100% África

Referência para crianças negras, ex-Rouge Karin Hils prova que é sempre tempo de se reconectar com o passado

Camila Freitas Do UOL, em São Paulo Deborah Faleiros/UOL
Fotos: Arquivo pessoal e Jeff Porto | Arte: Deborah Faleiros/UOL

A cantora e atriz Karin Hils, 44, já dava o tom do que gostava de comer mesmo antes de nascer. Durante toda a gravidez da mãe, Regina Lúcia Pereira de Souza, o avô da artista precisava correr atrás de quiabo pelas ruas de Paracambi, município da região metropolitana do Rio de Janeiro, onde ela nasceu.

A paixão pelo fruto do quiabeiro pode ter surgido de uma conexão que vai além do cordão umbilical. Apesar de muito presente na culinária brasileira, o quiabo tem origem no continente africano, terra de onde Karin descobriu ter 100% do seu material genético.

Por meio de um teste de genética, ela soube que sua ascendência provém principalmente do povo bantu, cujos reinos mais conhecidos, o Kongo e o Ndongo, existiram no território que hoje conhecemos como Angola. É de lá que provém a língua quimbundo, que, inclusive, foi a base para o surgimento do nome quiabo.

Quais caminhos meus ancestrais percorreram?

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Karin Hils, pseudônimo de Karin Pereira de Souza, se tornou uma das artistas negras de maior visibilidade do país em meados dos anos 2000, quando integrou o Rouge, formada na primeira temporada do reality show Popstar. A canção "Ragatanga (Asereje)" marcou gerações e ainda gera milhares de reproduções nas plataformas audiovisuais.

Após sair do grupo, ela lançou cinco singles solo e se firmou como atriz estreando na novela "Aquele beijo" da Globo, em 2011. Atualmente ela interpreta Gláucia Monteiro na novela A Infância de Romeu e Julieta, do SBT.

Quando aprendi a ter consciência de mim mesma como mulher preta nesse país, passei a dar mais atenção às informações sobre a história das minhas raízes

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Rainha Nzinga. Foto: Galeria Nacional de Retratos de Londres

Bantu quer dizer ser humano

Estima-se que 75% dos cerca de 4 milhões de escravizados trazidos para o Brasil eram bantu. Aqui, eles influenciaram todas as camadas da sociedade, da cultura à língua, à culinária e à música.

Mesmo sem saber sobre os bantu afundo, Karin Hils tem uma certeza: a de que não veio de um povo que se submeteu.

"Às vezes a história que nos é contada, de alguma maneira, me deixa revoltada", explica ao se referir ao fato da história do povo negro africano ser, muitas vezes, retratada apenas pelo viés da escravidão.

Antes, por exemplo, os bantu do reino de Ndongo viviam em uma sociedade tecnológica, com uma forte atividade econômica baseada na agricultura e uma organização política bastante complexa, o que fere a ideia de uma África pré-colonial habitada por selvagens e bárbaros.

O reino de Ndongo também teve uma mulher guerreira como governante. Referida como Ana de Souza pelos portugueses, Nzinga Mbandi Kia Mbandi é um símbolo da luta anticolonial em Angola e é considerada uma heroína nacional. Ela liderou o reino de 1623 até o fim da vida, aos 82 anos, em 17 de dezembro de 1663.

Ancestralidade contra o racismo

Assim que soube da sua ascendência 100% africana, Karin mandou o resultado em um grupo que reúne a família. Lá, ela se junta às primas para instigar os parentes a saber mais sobre sua origem.

"Muitos quiseram fazer também e me deu vontade de organizar para todo mundo. Mas eles ainda ficam nesse lugar de não querer mexer muito. Muitas pessoas não se sentem confortáveis de reviver esse passado", explica Karin.

A cantora, por outro lado, não só está confortável com essas descobertas como cada vez mais curiosa. Para ela, saber sobre sua ascendência é uma forma de saber mais sobre si e entender mais sobre os próprios sentimentos.

Durante muito tempo, Karin não se via como uma pessoa conectada às suas raízes. Até por esse motivo aprendeu a ter paciência com a família que não é tão engajada.

Eu nunca fui uma mulher preta que faz parte de movimentos ativos. Eu sou de uma geração, e talvez pela minha criação, que ficava muito calada. Em várias situações eu não entendia o que estava acontecendo, a ficha normalmente demorava a cair para mim. Há pouco tempo que eu aprendi a responder essas coisas [racismo]

Karin Hils, atriz e cantora

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Karin se lembra de uma situação específica que muito a marcou. "Tinha um garoto da minha escola, na minha adolescência, que sentava atrás de mim e que ficava no meu ouvido dizendo 'macaca, sai daqui fedorenta'. Eu não me lembro de responder a ele, eu me recolhia".

De acordo com o artigo "Afirmação da identidade étnico-racial em crianças quilombolas e não quilombolas", publicado em 2021 por pesquisadores da Universidade Federal de Sergipe, crianças negras têm mais dificuldades de se identificarem como negras.

No entanto, dois estudos feitos para a produção do artigo mostram que criar referenciais positivos de pessoas negras na infância faz com que elas se identifiquem mais como negras e valorizem essa característica.

É o que também pensa Karin, que no auge da banda Rouge, foi uma das primeiras artistas negras a ser representada por uma boneca.

"Eu tenho muita esperança nas crianças, que essas próximas gerações possam ter oportunidade de fazer o que a gente está tentando fazer honrando quem veio antes de nós", comenta.

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Hora de voltar para casa

Karin esteve no continente africano, pela primeira e única vez, aos 23 anos durante uma das turnês do Rouge. O destino foi Angola, país que, assim como o Brasil, também foi dominado pela coroa portuguesa e tem o português como língua oficial.

A reação de Karin Hils ao chegar foi algo perto do deslumbramento. "Eu nunca tinha visto tantos iguais a mim. Não esqueço da imagem do avião, era todo mundo preto ali e aquilo eu nunca tinha visto", lembra esboçando um grande sorriso.

Jovem e com a agenda de shows apertada, ela não conseguiu desfrutar da experiência de fato, mas, mesmo assim, diz que sentiu ter "pisado em casa".

Quero de fato conhecer Angola, assim como quero conhecer o meu país. Eu já estive em todos os lugares do Brasil, agora é hora de fazer esse caminho de volta
Karin Hils

Outra viagem que fez Karin se conectar com seus ascendentes foi quando visitou o Maranhão, lugar onde ela diz que teve um encontro consigo mesma.

"Lá eu tive um outro paralelo de espiritualidade que não tive nem no Rio de Janeiro onde eu nasci. Parecia que lá era outro país, mas era o meu país e isso me encheu de orgulho", diz a cantora.

Apesar de lugares como Bahia, Rio de Janeiro e São Paulo serem sempre lembrados como destino da população escravizada no Brasil, o Maranhão também recebeu inúmeros negros vindos de África após serem sequestrados pela coroa portuguesa.

Está na cara que toda cultura desse país é fundamentada em cima da cultura preta e eu fico orgulhosa para caramba. É muita coisa maravilhosa

Karin Hils, atriz e cantora

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