verdadeiro nome de VgzinnN), onde ele conta com mais de 148 mil seguidores, a mensagem inicial até o começo de julho era: "jogador profissional, mas to sem clube, sem dinheiro, sem amor e sigo pleno". No Instagram, VgzinnN aglomera mais de 1,2 milhão de seguidores.

O jovem de 19 anos joga Free Fire profissionalmente e sem patrocínio: "Meu primeiro contato com o mundo dos games foi através da lan house. Desde então, eu peguei a paixão e nunca mais parei", se declara.

Vagner, que se autodenomina "cria de favela", é morador do Centenário, na Baixada Fluminense, do Rio de Janeiro. Chega a ser abordado na rua ao ser reconhecido pelos fãs: "Não tem nem explicação, é um carinho surreal que você pega pelos seus fãs e, a partir daí, tudo o que você faz é por eles".

Brasileirão de Games da Favela

Não tô ligando pra ponto
Muito menos pra patente
Quando eu entrar na partida
É melhor sai da frente

Trecho de "Funk do Rushadão", Quik Irônico

E como pensar o acesso ao lazer, à diversão e aos games em um país onde desigualdade vem antes de tudo?

Essa reflexão surgiu também em Alberto, pai de Gabriel Bellezia, 20, que é seu sócio no projeto social Brasileirão de Games da Favela.

O BGF tem como objetivo levar o lazer para as comunidades através dos e-sports, mais especificamente, por meio do jogo FIFA. Funciona assim: são selecionadas 16 crianças que após serem distribuídas em chaves disputam o "Brasileirão de Games" até ser consagrado um vencedor.

Segundo Gabriel, não há distinção de gênero ou idade, o importante é todo mundo se divertir: "A gente tentou aplicar uma vez, mas viu que não faz muita diferença, já vimos crianças de sete anos jogarem com adultos e ganharem de lavada", conta.

O projeto que já chegou a ter parceria com a Prefeitura do Rio de Janeiro nasceu em 2019 e tem sua estreia na comunidade do Rollas, em Santa Cruz, bairro da Zona Oeste do Rio, onde Gabriel vive com sua família.

Segundo ele, o primeiro BGF foi inesquecível. "Foi sensacional. É de onde a gente tem as melhores fotos, as melhores recordações porque o primeiro projeto é sempre memorável." O projeto, que está sem ir para as ruas desde o agravamento da pandemia conta com duas cadeiras gamers, dois projetores, diversos consoles e, eventualmente, uma premiação para o vencedor. Para Gabriel, o cenário ideal seria poder contar com um patrocínio para oferecer uma premiação, estrutura e quem sabe, expansão do Brasileirão.

"A gente se depara com criança que nunca sentou numa cadeira gamer, nunca jogou num videogame de última geração, com jogos da última geração, e acaba tendo esse contato só por YouTube ou coisas desse tipo", explica.

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