Reza a lenda nas quebradas de São Paulo que, para uma pessoa ser respeitada, ela precisa antes de mais nada saber pelo menos um trecho de alguma música do Racionais Mc's. "Manda uma deles aí, então" é um desafio comum que se ouve na escola desde cedo. "Aqui estou mais um dia, sob o olhar da tia", costumavam cantar os colegas de ensino médio, mudando, claro, o começo da letra de "Diário de um Detento", faixa do histórico álbum "Sobrevivendo no Inferno", de 1997.
Especialmente para pretos e pretas de quebrada nos anos 1990, as músicas dos Racionais foram por muito tempo uma das poucas plataformas que possibilitavam imaginar como seria ter autoestima e dinheiro suficiente para tirar uma onda, andando por aí com o carro do ano, ou para denunciar o racismo, o genocídio da população negra e a falta de direito de quem vivia nas favelas. Ouvir um disco do Racionais era como a descrição na introdução da faixa "Fim de Semana No Parque": "Você está entrando no mundo da informação, autoconhecimento, denúncia e diversão. Esse é o Raio X do Brasil, seja bem-vindo."
"Agora mudou um pouco, né? Chega um momento que cada um tem que ser seu próprio líder. A gente não quer mais ser líder para todo mundo nos seguir. As pessoas agora têm que agir por si próprias. Acho que o Racionais já cumpriu essa missão de mostrar a importância disso", diz Kleber Simões. Mais conhecido como KL Jay, o DJ cria do Tucuruvi, na zona norte de São Paulo, há mais de 30 anos é o principal responsável pelas batidas inconfundíveis que servem de base para as letras de Mano Brown, Edi Rock e Ice Blue.
Foi em uma tarde de quarta-feira de quarentena que ele parou para conceder esta entrevista a Ecoa. O intuito era descobrir como estava um dos dos maiores DJs brasileiros em tempo de pandemia. Trocar uma ideia sobre a vida, sobre música, alimentação e como ele imagina possíveis novos mundos pós-Covid-19. Mas numa época em que se discute tanto como a humanidade pode aproveitar a situação atual para realizar mudanças necessárias, a realidade batia à porta. No dia anterior ao bate-papo, João Pedro, de 14 anos, tinha sido morto durante uma operação da Polícia Civil e da Polícia Federal no Complexo do Salgueiro, em São Gonçalo (RJ).
"Podemos começar?", pergunto ao telefone.
"Vamos lá, sem romantismo, sem chorar. Estamos em guerra", responde KL Jay do outro lado da linha.