A luta da criola

Após ação com jovens pobres deixá-la íntima de cemitérios, Lúcia Xavier virou referência para mulheres negras

Guilherme Henrique Colaboração para Ecoa, de São Paulo

Desde os 14 anos na lida, Lúcia Xavier, 62, pode olhar para trás e ver nitidamente três encarnações como militante pelos direitos humanos.

Primeiro, junto a jovens em situação de vulnerabilidade, que eram marginalizados pelo Estado na cidade do Rio de Janeiro. Depois, para atender meninas e mulheres esquecidas pelas políticas públicas. Na terceira e atual fase, ela coordena a ONG Criola se tornou uma das ativistas do movimento de mulheres negras mais atuantes do Brasil.

Isso não quer dizer que não haja espaço para mulheres com outras características. "Tem mulheres negras que se autodenominam apenas como mulheres negras. Outras como feministas interseccionais. Nós queremos receber todo mundo, porque isso aprofunda a capacidade de compreender e relacionar com aquela pessoa em relação ao mundo", comenta.

Se eu não souber absorver a diferença, não sei como viver em sociedade.

Proibido entrar em movimento

Deborah Faleiros/UOL

Durante boa parte da infância, Lúcia viveu com as tias e a avó paterna em Rocha Miranda e Parada de Lucas, bairros da zona norte do Rio, onde estava ambientada. Aos 12 anos, ela e as duas irmãs foram morar com a mãe em um cômodo simples na Tijuca, também na zona norte. "O cenário foi completamente alterado."

No Colégio Estadual Antônio Prado Junior, "dava para contar nos dedos" o número de alunos negros. Para suportar a rotina de brincadeiras e ofensas que miravam sua raça e classe social, a adolescente criou um grupo de discussão política com alguns colegas.

O grupo de 5 ou 6 alunos era municiado com jornais que um deles trazia dos bicos que fazia como ferroviário. "Lembro de uma reportagem do [jornalista] Tim Lopes sobre os trabalhadores do metrô no jornal 'Movimento'", diz. Não durou muito. A diretora descobriu e proibiu as reuniões.

Acho que dei mole com um jornal na mão nos corredores. Estávamos no meio a ditadura militar (1964-1985), e a diretora achou que era algo muito à esquerda. Tomamos um esporro daqueles.

Cláudia Ferreira Cláudia Ferreira

"Acorda, Criolo!"

Deborah Faleiros/UOL

Para Lúcia, não foi por acaso que o grupo de discussão surgiu no colégio. Era um período efervescente pela busca por direitos humanos, com as lutas anticoloniais na África e os movimentos pelos direitos civis nos Estados Unidos. Era em meio a essas ideias que vivia uma parcela da população negra, sobretudo a mais jovem.

"Havia o funk, os bailes de música soul, aquela linguagem do 'black is beautiful'... Isso cria um amálgama que se junta com o samba e que dá ao negro uma sensação de pertencimento", diz a ativista.

Parte dessa turma estava também na militância política, conta Lúcia. Antes mesmo de entrar na faculdade, ela já estava nas ruas com o grupo "Acorda, Criolo". Atuando na Cidade de Deus, favela da zona oeste do Rio, a organização batalhava por melhorias na saúde, habitação e transporte.

Queimavam ônibus, travaram as ruas do entorno. Não era brincadeira.

Ninguém quer ficar íntima de cemitério

Deborah Faleiros/UOL

O "Acorda, Criolo" formou o pensamento político de Lúcia, que logo abandonou o curso de direito na UFF (Universidade Federal Fluminense) pela graduação em serviço social na UFRJ (Federal do Rio de Janeiro).

A partir daí, começou a atuar em instituições vinculadas à extinta Funabem (Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor), onde atendia jovens vulneráveis. Trabalhou ainda na favela da Rocinha, na zona sul da capital fluminense, pelo extinto Ibrades (Instituto Brasileiro de Desenvolvimento) e em parceria com a associação de moradores do local.

Embarcou em 1984 no Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua, instituição criada para transformar a criança e o adolescente em protagonistas da defesa de seus direitos e pressionar o Estado na concepção de políticas públicas para essa população.

O cansaço da constante violência afastou Lúcia das ruas. Foram a gota d'água duas chacinas que aconteceram no Rio em 1993: a da Candelária e a de Vigário Geral. Na primeira, em 23 de julho, milicianos assassinaram oito jovens que dormiam nas proximidades da Igreja da Candelária. Na segunda, em 29 de agosto, um grupo de extermínio matou 21 moradores da favela na zona oeste da cidade. A suspeita era de se tratava de um acerto de contas pela morte de policiais dias antes.

Eu estava enterrando três, quatro jovens por mês. Era uma violência muito grande. Quem quer se tornar íntima de cemitério? Até a tristeza já tinha ido embora. Precisava oxigenar as ideias e respirar fora daquele cenário.

Em paralelo a isso, Lúcia foi atravessada pela questão de gênero ao trabalhar com meninas e mulheres vulneráveis. Era como se olhasse aquelas meninas e visse ela mesma, como em um espelho às avessas. "Eu me perguntava por que elas não conseguiram sair daquela situação e como minha história foi diferente. Elas não foram alcançadas pelas políticas públicas", reflete.

Neste momento, o maior interesse de Lúcia era instrumentalizar educadores e educadoras para lidar com essas meninas e situações. Ela cria a ONG Criola em 1992, mas só conseguiu se desvincular do trabalho com jovens cinco anos depois.

Alerj Alerj

Consequências reais da luta

Deborah Faleiros/UOL

A organização que hoje Lúcia lidera surgiu a partir de um núcleo de mulheres que fazia parte do CEAP (Centro de Articulação de Populações Marginalizadas), uma organização que não era exclusivamente feminina. De lá, saíram militantes como a médica Jurema Werneck.

"Eu havia trabalhado com jovens de todo tipo, mas havia quem estivesse vinculada à saúde, como a Jurema, outras mais focadas na educação e nas artes. Decidimos reunir isso em uma organização com atuação múltipla", explica.

Uma das primeiras campanhas foi contra a esterilização em massa de mulheres negras em favelas do Rio. Era um tempo em se fazia necessário travar debates que não estavam na pauta do dia, como o HIV e a Aida, em regiões periféricas e sem acesso a políticas públicas. "Queríamos que elas levassem essas discussões aos lugares onde viviam", salienta.

Mesmo nas instituições nós repetimos erros comuns: as meninas faziam cursos de manicure, cozinheira, passadeira. Os meninos tinham computador. Então, 'Criola' nasce com esse intuito de olhar as mulheres e livrá-las da subordinação

Lúcia Xavier, coordenadora da ONG Criola

O silenciamento como constante

Deborah Faleiros/UOL

O trabalho da ONG vinculado à saúde ganhou destaque, e algumas de suas integrantes passaram a ocupar espaços no poder público. "Ajudamos a constituir um diálogo entre Estado e sociedade civil", afirma Lúcia, citando a permanência nos comitês técnicos de saúde da população negra do Ministério da Saúde e do Município do Rio de Janeiro.

Além disso, ela trabalhou como assessora parlamentar de deputados estaduais petistas no Rio. Entre 1991 e 1994, esteve ao lado de Marcelo Dias para construir políticas públicas para jovens em situação de vulnerabilidade. Já com Carlos Minc, entre 1997 e 2000, criou ações para as mulheres e o público LGBTQIA+, como o Disque Defesa Homossexual (DDH), que funcionou por 8 anos até 2007.

Em sua trajetória no poder público, ela ainda ocupou a Subsecretária Adjunta de Defesa da Cidadania, vinculada à Secretaria da Mulher, na gestão estadual de Benedita da Silva (PT).

De dentro do poder público percebia que nossa atuação, diante do cenário que se tinha, era fundamental. Nesses 30 anos [em 2022], Criola foi o espaço que se abriu para vivenciar a condição da mulher em várias formas. Isso significa arregimentar esforços e usar nossa força e criatividade para criar soluções contra o racismo patriarcal

Lúcia Xavier, coordenadora da ONG Criola

Enquanto Lúcia ocupava cargos públicos, Criola não se contentava com a publicação de cartilhas sobre saúde e direitos humanos. A ONG ia além do debate teórico e promovia empreitadas judiciais contra o racismo.

Em 2000, por exemplo, venceu uma ação judicial contra a Sony por causa da música "Veja os Cabelos Dela", do então comediante e futuro deputado federal Tiririca. Devido aos versos racistas (veja os cabelos dela / Parece bombril, de ariá panela / Eu já mandei ela se lavar / Mas ela teimo e não quis me escutar / Essa nega fede, fede de lascar), a gravadora foi condenada a pagar R$ 1,2 milhão de indenização, dividida entre as organizações que assinaram a petição.

Na campanha "Racismo virtual, Consequências Reais", a ONG estampou outdoors com frases racistas proferidas contra a jornalista Maju Coutinho, da TV Globo. Para causar maior comoção, as ofensas foram posicionadas em locais próximos às residências dos agressores em cidades como Porto Alegre (RS), Americana (SP), Rio de Janeiro, Vila Velha (ES) e Feira de Santana (BA).

Ao longo dos anos no ativismo, Lúcia já ouviu dezenas de definições sobre como classificar as diferentes lutas de mulheres negras. "Não adianta querer colocar tudo em uma caixa. Há nuances que diferenciam essas mulheres, então o nome que se vai dar para cada um dos grupos não me interessa muito", diz. Ela defende, no entanto, que questões objetivas sejam analisadas.

"O racismo, por si só, já explicaria tudo que vive uma mulher negra. Mas nós temos outras dimensões. Entre mim e uma mulher trans, a dimensão da identidade de gênero traz mais desvantagens para ela. Compreender essa dinâmica ajuda a barrar as camadas de violência que se instituíram na sociedade", explica.

Para ela, é preciso admitir que a luta de mulheres brancas produziu direitos e mudou a vida de mulheres brasileiras. Os espaços para o diálogo aumentaram, assim como a possibilidade de lutar pelo poder. Mas isso não apaga o silenciamento sofrido por mulheres negras ao longo da história.

Essa luta não foi capaz de vencer as hierarquias e subordinações entre nós. Vamos jogar tudo fora? Não sei. Mas é preciso questionar. Como herdeiras do feminismo, mulheres negras não admitirão que o debate racial seja marginalizado

Lúcia Xavier, coordenadora da ONG Criola

CABEÇAS NEGRAS

Deborah Faleiros/UOL

Quem são as pessoas que colaboraram para a formação da consciência negra no Brasil? Criado há 10 anos, o Dia da Consciência Negra tem se consolidado como um momento de combate ao racismo e também de valorização da cultura afro-brasileira. De personalidades do cenário nacional e internacional a nomes que ficaram de fora dos holofotes, fato é que muita gente colaborou para a construção não só da data, mas para a vivência da consciência negra na prática.

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