Desde o berço

Inspirada em 'AmarElo', de Emicida, ela organizava jovens de escolas em Belém e hoje muda o mundo com arte

Lígia Nogueira (texto) e Nay Jinknss (fotos) Colaboração para Ecoa, em São Paulo (SP) NAY JINKNSS

"Fui criada no bairro da Cabanagem, que é o nome de uma grande revolução nortista, em uma família de professores.

Além de ensinarem, eles também são fazedores de cultura — gente envolvida com dança e teatro. A cultura é uma parte importante da minha trajetória e a Beatriz de hoje não existiria sem isso.

Sempre estudei em escola particular por ter bolsa completa por causa dos meus parentes que trabalhavam nas instituições de ensino. Educação era prioridade em casa e eles faziam de tudo para que a gente tivesse uma base fortalecida.

Quando entrei no ensino médio, precisei mudar para uma escola estadual e senti medo, porque o ensino público é muito precarizado, principalmente aqui no Norte. A gente mal tinha aula, e isso estava claramente atrapalhando a vivência dos alunos. Então decidi me juntar com uma amiga para conversar sobre as experiências dos estudantes nos territórios deles.

Hoje sou Jovem Transformadora Ashoka, a única em Belém (PA), estudante de ciências sociais na Universidade Federal do Pará, e minha meta como artivista é mostrar as diferentes amazônias para quem não é daqui."

Nay Jinknss/UOL
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Espaço seguro

Quando era estudante do ensino médio na escola estadual Jarbas Passarinho, em Belém (PA), Beatriz Lacerda, hoje com 19 anos, começou a pensar no que poderia fazer para mudar a realidade dos alunos, desanimados com a falta de espaço para dialogar sobre suas experiências.

Ao ser convidada para uma roda de conversa para falar sobre diversidade religiosa, acabou recebendo três turmas. "Todo mundo adorou", conta.

Na mesma época ela conheceu a Engajamundo e se inspirou no trabalho realizado na ONG para criar o seu próprio projeto, intitulado Equidade. "Atuar na ONG ajudou a construiu muito fortemente a ativista que sou hoje, me deu uma base sólida. Passei alguns anos em coordenações diferentes, mas sentia falta de agir de maneira local."

A ideia do Equidade era conversar sobre as experiências dos alunos em seus próprios territórios. "Nós íamos de sala em sala e de escola em escola na região metropolitana de Belém para entender o que eles queriam falar sobre a vivência deles."

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Oportunidades para todos

O nome do projeto, Equidade, foi inspirado no álbum 'AmarElo', do rapper paulistano Emicida. "Equidade justamente é adaptar as oportunidades para que todos alcancem alguma coisa. O projeto tem a cor amarela e várias referências vinham do disco também. Eu queria passar para os alunos que a escola era um lugar seguro."

Beatriz acrescenta que entrou no curso de ciências sociais por causa dessa experiência. "Era muito gostoso trabalhar. A gente parou na pandemia e fez mais de 10 rodas de conversa online, participei do Dia Mundial da Juventude e conversamos sobre o que eles mesmos entendiam por juventude, sabe?"

Com o projeto, Beatriz visitou 20 escolas, algumas delas mais de uma vez, e cada turma tinha cerca de 30 alunos. "Chegamos a ter posts nas redes sociais com 5 ou 6 mil visualizações. Atingimos muita gente e comecei a aparecer, sair em jornais e ser convidada para dar palestras. Entendi que eu também podia ensinar."

A gente tem de entender que somos diferentes e que isso é bom. Equidade é quando todos têm as mesmas oportunidades para alcançar um objetivo.

Beatriz Lacerda

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Mulher afroamazônida

A estudante decidiu 'voltar ao berço' e começou a trabalhar com arte: contar histórias, escrever poesia e a apresentar performances de rua sob uma perspectiva da Amazônia. "Decidi juntar tudo para entender como a arte podia me ajudar no meu trabalho. Hoje atuo como artivista."

A partir desse movimento, construiu a persona da Afroamazônida. "Essa mulher preta de periferia da Amazônia vai discutir, a partir das suas vivências, a vivência dos outros. É como uma tecedora de histórias. Hoje eu trabalho focando em territorialidades na Amazônia. Pode ser que amanhã isso mude."

"Costumo dizer que eu teço vivências. Vou atrás do que as pessoas viveram, entendo o que posso aprender com isso e o que posso trocar. Todas as pessoas com quem trabalho hoje, ou com quem tenho parceria, são trocas."

Em 2021 Beatriz passou em uma chamada da Ashoka (organização com foco em empreendedorismo social) para jovens da Amazônia e atualmente atua como jovem transformadora e trabalha com a plataforma de peer to peer, que faz a conexão entre pares. "A ideia é entender como a juventude da nossa rede pode se conectar com outras pessoas."

Ativismo na Amazônia é complicado. Os ativistas amazônidas são os que mais morrem. Estamos sempre em constante perigo. Ao mesmo tempo, a gente não tem visibilidade do nosso trabalho em vida. Precisamos mudar isso.

Beatriz Lacerda

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Ancestralidade

"O candomblé me ajudou a desenvolver um trabalho sobre ancestralidade", conta Beatriz. "Pra gente, ancestral é alguém mais velho. Tenho muito respeito por ativistas que vieram antes de mim, assim como procuro ensinar a galera que está começando agora a ter respeito pela gente que está batalhando hoje."

Aos 6 anos, por questões de saúde, ela começou a frequentar o terreiro do qual hoje é filha. "Falo que eu sempre estive à beira da morte. Eu quase não nasci e desde pequena tenho problema pulmonar e de alergia. Tenho 60% da minha capacidade pulmonar e sempre precisei cuidar muito da minha saúde."

Quando era criança, sua casa pegou fogo e Beatriz teve o primeiro gatilho de ansiedade. Uma dermatite atópica, condição de saúde de pele que fere as articulações, foi tão forte que as pernas de Beatriz deixaram de se mover. Ela não conseguia mais andar.

A família tentou de tudo, até que a mãe de Beatriz resolveu levá-la ao terreiro. "Fui cuidada e no primeiro dia de tratamento eu saí andando. Foi uma relação afetiva muito forte e comecei a cultivar isso. Entrei pela dor e, hoje, mais de 10 anos depois, minha família inteira é iniciada no candomblé."

"Em 2019 me iniciei de fato e passei por todo o processo e fui puxando todo mundo. Minha avó com 68 anos foi iniciada dois anos atrás. Eu não tenho outra forma de definir isso além de tecer — saí costurando a vida de todo mundo. Para mim, a circularidade é muito importante."

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'Uma grande potência para os próximos anos'

"Beatriz é uma pessoa que vê o compartilhamento como algo muito importante no fortalecimento do ecossistema", afirma Mattheus Oliveira Silva, 24 anos, de Belém (PA).

Ele é diretor executivo e coordenador de engajamento e articulação social da Cojovem e conheceu Beatriz em 2021, quando ela entrou em contato com os responsáveis pela iniciativa, que reúne jovens lideranças amazônidas intituladas como Embaixadores da Juventude pelo Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crimes (UNODC/ONU) por suas atuações como ativistas locais.

"Ela me chamou para cooperar no projeto Equidade com uma palestra sobre ativismo. Foi um espaço muito propositivo em que a gente consegue se ver e se entender como potências, que eu acredito que ela é."

Ao longo do tempo, Beatriz foi participando da Cojovem e hoje atua no quadro da coordenação de engajamento e articulação social. 'Ela está determinada a fazer acontecer aqui no território da Amazônia paraense e atualmente entrou no quadro da Cojovem pra potencializar os trabalhos que estão sendo realizados para fortalecer as juventudes paraenses.'

"A gente tem muitA felicidade de tê-la conosco por ter se mostrado uma pessoa promissora e capaz de materializar a mudança que queremos ver no mundo agora", diz Mattheus.

Engajamundo é uma organização de liderança jovem e feita para jovens que acredita na importância da atuação da juventude para enfrentar os maiores problemas ambientais e sociais do Brasil e do mundo. Ela é parceira estratégica do 2º Prêmio Ecoa na categoria Jovens Causadores. Conheça o trabalho em www.engajamundo.org

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