Com amor, Liniker

"Afeto é a minha força motriz de trabalho. E também é político", diz Liniker, prestes a lançar série e disco

Paula Rodrigues de Ecoa, em São Paulo (SP) Camila Tuon/Divulgação

Era 2014 quando uma menina de 18 anos partiu sozinha de Araraquara (SP) para tentar a vida de artista na capital paulista. Chegou com um violão embaixo do braço e R$ 150 que acreditava ser uma quantia boa para viver em São Paulo (SP) por dois meses. "Coitada, né?", diz rindo ao lembrar desse pensamento ingênuo do passado. Sete anos depois, ela parece não acreditar que a vida deu a volta que deu. "É coisa de ficar pensando: nossa, que doida! Saí da minha cidade, comi o pão que o diabo amassou, passei fome e dificuldade financeira. Aí vou fazer música. E olha como é a arte, me trazendo de volta para um lugar onde eu queria ter começado tudo", diz Liniker.

Hoje com 26 anos, após uma incontável quantidade de shows nacionais, turnês internacionais, dois álbuns gravados com a banda Liniker & Os Caramelows, que formou em 2015, e até indicação ao Grammy Latino, Liniker estreia essa semana, na sexta-feira (25), como protagonista da primeira produção brasileira original da Amazon. Em "Manhãs de Setembro" ela dá vida a Cassandra, uma mulher trans que sai do interior de São Paulo para viver o sonho de ser sósia da cantora Vanusa na capital.

A experiência vem para relembrá-lá do início de tudo, quando ainda em Araraquara começou no sapateado e depois fez oficinas culturais da prefeitura. À época, ainda não cantava porque tinha vergonha. Foi justamente a atuação que lhe deu mais coragem para se expressar artisticamente. Mas seja no palco, no estúdio ou atuando, Liniker conta que sempre estará falando de uma coisa só, algo que ela julga ser fundamental nos dias tão sofridos que o país vive.

"Sabe, sempre vou falar sobre afeto. Acho que tentando sempre fazer com um olhar diferente, mas afeto é a minha força motriz de trabalho. E isso também é político para mim. Porque é como eu reivindico minha existência sendo preta, sendo trans, sendo LGBTQIA+. Acho que o que mudou é que agora não é mais a Liniker de lá do começo da carreira, que apareceu na mídia escrevendo cartas de amor que ela nunca entregou. Não, agora o amor da Liniker é ela mesma. É sobre autoamor", diz nesta entrevista para Ecoa.

Camila Tuon/Divulgação

BABY 95

Baby, sussurra no ouvido, baixinho

Que acordar comigo é um travesseiro de manhã, Liniker, Baby 95.


Ecoa - Você vai lançar seu primeiro álbum solo, a Liniker de agora quer falar sobre o que em suas músicas?

Liniker - Sabe que eu acho que sempre vou falar sobre afeto? Afeto é a minha força motriz de trabalho. E isso também é político para mim. Porque é como eu reivindico minha existência sendo preta, sendo trans, sendo LGBTQIA+. Acho que o que mudou é que agora não é mais a Liniker de lá do começo da carreira, que apareceu na mídia escrevendo cartas de amor que ela nunca entregou. Não, agora o amor da Liniker é ela mesma. É sobre autoamor.

Por que você acha importante chegar na vida das pessoas falando sobre esses assuntos hoje?

Porque eu acho que o afeto humaniza. O afeto tem me colocado em contato com a minha geração, com o meu passado, com a minha ancestralidade. O afeto me faz querer criar imaginários que a gente como pessoa negra e trans não existe muitas vezes, sabe? Mesmo no clipe de "Baby 95" [segunda música do primeiro álbum solo que Liniker lançará em agosto], com aquele casal que é todo amor, romance? Te faz querer viver e experienciar aquele afeto na realidade, sabe? Acho que através da sutileza a gente também pode ser uma ponte para coisas que estão dentro da gente. Eu acho que enquanto eu conseguir ser essa ponte entre o que eu sinto, o que o meu público sente e o que foi trazido pela nossa ancestralidade, eu vou ser uma artista muito feliz.

Você falou sobre ancestralidade, existe uma relação da sua família com a música e a arte no geral, certo?

Eu venho de Araraquara, de uma família preta, uma família do pagode, uma família periférica, uma família que me ama muito. E quando eu era mais nova, tinha ali um boicote social mesmo, sabe? De achar que se eu fosse pagodeira ou se eu fosse para o caminho que a minha família estava indo do samba, eu não ia me dar bem na escola, eu não ia ser boa aluna, que eu ia ter a realidade que muitas pessoas têm e eu não queria ter...

Então, é muito doido também ressignificar o samba na minha vida e entender o quanto isso é importante para mim, e o quanto eu fui construída com uma ideia de que se eu me aproximasse do samba e da minha pretitude, eu seria o que se espera de pessoas pretas, que é ser inferior. Acho que minha terapeuta também tem me ajudado no sentido de me fazer olhar pra minha criança e me perdoar por algumas coisas que, na verdade, nem eram minhas, foram os outros que colocaram na minha cabeça. E, aí, "Baby 95" vem disso, dessa reconexão com coisas que eu sempre fui. Foi de fato uma das primeiras músicas que eu consegui juntar tudo de referência sonora que eu tinha dentro da minha casa.

Assista "Baby 95", do disco solo de Liniker

Camila Tuon/Divulgação Camila Tuon/Divulgação

SEM NOME, MAS COM ENDEREÇO

Me sinto um peixe

Fora do aquário, dá pra ver, Liniker e os Caramelows, "Se nome, mas com endereço"

Agora falando da série "Manhãs de Setembro", que estreia na Amazon nesta sexta (25). Sua personagem é uma mulher trans que sai do interior e vem para São Paulo tentar carreira musical. Bem parecido com a sua história de vida, né?

Eu acho que só o fato de nós duas sermos pessoas trans tentando existir já representa muito. A personagem me dá vontade de querer repensar alguns formatos da minha vida, de pensar coragem, de pensar o trabalho, e é muito linda a trajetória da personagem no sentido de reivindicar afeto, que é uma coisa que o meu trabalho faz e é como eu me comunico. Então, foi muito legal a experiência de abrir espaço dentro de mim para construir alguém que não existe e ver tantas semelhanças que me fazem achar que ela podia ser uma amiga minha. Ela é uma pessoa real porque ela reivindica estar viva.

Outro assunto que é discutido na série é a paternidade, você faz esse papel de alguém que não quer o filho. Como foi essa parte para você?

Agora eu estou fazendo um exercício de falar sem dar spoiler (risos). Mas eu acho que a Cassandra, como negra e trans, é uma pessoa que procura afeto, só que de repente começa a ser demandada de afeto também. Como fica isso de dar e receber? A Cassandra de repente tem que lidar com um filho de um passado que ela já não quer mais lembrar.

Acredita que produções com representações assim podem ajudar a gente a entender algumas questões como raça, gênero, sexualidade?

Eu acho que é um caminho, mas botar toda responsabilidade numa só produção, acreditar que só uma série vai dar conta de abrir novos caminhos para pessoas LGBTQIA+ é demais. Ainda são muitas as barreiras que precisam ser quebradas para a gente conseguir balancear as coisas e ter equidade para conseguir ter cada vez mais pessoas diversas nesses lugares.

Eu fico muito feliz de não estar sozinha nessa também, de ter um elenco maravilhoso como a Linn da quebrada, dona Lisboa, a Divina Núbia, o Dante, que são pessoas LGBTQIA+, porque eu sei que muitas vezes a gente não tem espaço nos sets, né?

Geralmente, você tem uma personagem trans e um set inteiro cisgênero e branco. Então, ter sido acolhida nesse lugar, ver os meus do meu lado, também foi me fortalecendo. Foi muito importante porque acho que a quantidade de traumas que a gente tem faz com que o nosso corpo se enrijeça dentro de qualquer núcleo. E nas gravações sentir que eu tinha, por exemplo, a Linn do meu lado foi maravilhoso para conseguir fazer meu trabalho da melhor forma possível.

Assista ao trailer da série "Manhãs de Setembro", estrelada por Liniker

Camila Tuon/Divulgação

CALMÔ

Tem calma, tem jeito, tem também

O coração tranquilo, o coração de alguém

De alguém, Liniker e os Caramelows, Calmô

Como estão sendo esses dias pandêmicos para você?

Depois de estar tanto tempo em casa nesse um ano e meio pandêmico, de estar há tanto tempo reformulando o jeito de trabalhar e tantas outras coisas, às vezes dá uma sensação de estar meio cíclica nos dias, de não saber que dia é hoje, de não saber se hoje é segunda ou sábado porque todos os dias parecem iguais, entende? Existe um processo de tentar o dia inteiro lembrar que estamos aqui, de nos fazer presente no meio de tanto caos.

Existe alguma tática para se manter presente?

A tática tem sido tentar ser paciente. É no dia a dia lembrar onde eu estou, no dia a dia tentar me aterrar um pouco mais, é olhar para as coisas que estou fazendo com generosidade, senão a pandemia te faz pensar como se você não tivesse vivido nada, né? Porque é uma angústia e uma tristeza tão grande de todos os dias ver a quantidade de pessoas morrendo, ter que aguentar a distância da família, a saudade dos amigos. Então acho que dia a dia tem que ser um exercício de centro, de aterrar seu pé, lembrar o que você já conseguiu fazer, se cuidar...

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