Fora da margem

Festas, saraus, e outros eventos literários esquentam a cena cultural nas periferias e formam novos artistas

Rômulo Cabrera De Ecoa Simon Plestenjak

Numa noite quente de março de 2012, em um bar no Jardim Guarujá, na periferia da zona sul de São Paulo, Luz Ribeiro, então com 24 anos, foi chamada a segurar um microfone nas mãos e falar para um grupo de completos desconhecidos. Ao primeiro ruído de microfonia, todos no local se calaram, como numa prece. "Eu estava tremendo. Até aquele momento, ninguém nunca havia feito silêncio para me ouvir", diz ela que, desde então, já foi ouvida por centenas de pessoas nos eventos de poesia falada, os slams, no Brasil e no exterior.

Na ocasião, ela participava da Cooperifa, um dos primeiros saraus das periferias de São Paulo (junto com o Sarau do Binho, no Campo Limpo), que ocorre semanalmente há quase duas décadas e foi criado pelo escritor Sérgio Vaz. O evento ficou conhecido por ser realizado dentro do Bar do Zé Batidão, na zona sul, e, em 2007, deu origem à Mostra Cultural Cooperifa, que é realizada anualmente em vários pontos da região. Durante uma semana, a programação inclui debates, lançamentos de livros, leituras de obras e, claro, saraus. Além disso, há atividades de música, dança, cinema e teatro.

Assim como a Cooperifa, outros eventos de literatura têm aquecido as quebradas dos grandes centros, especialmente São Paulo e Rio de Janeiro. Eles ocupam bares, praças, quadras esportivas e fazem frente à escassez de infraestrutura cultural na periferia. Para se ter uma ideia do cenário, enquanto o centro da capital paulista dispõe de mais de 15 equipamentos de cultura (teatro, cinema, museus, entre outros) por 100 mil habitantes, na zona sul da capital esse número é inferior a um (veja quadro abaixo).

É o caso da FeliZS (Feira Literária da Zona Sul), na capital paulista, e da Flup (Festa Literária das Periferias), que ocorre no MAM (Museu de Arte do Rio de Janeiro). Além de atrair multidões (junto com a Mostra Cultural Cooperifa, os três somaram cerca de 50 mil visitantes este ano), eles dão vazão à produção literária das pessoas que vivem nas quebradas e, até pouco tempo, não tinham grande público. Também aquecem o mercado editorial, impulsionando o surgimento de editoras independentes e pequenas livrarias.

Mulher de Palavra

Luz Ribeiro (2017)

Nasce uma poeta

Luz Ribeiro é um exemplo dos artistas que ganharam projeção e fizeram carreira graças aos eventos de literatura nas periferias. Hoje, ela é uma poeta reconhecida na cena literária. Tem dois livros de poesias publicados e, em 2016, foi a primeira mulher a vencer o campeonato nacional de slam. Por causa do título conquistado, a poeta representou o Brasil na Copa do Mundo de Slam, que aconteceu na França, no ano seguinte. "Hoje posso dizer que vivo da palavra", diz ela que, além de escrever, também dá aulas e oficinas de escrita criativa.

Mas não era esse o futuro que se anunciava para ela. A poeta Luz Ribeiro nasceu, há 31 anos, Luciana Ribeiro, no Jardim Souza, zona sul da capital paulista. Queria ser escritora desde muito cedo. "Na escola eu fui apresentada a Clarice Lispector, 'A Hora da Estrela'. Li e pensei: 'nossa, eu quero ser isso!'", conta. Mas o meio em que vivia parecia lhe dizer o contrário.

"Eu me lembro de uma vez em que, no ensino médio, os colegas de classe estavam conversando sobre o que gostariam de cursar. Eu disse que faria Letras e um garoto respondeu que eu não poderia porque eu não tinha o dom da letra. Eu não fiz o curso, mas estudei Educação Física, minha primeira formação", diz ela que também se graduou em Pedagogia.

Não era verdade. Anos mais tarde, Luz seguiu o conselho de um amigo que havia lido seus escritos e foi ao Sarau da Cooperifa sem a pretensão de se apresentar. A ideia era apenas assistir. "Eu tinha medo de ouvir minha própria voz, imagina falar em público?", lembra. "Enquanto eu assistia às performances, fui ficando muito emocionada. Até ouvir o Sérgio Vaz, com aquele jeitão dele, que me ensinou que a palavra nas periferias tem urgência."

Luz não subiu ao palco naquele dia, mas voltou para casa impactada. "Voltei pensando: 'Valeu a pena subir essa ladeira enorme, pegar ônibus cheio, sair da minha zona de conforto'. Sair do meu quarto e conhecer outras pessoas foi muito significativo. Acho que aquela foi uma das noites mais felizes da minha vida." Na semana seguinte, ela voltou ao Zé Batidão decidida a se apresentar.

E não parou mais.

Nasce um movimento

Não é possível precisar quando exatamente surgiu o movimento de literatura periférica, mas há alguns marcos. Alguns consideram "Quarto de despejo: diário de uma favelada" (1960), de Carolina Maria de Jesus, a primeira obra de literatura marginal brasileira. No livro, Carolina descreve o cotidiano da favela do Canindé, na zona norte de São Paulo, onde ela vivia.

Mas foi só no fim da década de 1990 e início dos 2000, que a literatura periférica ganhou corpo e se configurou como um movimento de impacto. É quando alguns autores das periferias de São Paulo adotaram o termo "literatura marginal" para suas produções. "Entre eles está Ferréz, que de certa forma inaugura o movimento com a publicação do livro 'Capão Pecado', em 1997", diz a socióloga, mestre e doutora em antropologia social pela USP, Érica Peçanha, 39, que estuda o tema há uma década.

Trata-se de um romance situado no Capão Redondo, um dos bairros na periferia paulistana. A postura de Ferréz e seu impacto na projeção de produções das quebradas ganhou ainda mais importância com a publicação de três edições especiais organizadas por ele para a revista "Caros Amigos", em 2001, 2002 e 2004. Eram cadernos que contavam com textos de autores periféricos de diferentes regiões do país.

Além dele, outros autores passam a publicar e se manifestar com mais frequência contra a falta de representatividade dos grupos que vivem geográfica e socialmente fora do centro. Sérgio Vaz é um deles. Em 2007, publica o "Manifesto da antropofagia periférica", em que denuncia a ausência de equipamentos públicos culturais nas quebradas e a falta de representatividade de personagens e vozes periféricas na arte que chega ao centro.

A denúncia faz sentido. Segundo uma pesquisa realizada pelo Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea, coordenada por Regina Dalcastagnè, 51, pesquisadora da Universidade de Brasília, a maior parte dos escritores brasileiros é formada por homens brancos que escrevem sobre... homens brancos (veja quadro).

"Quando criamos o sarau, eu e os demais artistas do bairro, vivíamos em um deserto de possibilidades culturais. Não nos restava alternativa que não fosse sonhar com as próprias mãos e construir o nosso próprio espaço", diz Vaz, que tem obras disponíveis nas principais livrarias do país.

A estrutura marginal

De acordo com Regina Dalcastagnè, as pessoas que estão fora do universo da literatura acreditam que seriam incapazes de produzi-la. Para ela, a definição restrita da arte literária, construída ao longo da história humana, excluiu outras formas de expressão — justamente aquelas produzidas nas bordas da sociedade.

No entanto, o que se vê agora é uma espécie de tomada desses espaços de fala por grupos antes marginalizados. Nos últimos anos, as periferias brasileiras criaram as condições necessárias para agenciar os próprios trabalhos artísticos e, mais que isso, de promovê-los seja em um sarau dentro de um bar, seja numa competição de poesias ao lado do terminal de trem de uma metrópole como São Paulo.

O que, segundo Dalcastagnè, em artigo intitulado "Um território contestado", tem causado desconforto no campo da chamada "alta literatura", haja visto que "um senhor que conserta geladeiras, ou o rapaz que corta cabelos, ou mesmo uma doméstica", ganha legitimidade como escritor.

"A gente buscou romper com a cultura que vinha do centro ao gritarmos a plenos pulmões: 'Nós vamos fazer cinema, teatro e literatura do nosso jeito. E aí?', contou Vaz.

Para ele, não há como descolar o discurso político das produções das quebradas, uma vez que a arte vinda das margens deriva de um processo intenso de luta por uma cultura de pertencimento dos moradores e reivindicações sociais. "É por meio dessa literatura dita 'marginal', que vem a reboque da cultura hip hop, que nós conseguimos explicar para as comunidades o que somos e de onde viemos", disse.

"Ao eliminarmos os atravessadores", continuou Vaz, "passamos a contar as nossas próprias histórias, de pretos, pretas e pobres. Afinal, quando as pessoas pensam na favela, falam de estatísticas, de números. Nós falamos de pessoas que conhecemos. É diferente."

A poeta e jornalista Elizandra Souza, 36, tem a mesma opinião. Para ela, o autor periférico acaba sendo um escritor político "porque fala o que ninguém fala". "Não tem como eu não 'racializar' a minha literatura, uma vez que, mesmo em espaços democráticos surgidos dentro das comunidades periféricas, a voz da mulher negra ainda está na base da pirâmide social."

Elizandra publicou dois livros, entre eles "Águas da cabaça" (2012). É também uma das cinco fundadoras do "Sarau das Pretas", evento literário itinerante que se propõe a refletir a ancestralidade e o feminino negro.

"Não posso me dar o luxo de escrever palavras neutras, sem posicionamento. Mas é preciso 'enegrecê-las', já que a literatura ainda permanece tão branca e elitizada", afirmou Elizandra, que acredita que o trabalho de muitos autores nas periferias é necessário para que se pluralize as diversas representações do negro no imaginário do brasileiro.

À margem de quem?

Para dar conta das novas produções, um novo mercado vem se organizando: o das editoras independentes. Muitos dos autores periféricos se autopublicam, financiando as próprias obras em gráficas de pequenas tiragens. Outros, por outro lado, montam suas próprias editoras com o objetivo de publicar seus livros e trabalhos de outros escritores. Entre eles, podemos citar a Editora benfazeja, a Edições Me Parió Revolução, Editora e Gráfica Heliópolis e LiteraRUA. De acordo levantamento realizado pela jornalista e pesquisadora Jéssica Balbino, 34, ao menos no eixo Rio-São Paulo, há cerca de 20 pequenas editoras e selos nas periferias surgidas na última década.

"A cena dos slams tem aquecido, em dada medida, o surgimento de novos selos pelo país", diz Jéssica. "Devido a isso, grandes editoras têm se interessado por essa produção. A Editora Planeta, por exemplo, lançou recentemente o livro 'Querem no calar', organizado pela escritora Mel Duarte, com textos de poetas de todo o Brasil."

O publicitário Toni Carlos, 41, é fundador da LiteraRUA, editora e livraria voltada a publicar livros cujos temas envolvam o universo das periferias e das minorias. Antes de se aventurar neste mercado, porém, Toni escrevia em fanzines e publicou alguns de seus textos em portais na internet.

"Se estivéssemos falando em comida, o prato mais nutritivo, creio eu, é aquele com várias cores, sabores, temperos. A literatura é também um alimento e segue essa lógica", refletiu Toni. "A qualidade da produção literária não se reduz aos cânones, apenas, mas na diversidade de expressões culturais, seja nos grandes centros, seja nas periferias."

Poema sem título

Luz Ribeiro (2019)

O centro quer a periferia

Renegados por décadas, os autores periféricos têm ganhado destaque na cena main stream. Eles têm sido chamados para participar de eventos "do centro", onde, não raro, são destaque. E suas obras vêm sendo publicadas por algumas das editoras mais importantes do país. É o caso de Geovani Martins, cuja coletânea de contos "O Sol sobre a cabeça" (2018) conta o dia a dia das pessoas — sobretudo os jovens — das favelas cariocas. O livro foi publicado pela Companhia das Letras e é finalista do 61º Prêmio Jabuti, principal premiação de literatura brasileira. Os vencedores serão anunciados no próximo dia 28.

A premiação homenageará a também autora periférica Conceição Evaristo. Inspirada em "Quarto de despejo", de Carolina Maria de Jesus, a autora mineira começou a escrever suas memórias e outras histórias baseadas nos causos que ouvia de seus parentes na favela em que vivia em Belo Horizonte. Estudiosa, ela conseguiu cursar letras e concluir um mestrado e um doutorado na área. Seus primeiros livros foram publicados só duas décadas depois de terem sido escritos. Ganharam projeção depois que passaram a ser adotados em provas de vestibular. Em 2017, ela foi um dos grandes destaques da Flip (Festa Literária de Paraty).

A homenagem, acredita ela, tem o papel de inspirar outras pessoas, principalmente as mulheres a escrever. "Cria uma certeza do valor de nossa literatura. Quer dizer, textos de autoria de pessoas que não se acham inscritas no sistema literário tradicional", disse a Ecoa.

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