Bolsonarismo e rejeição à política
O Estado, como a principal organização política de uma sociedade democrática como a nossa, está esvaziado nos seus governos, na sua estrutura, nas suas práticas, nos seus meios de funcionamentos. O mesmo vale para os partidos políticos, vale para os sindicatos. A própria instituição família está sendo muito questionada por essas mudanças que estão se dando. O que se torna mais grave no Brasil, do ponto de vista da negação da política, da rejeição, que responsabiliza e nivela todos os políticos. Mas a política é uma prática de todos.
Você também faz política até inconscientemente. Ao agir e ao influenciar o seu entorno você está fazendo política. A imensa maioria do povo brasileiro tem um baixo nível de formação política, de consciência política. Como os eleitores que deram a maioria dos votos para o Bolsonaro não compreenderam, com uma avaliação crítica, o que aquele homem era e o que era capaz de fazer? E tem pesquisas que apontam que ele ganharia em todos os cenários [em 2022]. É um horror. E isso o que é? É o baixo nível de consciência política.
As escolas não fazem educação política, as universidades também não fazem. As pessoas saem tecnicamente preparadas, cientificamente preparadas, mas humanamente, eticamente, filosoficamente despreparadas. Por conta disso é que varia tanto o humor da sociedade brasileira em relação à política e aos políticos. Em cada momento é uma reação que corresponde a uma indignação por motivos nem sempre justificáveis, mas também outros justificáveis.
É preciso indagar por que votei no fulano de tal e como, com meu voto, ele virou isso. Ninguém se pergunta isso. Portanto, é um baixo nível de consciência política, de consciência de ser um sujeito político, de que nós temos o governo que nós somos, num certo sentido.
São Paulo ontem e hoje
Os problemas estruturais continuam os mesmos. Há 30 anos, quando eu me elegi prefeita, o país vivia uma crise de desemprego profunda. De recessão profunda, com a inflação de 80%, desemprego em massa, os desempregados saindo para as ruas manifestar sua indignação e pressionando os governos por solução. Não era um período tranquilo. A cidade era um pouco menor, mas já era imensa. Eram 9,5 milhões de habitantes numa região metropolitana. Os municípios não têm fronteiras separando um dos outros.
As pessoas moram numa cidade, trabalham na outra, acessam os serviços na outra. Deveria haver um planejamento metropolitano na região. Para poder aliviar a demanda sobre as grandes cidades. As cidades do interior, em vez de adquirirem um hospital, ou instalarem o serviço para população da própria cidade, da própria região, compram ambulância para mandar as pessoas para São Paulo. Tem um impacto na área da saúde, na área da locomoção, ou da mobilidade, na área de saneamento básico, na área da saúde, sobretudo.
Há uma duplicidade, uma sobrecarga, para cidades como São Paulo. Naquele tempo já havia isso. Por ser um momento de crise também havia uma insatisfação muito grande da sociedade com os políticos, com a política, com os governos. Havia uma insatisfação generalizada. A eleição se deu dentro de um quadro com aspectos semelhantes como os de hoje.
Havia também muita gente na rua. No nosso governo a gente conseguiu manter uma política de acolhimento à população de rua, sem resolver o problema. Com crise, com desemprego, crise social profunda, de marginalidade social, haverá sempre a população de rua. Não na dimensão que está hoje. Hoje as famílias inteiras estão na rua, porque não podem mais pagar o aluguel, estão desempregadas. Tem pessoas que trabalham e dormem na rua com a família depois de um dia trabalhado. Há semelhanças de conjuntura daquele momento e o de hoje que explicam, num certo sentido, a rejeição da população pela política, não só pelos políticos. E [a população] tem toda razão de cobrar, de exigir, de estar indignada com o comportamento das pessoas da política. Mas não podem rejeitar, abrir mão, da política como tal. Porque sem a política não se resolvem os problemas da coletividade.
Sinto um clima de adesão das pessoas, de reencantamento, de voltar a acreditar na política, e em algumas pessoas que estão na política. Então há um momento, um aspecto, que havia naquele tempo e que talvez até explique a minha eleição naquele momento, uma pessoa de esquerda, uma pessoa completamente fora do padrão político tradicional. E percebo hoje também uma certa semelhança, uma busca das pessoas por alguém que sinalize com alguma esperança de que pode haver mudanças.
Essa cidade é muito poderosa. O seu orçamento é o terceiro maior do país. Dependendo de como você aplica esse recurso, ele pode ter um impacto positivo também nas classes populares. Naquele tempo não tinha nem coleta de lixo na periferia. Muito menos canalização de córrego sujo, que passava na porta do pobre, o filho dele brincando na lama e no esgoto a céu aberto. Hoje não é diferente. Tem pessoas que, para se proteger da pandemia, não tem água, não tem sabão, não tem sabonete. Não tem espaço para se isolar socialmente. Nós tivemos que conseguir espaço nas escolas, para que essas pessoas pudessem se proteger de alguma maneira.