Loucura Suburbana

O bloco carioca que fez o encontro da loucura com a cidade dar samba

Lívia Duarte De Ecoa Lívia Duarte

Quinta-feira. O Rio de Janeiro está em pré-carnaval e se prepara para celebrar, mais uma vez, a maior festa popular do país. Bate-bolas na Cidade de Deus ou em Madureira, Piedade, Bangu, Realengo; o centenário Cordão do Bola Preta no Centro; o embate icônico entre Cacique de Ramos, dos sambistas cariocas, e o Bafo de Onça; os Filhos de Gandhi, que levam a cultura africana para a avenida - todos estão preparados para os dias que vêm a seguir.

Às quatro da tarde, ali no Engenho de Dentro, virando à esquerda quando desce do trem, na Rua Ramiro Magalhães, já começamos a ouvir os gritos da batucada da Insandecida: é a liberdade abrindo as asas para a igualdade desfilar. O Loucura Suburbana está abrindo o carnaval do subúrbio carioca e colocando a loucura como enredo das ruas da cidade.

Pelas ruas da cidade
Deixa eu falar em poesia
E expressar minha humanidade
É preciso resistir
Quebrem os cadeados
Viva a Liberdade"

E lá, pelas ruas do bairro histórico, a porta-bandeira e o mestre-sala dão permissão para a gente passar pela jornada da folia. Por todos os lados, são sorrisos se encontrando e se reconhecendo na mesma vontade: sorrir juntos. Alguns olhares, se antes dispersos ou alheios às semelhanças, agora desfilam comprometidos e livres para serem elos uns dos outros. Não há quem ouse passar por aqui ausente.

Divulgação/Loucura Suburbana
Lívia Duarte

Doutor, eu ouço vozes

Há quase 20 anos, o Bloco Carnavalesco Loucura Suburbana desfila nas ruas do bairro Engenho de Dentro, Zona Norte do Rio, reunindo usuários, familiares, funcionários da rede de saúde mental, moradores e visitantes - todos viram foliões, componentes e colaboradores.

O desfile é regido pela bateria, a Insandecida, que é formada por alunos da oficina de percussão e amigos, e traz no nome uma provocação. Por trás do surdo, do repique, das fantasias e de muito samba, o trabalho sustenta a tentativa de conduzir entre todos esses atores uma convivência com afeto, acolhimento e em harmonia pelos diversos significados da loucura. Um desafio de embalar o resgate do carnaval de rua na luta e resistência pela liberdade e o rompimento com um modelo coercitivo de existência e cuidado.

"Eu acho que a coisa mais legal do Loucura Suburbana foi aprender a conviver com a loucura, tornar isso uma coisa cotidiana", diz Ariadne Mendes, psicóloga e coordenadora geral do Loucura Suburbana e do Ponto de Cultura. Ela ressalta que, nesses 20 anos de trajetória, o aprendizado chega e parte de todos os envolvidos, que já têm no bloco uma referência afetiva e simbólica de carnaval e saúde mental.

"As pessoas também se transformam quando elas começam a ver o louco e entender a loucura de uma outra forma. [...] Começam a ver também a beleza, os valores, a criatividade. Isso tudo também traz transformações para as pessoas, é transformação cá e lá", completa.

Em 2010, o Loucura Suburbana se constituiu como o primeiro Ponto de Cultura em saúde mental da cidade do Rio de Janeiro - Ponto de Cultura Loucura Suburbana: Engenho, Arte e Folia - passando a oferecer atividades permanentes gratuitas abertas à população e incorporando a cultura e a arte à saúde mental. Durante o ano, acontecem oficinas de música, de percussão, ficando mais intensas nos meses próximos ao desfile, e um ateliê com oficinas para a criação de adereços e fantasias. Com uma gestão horizontalizada, as reuniões de equipe têm a participação dos usuários. Além disso, possuem um cyber com acesso grátis à internet, fazem apresentações com pocket shows em vários espaços da cidade e vão a escolas e unidades de saúde para realizarem oficinas de percussão.

"É remédio pra cá
É oficina pra lá
Na terapia, eu vou me encontrando
E se a saudade apertar
Eu quero apenas amar
O Loucura Suburbana vai passar"

O bloco segue a proposta de construção coletiva, com a participação dos usuários, e de quem mais estiver interessado, em todo o processo - desde a criação do samba, das fantasias e da definição do tema do desfile, à composição da bateria. Para a escolha do samba-enredo, um concurso aberto para quem quiser cantar suas dores e amores, e jurados de renome no cenário do samba dão seus votos.

Divulgação/Loucura Suburbana Divulgação/Loucura Suburbana

Quando a comunidade se integra, ela acaba participando da questão da luta contra o manicômio, da extinção dos manicômios. Esses ideais, que eram exclusivos da saúde mental, acabam sendo compartilhados. Acho que as pessoas se sentem também participando desse movimento.

Ariadne Mendes, Psicóloga e coordenadora geral do Bloco Loucura Suburbana

Lívia Duarte

Delírio-Inventivo

Desenvolvido dentro do Instituto Nise da Silveira, o bloco nasceu como parte do processo de substituição ao modelo asilar-manicomial de reabilitação social, seguindo a Lei da Reforma Psiquiátrica de 2001, que estabeleceu novas diretrizes para o cuidado à saúde mental no Brasil.

O Loucura Suburbana é herança da construção e do trabalho de Nise da Silveira - pioneira no processo de utilização da arte como terapêutica e na luta pela Reforma Psiquiátrica no país -, que tinha como objetivo um cuidado humanizado na saúde mental, tendo a expressão criativa como ponte, pautado na reinserção social, no contato afetivo entre pessoas, na desmanicomialização e na construção de uma rede de serviços e estratégias comunitárias, solidárias e inclusivas.

E por falar em mulher guerreira
Salve Nise da Silveira
Com loucura no coração
Fazia arte com emoção"

No Instituto também está o Museu de Imagens do Inconsciente, fundado por Nise em 1952, um centro de estudos e pesquisa na área de saúde mental que abriga mais de 350 mil obras de pacientes com transtornos mentais oriundos da arte-terapia.

Lívia Duarte Lívia Duarte

Do lixo ao luxo

Não por coincidência, no mesmo dia e horário que o Engenho de Dentro cai no samba, a histórica Paraty, conhecida pela exuberante natureza, pela cultura das populações tradicionais e por realizar a maior festa literária do país, recebe o bloco Caps Mania. A inspiração veio da capital, por meio da experiência que Januária Moreira, psicóloga do Centro de Atenção Psicossocial (CAPS)* da cidade, teve no Loucura Suburbana como oficineira. "Eu já tinha isso bem vivo, de como é potente para os usuários da saúde mental, de como isso é produtor de reinserção social, de como isso de fato deveria ser o foco da luta antimanicomial", afirma.

O encontro com Eloa Moraes, assistente social, parceira de trabalho no CAPS e também militante da luta antimanicomial, potencializou a ideia de criar o bloco, em 2014. Desde então, o desfile abre o carnaval paratiense, mesmo ainda não fazendo parte do calendário oficial do evento, partindo do samba e da alegria para ser uma ferramenta de cuidado, de reinserção social e de aproximação dos usuários com a comunidade e a cidade.

"Durante o trabalho que a gente faz com eles, a gente traz isso para as discussões, de que a gente só tem um bloco de usuários da saúde mental porque a gente tem um modelo, uma luta antimanicomial, pessoas que lutam para que o tratamento continue sendo em liberdade, para que não perca esse caráter político", reforça Januária.

A iniciativa tem mostrado sua relevância na construção de uma comunidade saudável e fortalecida para lidar com as suas diferenças. Após cinco anos, o bloco conseguiu apoios importantes para a sua realização, que inclui, além da bateria, oficinas para a preparação dos estandartes e dos adereços com o uso de materiais recicláveis. Ainda assim, a participação das famílias e da comunidade é bem menor do que a equipe espera. "Mas é essencial porque é um trabalho de reinserção social para eles, então, ter pessoas da comunidade é imprescindível", afirma Januária. A ideia de se juntar a outros blocos da cidade é um exemplo de integração da comunidade. Em 2017, o bloco de jovens do Campinho, um Quilombo localizado em Paraty, se juntou ao bloco do CAPS para fortalecer a bateria e o desfile.

O trabalho do CAPS, para além do bloco, conta com um Afro-sarau, que apresenta obras de escritores e escritoras negras, se unindo à ideia de ser uma clínica antirracista, e oficinas para geração de renda, com venda de artesanato em todos os eventos da cidade. Para o futuro, além de envolver mais a comunidade, a ideia é batalhar para o bloco entrar na programação oficial do carnaval, firmar apoios para estruturar as atividades e, quem sabe, remunerar os usuários, como acontece com os outros blocos da cidade. O CAPS Mania segue afirmando sua luta contra o estigma da loucura e da saúde mental e para resgatar a cidadania usando a arte como ferramenta de cuidado.

"A gente tem um propósito, que é mostrar para a sociedade que a gente pode cuidar das pessoas em liberdade, que a gente pode ter a reabilitação psicossocial dessa maneira, essas pessoas estando na sociedade, participando ativamente da sociedade como outra qualquer, e que a sociedade precisa acolhê-las", afirma Januária.

Lívia Duarte Lívia Duarte
Lívia Duarte

Que loucura, meu amor!

Mas nem tudo é só samba. São muitos desafios para manter a bateria aquecida e as atividades funcionando. Sem contar com um financiamento regular, a não ser pela estrutura que é oferecida pelo Instituto Nise da Silveira, os recursos para manter o espaço, as atividades, o pagamento da equipe, entre outras necessidades, são escassos. A falta de investimento em saúde mental tem afetado consideravelmente o trabalho, gerando uma crise no setor. Além da extrema dificuldade financeira, o Loucura Suburbana tem enfrentado um cenário de diminuição da participação da comunidade nas atividades que ocorrem durante o ano.

Para o desfile de 2020, será lançada uma campanha de financiamento coletivo, além de uma força-tarefa de voluntários para ajudar a confeccionar as roupas para o desfile. As reuniões já começaram, e o tema do bloco e a escolha do desenho na camisa já estão sendo discutidos. O apoio de parceiros, assim como de toda a comunidade, será fundamental para tudo acontecer.

Fortalecer o elo entre a loucura e a cidade é um esforço para provocar a reflexão sobre a corresponsabilidade e autonomia dos sujeitos e do coletivo na questão da saúde mental. E, ainda, de considerar as possibilidades de criação e contribuição dentro de um universo estigmatizado e pouco acessado pela sociedade em geral, entendendo as violações que podem surgir dessa estigmatização. O Loucura Suburbana abriu os caminhos para falar sobre saúde mental a partir de um lugar potente que conecta as pessoas.

"O bloco está naturalizado para usuários e famílias. O Loucura Suburbana é considerado o bloco da saúde mental, então é motivo de alegria, é aquele sentimento de pertencer a alguma coisa, é um local de encontro. Eu acho que essa questão do encontro e da alegria é a principal marca do desfile do Loucura. O Loucura é deles, o loucura somos todos nós", comemora Ariadne.

Lívia Duarte Lívia Duarte

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