'Funk é literatura'

Com futebol, funk e livros; criador da página Funkeiros Cults mudou palco de guerra de facções em Manaus (AM)

Lígia Nogueira Colaboração para Ecoa, em São Paulo (SP) Bruno Kelly/ UOL

"Muita gente acha que sou leitor desde criança, mas na verdade eu comecei a ler depois de mais velho. Nossa escola não tinha nem biblioteca. A maioria dos alunos ia pela comida ou porque a mãe ia trabalhar e a criança não podia ficar sozinha em casa. A gente não via um retorno nos estudos, fazia mais sentido sair da escola e trabalhar. Eu queria terminar o ensino médio e entrar no exército.

No último ano, não devolvi os livros que tinha pegado emprestado dos professores. Naquela época eu ficava muito tempo na rua tentando trabalho. Foi um período difícil e eu me apeguei ao cinema e à literatura. O que mais mexeu comigo foi uma obra do poeta Augusto dos Anjos. Eu nunca tinha visto algo do tipo. Como é que alguém conseguia se expressar tão bem em palavras, enquanto eu não sabia nem dizer o que estava sentindo?

Em 2019 trabalhei numa universidade pública e o pessoal estranhava que eu ouvia funk e ia para a biblioteca. Eu frequentava alguns espaços culturais do centro de Manaus (AM) e me sentia deslocado. Fiquei com isso na cabeça: parecia que não era para eu estar ali. Foi aí que pensei em unir as duas coisas, o funk e a cultura, no perfil Funkeiros Cults.

Eu considero o funk como literatura. Vejo tudo como palavra, acho massa a maneira de se comunicar. Hoje fico feliz de ver o quanto esse projeto cresceu. Desenvolvo iniciativas culturais e esportivas na comunidade onde moro e o fato de ter ficado conhecido com a página impulsionou isso."

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Dayrel Teixeira, 23 anos, vive no barro da Compensa, na periferia de Manaus (AM). Com mais de 75 mil habitantes, a região na zona oeste da capital está situada às margens do Rio Negro e fica na linha de frente no embate entre as principais facções criminosas amazonenses. A proximidade com os indígenas e os ribeirinhos torna a comunidade muito diversa - algo que se reflete diretamente no trabalho social realizado por ele junto aos moradores há cerca de três anos.

Os recursos, diz, saem do próprio bolso, mas o alcance do perfil Funkeiros Cults tem facilitado o diálogo com outras organizações para conseguir ajuda. Além da violência, os principais problemas, segundo Dayrel, são a falta de saneamento e a poluição das águas, questões com as quais as pessoas acabam se acostumando.

"Até os 19 anos eu ficava muito só no meu bairro, mas minha perspectiva mudou quando saí e tive contato com outras realidades, me interessei por literatura, por cinema. Enxerguei a bolha em que a gente estava preso, um labirinto, na verdade, aqui na periferia. A gente não tinha consciência do que estava passando", afirma.

Nos últimos anos a comunidade se uniu em torno de projetos culturais, e Dayrel passou a levar grupos de crianças para visitar o Museu da Amazônia (Musa).

Bruno Kelly/ UOL Bruno Kelly/ UOL

Um dos rolês de que eu mais gosto é levar a galera daqui e de outras comunidades para visitar o Museu da Amazônia, para que retomem o acesso à própria cultura e vejam além dos horizontes da periferia.

Dayrel Teixeira, criador da página Funkeiros Cults

Transformando espaços

Outro projeto que está sob o guarda-chuva do Funkeiros Cults, como Dayrel diz, é a Copinha, que começou com a retomada de um espaço onde ocorreu uma chacina há cerca de sete anos. Toda semana ele e um grupo de amigos e colaboradores reúnem crianças da comunidade para jogar futebol, pintar, ler e receber aulas de fotografia.

"Morreu muita gente por causa de uma guerra de facção e aquele espaço com quadras e uma praça ficou completamente vazio. Ninguém tinha coragem de frequentá-lo por causa das más lembranças", conta. No final de 2022 Dayrel realizou a primeira edição do projeto esportivo no local e a história mudou: o lugar foi transformado em um centro cultural.

Ele afirma que a igreja ainda tem um papel importante quando o assunto é oferecer oportunidades esportivas e sociais para que os jovens das comunidades não se envolvam com o tráfico em Manaus, mas queria fazer algo no seu entorno. Hoje, há diversos times infantis que ocupam o espaço jogando bola. "Foi uma das minhas maiores conquistas", comemora.

Conseguimos tirar da memória aquela violência que teve ali e transformar o espaço da comunidade em um lugar de boas lembranças.

Dayrel Teixeira, criador da página Funkeiros Cults

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'Floresta mudou meu olhar'

A primeira edição do Creators Academy Brasil, evento idealizado pela ativista ambiental Kamila Camilo e pelo comunicador Raull Santiago que levou influenciadores para uma experiência de imersão na Floresta Amazônica para ver de perto a importância do bioma, em julho de 2022, foi crucial para ampliar a visão de Dayrel a respeito das lutas dos povos amazônicos.

A ideia do projeto era aproximar os criadores de conteúdo das questões relativas ao meio ambiente, como a proteção da floresta, e discutir justiça climática, racismo ambiental e crise hídrica, por exemplo, com o intuito de amplificar o debate sobre mudanças climáticas.

Ele conta que nunca tinha visitado o Museu da Amazônia nem o Teatro Amazonas e que isso o "desbloqueou". "O MUSA fica em frente à maior favela de Manaus e pouquíssimas pessoas da comunidade o visitam", diz, acrescentando que também teve a oportunidade de entrar na Floresta Amazônica pela primeira vez e conhecer as pessoas que moram e as lendas de lá. "Chorei muito. Mudou minha visão, me deu um gás para trabalhar mais e me fez ver que eu estava no caminho certo."

A periferia, os indígenas e os ribeirinhos têm lutas muito parecidas. Estamos à margem. A periferia nunca teve o privilégio de conhecer a própria cultura.

Dayrel Teixeira, criador da página Funkeiros Cults

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Funkeiro também lê

O primeiro meme do Funkeiros Cults a bombar nas redes foi com Franz Kafka, autor que Dayrel estava lendo na época em que a ideia ainda era um grupo no Facebook. Vestido como se estivesse a caminho de um bailão, cabelinho na régua e óculos espelhados, o jovem posou para uma foto com "A Metamorfose" e a legenda usava a linguagem da periferia.

A reação dos seguidores foi instantânea: o criador da página passou a receber imagens de todo o Brasil e por sugestão de um amigo decidiu migrar para o Instagram. "Deu certo porque é uma ideia divertida e com uma mensagem muito poderosa", diz o influenciador.

Ele observa que a diversidade de gírias faladas em comunidades espalhadas pelo país - Rio de Janeiro (RJ), Belém (PA), Belo Horizonte (MG) - é o que ajuda a enriquecer o trabalho. "A galera do funk conhece mais sobre literatura e a galera que tem acesso mais fácil à cultura entende o lado do funk", diz ele, acrescentando que até hoje não consegue ter a dimensão do seu alcance.

"Tem gente que fala: 'Pô comecei a ler, usei tal livro na prova, usei teu meme na escola'. Esses dias a Bruna Marquezine estava compartilhando um post nosso, jamais imaginei isso. Conseguimos estourar todas as bolhas."

O meme é a forma mais rápida de a gente chegar nos jovens, é a melhor maneira de falar com eles. Meu trabalho ajuda a quebrar o preconceito de que funkeiro não lê.

Dayrel Teixeira, criador da página Funkeiros Cults

Bruno Kelly/ UOL Bruno Kelly/ UOL

Intercâmbio linguístico

O professor de história e filosofia e influenciador Marcelo Marques, 21, de Paulínia (SP), viralizou com o perfil Audino Vilão por meio dos compartilhamentos de algumas de suas postagens, principalmente sobre Karl Marx, nas redes do Funkeiros Cults. O público de sua página, que tem mais de 70 mil seguidores, é formado majoritariamente por estudantes, professores, a rapaziada da graduação e quem segue por diversão, diz ele.

Para ele, a cultura do funk ainda é alvo de preconceito por ser uma expressão preta, periférica e que retrata uma realidade que muitas pessoas não conhecem ou ignoram. "Por ser um movimento muito recente — é praticamente um fruto da geração Z —, há também um certo juízo de valor por acreditarem na decadência da juventude", finaliza.

Engajamundo é uma organização de liderança jovem e feita para jovens que acredita na importância da atuação da juventude para enfrentar os maiores problemas ambientais e sociais do Brasil e do mundo. Ela é parceira estratégica do 2º Prêmio Ecoa na categoria Jovens Causadores. Conheça o trabalho em www.engajamundo.org

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