Acredita que o negacionismo científico e climático esteja por trás da guinada conservadora que o mundo e, especialmente o Brasil, vive na atualidade? Como vê a questão de o próprio conhecimento estar sob ataque, com movimentos contrários a ciência e a acadêmica?
Vejo como um retrocesso civilizatório e por outro lado um distanciamento pela inflação do próprio projeto técnico-científico. O ser humano moderno cultivou uma espécie de "complexo de Deus" que, pelos meios da ciência e da técnica, tudo poderia. O vírus Covid-19 destruiu esta pretensão, mostrou nossa radical vulnerabilidade, expostos à imprevisibilidade e pôs de joelhos as potências militaristas com suas milhares de ogivas nucleares, armas químicas e biológicas. São absolutamente ineficazes face a esse vírus.
Isso criou uma espécie de desconfiança face à ciência e à técnica. Ela é falsa, pois não daremos conta da complexidade de nossas sociedades modernas sem ciência e tecnologia. Se não houver confiança nesse saber, como poderemos enfrentar a pandemia? Entregaremos a humanidade a um destino trágico? Seria uma suprema irresponsabilidade. O que precisamos é uma relação mais benigna para com a natureza. O avanço do industrialismo moderno destruiu os habitats dos vírus, e estes passaram a nós, face aos quais não temos imunidade. Poucos falam da natureza, tudo se concentra na ciência, nos insumos e na busca desenfreada de uma vacina. Mas o vírus vem da natureza devastada. Se não cuidarmos dela, ela pode nos enviar outros vírus letais e até, como aventam alguns biólogos, o "Próximo Grande" (The Next Big One) contra o qual não haveria nenhuma vacina e poria fim à espécie humana.
O que aconteceu no mundo para os próprios direitos humanos serem alvo de ataques? Por que hoje volta-se a lutar por questões básicas, tidas como conquistas da humanidade? Nesse aspecto, como vê o caso do padre Júlio Lancelotti, que foi recentemente alvo de ofensas em público por ajudar as pessoas mais vulneráveis da sociedade?
Vivemos uma transição de um tipo de mundo, construído sobre as soberanias nacionais, para um outro, já em curso, que é a nova fase da Terra e da humanidade: a planetização ou globalização. Demo-nos conta, especialmente com o testemunho dos astronautas que viram a Terra de fora, que formamos uma única entidade. Estamos todos juntos à natureza, à cultura e aos povos numa única casa comum.
Houve a globalização da economia e das finanças. Mas não houve um pacto social mundial, nem se globalizou a solidariedade e a cooperação. Isto ficou patente com a pandemia. Cada país se defendia por si e como podia. Deram-se conta de que isso era insuficiente e que deveriam ajudar-se mutuamente, como a União Europeia tardiamente percebeu.
Sempre que há transição de um paradigma cultural a outro se instaura uma crise. Parece que tudo vacila. Que as coisas já não valem como valiam. Por isso, não há limites. E não havendo limites, não há respeito, inclusive aos direitos humanos. Isso se nota nas ameaças de morte ao padre Júlio Lancellotti, que defende os direitos da população de rua, dando-lhes o mínimo necessário para viver e ter o sentido de dignidade. Como isso é escandaloso para uma sociedade, refém da cultura do capital, consumista e inimiga dos pobres, o perseguem, como se perseguissem esses pobres e desprezados. Mas ele dá o testemunho que não há nada mais valoroso que a vida, mesmo dos mais humildes, que nos cabe cuidar. É uma linguagem estranha a uma visão de mundo de eficiência e de ganho. Mesmo a democracia se transforma em farsa, num estado de exceção e sem lei.
O ser humano dificilmente vive sem uma certa ordem, como antropólogos e sociólogos o demonstraram. Quando esta começa a se erodir, as pessoas se agarram ao que consideram mais seguro, a valores do passado, a líderes carismáticos, que podem apontar para o novo, ou aos autoritários, que podem reforçar a volta ao antigo. É o que está ocorrendo quase em todo o mundo. É semelhante à crise da passagem do mundo feudal ao mundo moderno, onde tudo teve que ser redefinido. Somente que agora a realidade é muito mais grave: construímos o princípio de autodestruição, inauguramos o antropoceno e o necroceno (extinção em massa de vidas na natureza e na humanidade).
Não podemos errar, pois podemos nos autodestruir. Essa passagem causa angústias e é mais ou menos como um avião voando sem piloto. Daí surgem os fundamentalismos, prometendo seguranças enganosas, movimentos regressivos e violentos. Vivemos mais que uma crise mundial: é um chamado a inaugurarmos um novo começo com um outro paradigma de civilização. Se os fatores forem cuidados, podemos criar as bases de uma civilização biocentrada. A vida, e não o crescimento ilimitado, ganhará a centralidade. A política e a economia estarão a serviço dos seres vivos, e não ao mercado.
Em todo caso, está ficando claro que não haverá economia sem uma ecologia. Sem esta articulação, nas palavras de Zygmunt Baumann, "engrossaremos o cortejo daqueles que rumam na direção de sua própria sepultura". Sou otimista: a lógica do universo se constrói sempre entre o caos e ordem, prevalecendo esta de forma superior, e a fé cristã que afirma que Deus, segundo o Livro da Sabedoria, na Bíblia, "criou todas as coisas com amor e é o apaixonado amante da vida". Não creio que nos deixará perecer de forma tão miserável. A vida chama à vida. E viver é realizar a alegre celebração da vida.