Recomeço

Fugindo de guerras ou Talibã, 1.500 refugiados são empregados no Brasil graças a ONG liderada por publicitária

Lia Hama colaboração para Ecoa, em São Paulo (SP) Julia Rodrigues/UOL

"Sou publicitária e tinha uma agência de comunicação digital que atendia clientes em São Paulo e Brasília. Em 2015, quando estava perto de completar 50 anos, entrei numa crise pessoal e quis dar um novo rumo à minha vida.

Na publicidade, de vez em quando, eu fazia trabalhos sem remuneração voltados para causas sociais, mas era sempre algo pontual: criava uma campanha, realizava uma ação e pronto. Sentia falta de algo que pudesse ter um impacto mais duradouro em um grupo maior de pessoas. Foi quando resolvi abraçar a causa dos refugiados.

Na época, havia um movimento grande de pessoas fugindo da guerra na Síria para a Europa. O noticiário era tomado por imagens dramáticas de refugiados morrendo na travessia do Mediterrâneo. Parte deles veio para o Brasil.

Junto com outras pessoas, criei então um movimento chamado Estou Refugiado. Em 2019, fundamos a organização não governamental com o mesmo nome. O 'estou' é para enfatizar o caráter transitório da situação dessas pessoas forçadas a deixar seus países para refazer suas vidas em outro lugar.

A escolha do tema tem a ver com as minhas origens. Meu avô chegou em 1905 ao Brasil vindo da Bessarábia, na região onde hoje é a Romênia. Ele pertencia a uma família judia que fugiu da perseguição dos russos.

Cresci ouvindo histórias de judeus que tinham outras profissões e foram obrigados a trabalhar com comércio para sobreviver no Brasil. Pensei: 'A melhor forma de ajudar os refugiados é conseguindo emprego para eles'. Aos poucos, abandonei a publicidade e me tornei ativista em tempo integral."

Julia Rodrigues/UOL
Julia Rodrigues/UOL Masuma Yavari e Mahboba Rezayi vieram do Afeganistão e hoje trabalham na Estou Refugiado

Masuma Yavari e Mahboba Rezayi vieram do Afeganistão e hoje trabalham na Estou Refugiado

Refúgio no Brasil

Aos 57 anos, Luciana Maltchik Capobianco é fundadora e diretora da Estou Refugiado, ONG cujo foco é ajudar refugiados a ingressarem no mercado de trabalho. Com uma equipe de profissionais de recursos humanos, psicólogos e comunicadores, a organização sediada no bairro de Pinheiros, em São Paulo, possui um banco de dados com mais de 6 mil refugiados inscritos.

Destes, mais de 4 mil foram enviados a entrevistas de trabalho e cerca de 1.500 conseguiram emprego com carteira assinada. "Fazemos a conexão entre empresas que nos procuram e refugiados cujos perfis se encaixam nas vagas oferecidas", explica Luciana, que comanda uma equipe de 20 pessoas, incluindo funcionários contratados e voluntários.

Desde 1985, o Brasil reconheceu cerca de 60 mil pessoas como refugiadas, a grande maioria vinda da Venezuela. Em seguida vem Síria, República Democrática do Congo e Angola. Só no ano passado 29.107 pessoas provenientes de 117 países solicitaram o reconhecimento da condição de refugiados. Destas, 3.086 foram reconhecidas como tal pelo Conare (Comitê Nacional para os Refugiados).

"São pessoas que chegam ao Brasil após uma longa jornada em que, na maior parte das vezes, deixam a família e o emprego para trás. Muitos têm diploma universitário. Há casos de engenheiros, médicos e professores", conta Luciana.

Diferentemente dos imigrantes, os refugiados não podem voltar a seus países pelo risco de serem mortos. São alvos de perseguições étnicas, políticas e religiosas ou fugiram de guerras. É o caso dos ucranianos que vieram para o Brasil para escapar dos bombardeios do exército russo, por exemplo.

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Estrangeiro ou refugiado? O Tinder responde

Em 2015, a Estou Refugiado propôs um experimento social: criaram duas contas no Tinder, aplicativo de relacionamentos. Em uma delas, um homem se apresentava como "estrangeiro com formação superior, atualmente radicado no Brasil, interessado em conhecer brasileiras". No outro, praticamente a mesma coisa, mas com uma pequena diferença. Em vez de "estrangeiro", ele se dizia ser "refugiado", o que mudou tudo. A ONG registrou as reações em vídeo. Veja a seguir:

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Máquina de currículos

Uma das ações de maior repercussão da Estou Refugiado teve início em 2017, com a criação de um totem interativo que foi instalado em uma livraria, rodou por unidades do Sesc e foi apresentado na 33ª edição da Bienal Internacional de Arte. Nele, são exibidos centenas de vídeos com depoimentos de refugiados em busca de emprego.

"Você acredita em destino?", pergunta uma mensagem acima do monitor de TV. Apertando um botão verde, a pessoa assiste à história de um refugiado ao mesmo tempo em que o currículo dele é impresso. "Agora o destino de vocês está unido: ajude fulano a arrumar trabalho", convida a máquina.

"As pessoas se emocionam ouvindo essas histórias. Elas levam os currículos dos refugiados e mostram para familiares, amigos ou colegas de trabalho. O número de pessoas que nos procuram cresce 25% quando estamos com o totem nas ruas", conta Luciana. "Além de empregos, tem gente que oferece doações de roupas, aulas de português ou simplesmente um abraço", acrescenta a ativista, que observa um forte engajamento nas redes sociais da ONG por conta da ação.

Após mais de dois anos suspenso por causa da pandemia, o totem está previsto para voltar à ativa no final deste mês no saguão de entrada de um prédio de escritórios na Avenida Paulista. Um refugiado afegão fará o papel de anfitrião, convidando os transeuntes a participarem da ação.

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Arte nas ruas

Outro projeto que ganhou as ruas é o Cores do Mundo, por meio do qual refugiados são contratados por empresas para pintar painéis com as temáticas de seus países. Um deles pode ser visto nos tapumes da obra de uma construtora na Avenida Rebouças, zona oeste paulistana. O local foi coberto por imagens coloridas de rostos de refugiados.

"O dono da construtora, Paulo Proushan, é meu amigo e faleceu recentemente. Ele era de uma família judia e dizia ser nossa obrigação ajudar os outros, já que nossos antepassados receberam ajuda no passado", conta a ativista.

A ideia de criar galerias a céu aberto surgiu durante a pandemia. O objetivo inicial foi ajudar o artista plástico congolês Lavi Kasongo, que passava por dificuldades financeiras por falta de trabalho. Luciana o contratou para fazer uma pintura no tapume da casa que estava reformando no bairro dos Jardins.

"Eu e meu marido, [o ambientalista e vice-presidente do Instituto Democracia e Sustentabilidade] João Paulo Capobianco, compramos as tintas e pagamos o cachê dele. Ficou tão bonito que nossa equipe decidiu criar o projeto e vender para empresas. Batemos na porta de uma fábrica de chocolates e fizemos nossa primeira venda: um muro de 30 metros com pinturas feitas por refugiados. Depois começaram a surgir encomendas em outros lugares, inclusive no interior de São Paulo".

Um desses painéis pode ser visto na Casacor, mostra de arquitetura e design de interiores que fica em cartaz até 11 de setembro no edifício do Conjunto Nacional, na capital paulista. Em breve também será possível observar um mural de 400 metros de extensão no bairro da Vila Leopoldina, onde um grupo de artistas estrangeiros e brasileiros irá retratar 35 nacionalidades de pessoas que vieram morar no país.

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Fugindo do Talibã

Um dos trabalhos mais significativos foi feito com seis jovens afegãos - quatro mulheres e dois homens - que chegaram ao Brasil em novembro do ano passado. Cinco deles são fotógrafos.

O grupo fugiu do Afeganistão após o Talibã retomar o poder com a saída das tropas americanas do país. Sob o regime do grupo fundamentalista, as mulheres foram proibidas de estudar e trabalhar.

Os seis afegãos enfrentam ainda um problema adicional: eles pertencem à minoria étnica hazara, chamada de "infiel" pelos extremistas do Talibã. Com traços orientais, os hazara são muçulmanos xiitas enquanto a maioria da população afegã é formada pela etnia pashtun, de muçulmanos sunitas.

Com o dinheiro arrecadado por uma campanha internacional que envolveu outros ativistas, Luciana alugou uma casa para os seis afegãos morarem no bairro da Bela Vista.

Já as roupas de cama, os móveis e utensílios domésticos foram obtidos por meio de doações de amigas e conhecidas que se sensibilizaram com a história. "O drama das meninas afegãs exerce um apelo muito grande principalmente entre as mulheres. Elas pensam: 'Poderia acontecer comigo ou com a minha filha'".

A dificuldade de adaptação é enorme. "Os venezuelanos têm a vantagem da proximidade da língua, da comida e da cultura, mas, para os afegãos, não há nada familiar. Para se comunicarem, muitas vezes têm que apelar para o tradutor do Google", conta Luciana. Com a ajuda dela, três deles conseguiram emprego numa loja de aluguel e venda de roupas na Vila Olímpia. Outras duas, Masuma Yavari e Mahboba Rezayi, foram contratadas para trabalhar na ONG Estou Refugiado

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Demanda por diversidade

As histórias de sucesso de refugiados que conseguiram emprego fizeram com que brasileiros também procurassem a ONG em busca de ajuda. Para dar conta da demanda, Luciana criou uma plataforma chamada Somamos, que tem como meta incluir idosos, pessoas com deficiência, egressos dos sistema prisional, LGBTQIA+ e a população negra no mercado de trabalho.

Segundo Luciana, por conta da onda de ESG (boas práticas nas áreas ambiental, social e de governança), muitas empresas buscam a plataforma com o objetivo de aumentar a diversidade em seus quadros de funcionários.

A diretora da ONG agora trabalha para oferecer cursos de capacitação artística para refugiados, criar um espaço para venda de NFTs (tokens não fungíveis, que são representações digitais de ativos) com obras de arte deles e publicar um livro contando suas histórias.

"Meu sonho é conseguir recursos para ampliar o número de moradias para refugiados, a exemplo do espaço que montamos com a ajuda de doações para o grupo de afegãos", afirma.

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Mais do que bens materiais, ganhei uma amiga para a vida toda. Ela [Luciana] nos dá amor e atenção, algo que sentimos falta estando longe das nossas famílias. Eu e minhas filhas passamos o Natal na casa dela. Quero dar um futuro melhor para as minhas filhas, mas nunca vou me esquecer do Brasil. Sou grata por toda ajuda que recebi aqui.

Mamie Pemba Bazonga, cinegrafista

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Amiga para vida toda

Nascida na República Democrática do Congo, a cinegrafista Mamie Pemba Bazonga, 47, teve que deixar o país quando seu então marido passou a ser perseguido após denunciar violações de direitos humanos por parte de autoridades locais. Os dois chegaram a São Paulo há oito anos com a filha deles, Priscila, hoje com 12 anos. A segunda filha, Estrela, de 6, nasceu no Brasil.

"Luciana nos ajudou com a doação de roupas, cobertores, cestas básicas e até computador. Depois conseguiu um emprego para mim na linha da produção de automóveis da General Motors", conta Mamie.

Após cinco anos trabalhando na GM e morando em São Caetano do Sul, na Grande São Paulo, Mamie comprou passagens aéreas para se mudar para Londres, onde mora uma amiga de infância.

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