"Eu sou Pataxó Hã-Hã-Hãe"

"Maior potência de mulher indígena jovem", Hamangaí Pataxó luta pela causa, mas refuta rótulo de ativista

Paula Rodrigues De Ecoa, em São Paulo Iago Aquino/Acervo Pessoal de Hamangaí

"Eu sempre fui muito aberta para falar da minha realidade dentro da aldeia, para conversar com meus colegas de escola e explicar que eu morava em casa normal, que tinha energia? Mas essa missão de falar sobre isso sempre foi muito centralizada em mim porque eu era a única indígena na escola. Às vezes, eu só queria ficar quietinha, mas aí do nada começava a falar sobre questão indígena, em 19 de abril [data em que se celebra o 'Dia do Índio'], por exemplo. Mas eu falava o que podia porque eu pensava que aquelas pessoas precisavam saber como a gente vivia porque eram meus colegas, eu compartilhava vários momentos da vida com eles.

Agora, muitas escolas me chamavam antes da pandemia para conversar com os alunos para que eu pudesse contar para eles um pouco da realidade dos povos indígenas, da nossa vivência em comunidade, dos desafios que é ser indígena e morar em uma cidade como Cruz das Almas (BA), para poder fazer faculdade.

Faço isso justamente para quebrar essa ideia de que nós só estamos lá no mato, não estamos na universidade, que indígena não veste roupa ou não fala português. É uma forma de tentar quebrar isso aos poucos porque é mesmo um processo demorado, é preciso muita paciência e sabedoria.

Sempre questiono o porquê não somos indígenas apenas no dia 19 de abril. Por que nós não temos motivos pra comemorar essa data. Falo do porquê não é legal fazer cocar de cartolina ou reproduzir esses estereótipos. Falo tudo com jeitinho, mas para que os professores tenham essa consciência também.

Nesse trabalho eu me sinto muito grata porque [as crianças] me enchem de amor, são elas que me fazem acreditar que a educação é uma ferramenta que pode transformar nossas vidas."

Acervo Pessoal

A memória falha e ela não se lembra da data certa do ocorrido. Mas estava em Brasília, em uma das tantas mobilizações indígenas que frequentava e continuaria a frequentar se não fosse a pandemia. Hamangaí Pataxó Hã-Hã-Hãe quis finalizar a entrevista que se transforma agora nesta reportagem sobre ela com uma história curta sobre esse dia em que, durante uma reunião no Ministério da Saúde, por pura empolgação de quem era jovem como ainda é hoje, aos 23 anos, destrambelhou a falar todas as demandas de seu povo.

Dentro do ônibus que levaria os indígenas de volta para a aldeia em Pau Brasil (BA), outro jovem se aproximou e explicou "de uma forma muito educada e sábia", como ela relembra, que outras pessoas já tinham se programado para falar. Mas foi o conselho que ele deu em seguida que ficou cravado na líder indígena. "Ele me disse: Hamangaí, você precisa aprender a falar com o coração," conta

Assim, com o coração na ponta da língua, nos últimos anos ela vem se transformado em uma das vozes da juventude que ecoam a luta histórica dos povos originários brasileiros, especialmente em relação à defesa do meio ambiente e contra as mudanças climáticas. Tem feito importantes denúncias sobre o assunto - tanto em solo brasileiro, quanto internacional, como em 2018, quando teve a oportunidade de ir pela primeira vez a uma COP (Conferência das Nações Unidas sobre Mudança Climática).

Mas, por curiosidade, como é que se fala com o coração mesmo?

"A gente aprende tanta coisa na vida que até o nosso jeito de falar muda. Quando a gente chega na Universidade, por exemplo, a gente aprende novos jeitos de se expressar. O que é muito bom também. Mas falar ou escrever com o coração, pra mim, não é só falar de um jeito bonito ou rebuscado. Para além de informar alguma coisa, a nossa fala e o nosso texto tem que carregar nossa memória e a de quem veio antes da gente, assim como os sonhos deles e os nossos também. É isso. Só queria deixar essa reflexão mesmo."

Acervo Pessoal/Hamangaí Pataxó Acervo Pessoal/Hamangaí Pataxó

Réquiem para dois rios

Hamangaí é filha de dois povos, sua ancestralidade desenha-se na mãe Terena e o pai Pataxó Hã-Hã-Hãe. Nasceu no município de Pau Brasil, no sul da Bahia, onde viveu até os 8 anos na aldeia Caramuru-Paraguaçu, quando mudou-se para outra aldeia, Água Vermelha. O motivo da troca de residência é o mesmo contra o qual ela luta hoje: a degradação das florestas brasileiras.

"Essa [Caramuru-Paraguassu] era uma comunidade marcada por muitos conflitos territoriais, como todas são, na verdade, mas por ser a aldeia mãe era mais intenso. Tiveram muitas mortes mesmo. E isso gerou também muito mal trato com a natureza", conta Hamangaí.

Ela ainda se lembra dos bonecos de barro que fazia na infância e da localização entre duas pedras onde a imaginação inventava uma casinha. A ligação com a mata — que ainda desperta saudades — nasceu com a avó. Sempre que a senhora precisava exercer o dom de benzedeira, pedia à neta para buscar no quintal as folhas necessárias.

"Ver minha avó trabalhando com as plantas, a crença dela, a espiritualidade, de acreditar no processo de cura com plantas. Aprendi vendo. Ela catava piolho, enquanto nos contava sobre a [história da] aldeia desde o começo até aquele momento. Hoje [ainda] tenho essa ligação muito forte com a natureza, com as plantas. Ela me foi uma grande inspiração, de a gente ter força mesmo, de acreditar na natureza, de ter fé, né? Carrego isso comigo em tudo que eu faço."

Além do acolhimento da casa da avó, a falta de água também marcou a infância na aldeia Caramuru. Hamangaí pouco se lembra do rio que ficava próximo à sua comunidade. A água, outrora tão abundante, diminuía conforme a menina ia crescendo, até chegar à necessidade da mãe precisar ir até a cidade pedir. Muitos cediam, outros negavam. Ouvir um "não" por um pedido de copo de água, algo que antes das invasões dos brancos era servido de graça pela natureza, ainda é o que lhe dói mais. "Por isso, a ida para a aldeia Água Vermelha ocorreu, em 2005, mas dez anos depois veio uma seca muito forte. O Rio Água Vermelha secou. Foi a primeira vez que me deixou mais pensativa e preocupada.", conta Hamangaí.

Não podia ser coincidência. Eram dois rios mortos, dois territórios sofrendo com as graduais consequências de uma mudança no clima. "Porque tinha um rio e depois não tinha mais. Porque o vento estava diferente. Porque a fartura que a gente tinha na Água Vermelha já não tinha mais", reflete. "Eu cheguei a ver um senhor da aldeia ir para a beira do rio rezar pedindo por chuva. Ouvi relatos das pessoas mais velhas da comunidade falando como era antes e como estava agora. Trazia muita memória afetiva com o rio. Isso me deixava muito triste. Ao mesmo tempo, comecei a ouvir muitos dos jovens falando sobre questões ambientais. Todas essas palavrinhas iam aparecendo e me deixando mais pensativa."

Acervo Pessoal

Bloco do eu sozinha

Tanto na Caramuru quanto na Água Vermelha, Hamangaí estudou em escolas indígenas. À época, por falta de estrutura e de investimentos governamentais, era preciso dividir uma sala com todos os outros alunos da escola, de idades diversas. A menina, aos 9 anos, não sabia ler. O que preocupou seus pais. A opção encontrada foi matriculá-la em uma escola da cidade. Apesar de Pau Brasil ser uma cidade pequena, muitos colegas de classe, e até mesmo professores, não faziam ideia de como era viver em uma aldeia.

"Eu era a única indigena da turma. E, aí, tinha um professor de história que, quando falava de povos indígenas, sempre direcionava a fala dele para o corpo da mulher indígena. Eu me sentia muito incomodada com essa situação, mas não sabia o que estava acontecendo e ficava calada. Era meu professor, o que é que eu vou fazer? Tudo que se tratava de assuntos relacionados às indígenas, ele voltava as falas pra mim, eu era obrigada a falar de tudo e não queria falar disso. Até sobre conflitos de terra, sabe?

Mesmo com território do povo Pataxó demarcado, muitas invasões de fazendeiros ocorreram, tomando o espaço para si. Desde os anos 1980, porém, os Pataxós vêm realizando as chamadas retomadas, a fim de reconquistar os territórios que eram deles. Muitos foram os conflitos e mortes de indígenas até então.

Em 2012, Hamangaí se lembra de ter ficado um mês ausente da escola. Falar que era indígena na cidade era sinônimo de coisa ruim, como ela relembra. Era perigoso ficar na aldeia, mas sair e lá também. Quando pôde voltar à escola, percebeu que algumas coisas tinham mudado ali: parte dos colegas de classe tinham algum familiar que era fazendeiro.

Quando Hamangaí foi aprovada no vestibular para medicina veterinária, mudou-se para o município de Cruz das Almas. Por causa da pandemia, ela não tem mais voltado para sua aldeia. Hoje a filha de dois povos lista suas saudades: a família, os amigos, o rio, as árvores. Por um momento, quando precisou de hospedagem na cidade nova, arrumou morada em um quilombo. "E isso, de uma certa forma, suavizou um pouco tudo, porque era muito parecido com minha realidade: todo mundo vivia de um jeito mais coletivo, tinha ar puro e, infelizmente, até mesmo os conflitos de territórios."

"Nem assim eles desistiram, então porque eu desistiria"

Eu gostava muito de estudar, estava lá pra aprender, queria concluir as séries e ir avançando. Com relatos de muitas pessoas da minha comunidade, vi que isso já tinha acontecido com eles na cidade antes. Então, foi um capítulo que se repetiu com a minha geração. Eu ouvi muita história desse preconceito. A retaliação no passado foi muito maior com os indígenas do que estava acontecendo comigo. Foi uma luta muito grande pra conseguir escola indigena, por exemplo, e hoje a gente tem médico, advogado, professora indígenas. Então, eu sabia que aquilo não era algo novo e o que as pessoas da minha comunidade passaram foi algo pior. Nem assim eles desistiram, então porque eu desistiria?

Hamangaí Pataxó, jovem líder indígena e estudante de medicina veterinária na Universidade Federal do Recôncavo da Bahia

Jovem, tímida e potente

A descoberta de que tinha passado no vestibular aconteceu em Brasília, em uma mobilização indígena. Curiosamente, Hamangaí começou a frequentar esses espaços por causa de um sonho. Em 2015, dormiu e viu uma grande tesoura de pontas afiadas em frente ao Planalto. No meio dela, muitos indígenas. Era como se a qualquer momento o objeto fosse se fechar e acabar com todos.

Ao invés de acordar desesperada por causa do pesadelo, como esperado, Hamangaí diz que, na verdade, acordou fortalecida para atuar mais intensamente no movimento indígena. Na mesma semana descobriu que haveria um acampamento de indígenas no Distrito Federal e que o povo da comunidade tinha conseguido um ônibus para ir. Então foi.

Chegando na capital federal viveu um choque de realidade profunda quando pela primeira vez teve contato com algumas invenções tecnológicas dos brancos: bala de borracha e bomba de efeito moral.

Assim, a veterinária e ativista atualmente divide o tempo entre os estudos universitários e a atuação no Engajamundo, organização de jovens que se articulam por todo o país para se aproximarem de decisões políticas globais e proporem soluções a partir da juventude local. O Engajamundo apareceu bem no momento em que Hamangaí se fazia um questionamento: se a articulação é coletiva, por que nessas idas à Brasília a prioridade da fala acabava sendo só dos homens?

'Foi lá também que ouvi as palavras 'ativismo' e 'mudanças climáticas' pela primeira vez", diz. Conheceu o pessoal de lá por meio de um outro jovem indígena de sua aldeia que já participava de algumas articulações. Em 2017, pôde participar de um encontro regional da organização em Recife pela primeira vez.

Acervo Pessoal

"Ela já tem um impacto na vida de muita gente"

"Ela era muito tímida, insegura, triste, mal falava e quando falava era muito baixinho. Tinha acabado de acontecer uma violência dentro da família dela e ela nos contou isso imediatamente, numa coragem muito grande de contar e falar o que estava procurando dentro do Engaja, que eram pessoas que entendessem de questões de gênero para ajudá-la. Ela era um serzinho que não dava nem para escutar a voz e com o tempo se abriu e passou a assumir tudo que ela assumiu tanto dentro quanto fora do Engaja para mudar a realidade das mulheres da aldeia dela, para que possam ocupar os espaços que muitas já estão ocupando agora.

Ela é muito significativa na minha história, na história do Engajamundo e principalmente na dos povos indígenas. Mas dentro da organização, ela não poderia ser mais importante, eu diria, não só pela representatividade que ela traz, mas pelo trabalho que ela faz, como ela puxa as coisas dentro do grupo de trabalho de gênero, de assumir as responsabilidades e dar ideias. Eu poderia falar de todas as campanhas que ela está fazendo, de como ela tem ajudado a trazer a questão do Marco Temporal, da mineração em terras indígenas ou da questão da violência contra mulher dentro das aldeias? Ela já tem um impacto na vida de muita gente justamente por ela estar no lugar que ela está sendo quem ela é.", Raquel Rosenberg, co-fundadora do Engajamundo.

Luta ancestral

Hoje, Raquel Rosenberg, co-fundadora do Engajamundo, vê em Hamangaí — ou Manga, como a chama carinhosamente — "a maior potência de mulher indígena jovem" que já conheceu. Inclusive, foi ela quem provocou e estimulou a organização a querer trazer mais jovens indígenas, quilombolas e ribeirinhos para as articulações. Tanto que, em 2018, Raquel saiu da coordenação do Engaja para se dedicar a um projeto específico na Amazônia para aumentar o número de jovens ativistas de povos tradicionais.

Mas até hoje Hamangaí diz ter dificuldade de usar o termo "ativista" para se descrever. Ela explica que dificilmente vai usar essa palavra para falar de si porque mesmo antes de entender o que era ativismo, já o colocava em ação dentro da aldeia. "Eu ainda estou pensando o que essa palavra representa pra mim tendo em vista que eu já tinha essa construção muito antes, e não é algo só meu, é uma luta coletiva iniciada muitos anos atrás," completa.

Ela se vê mais como uma ponte entre o que ocorre fora e dentro da aldeia. Equilibra em uma ponta o que aprende na cidade, na universidade, no ativismo com os saberes e a luta dos povos originários na outra. Assim, com o tempo, foi entendendo que aprendizados de um espaço poderiam contribuir para as articulações no outro. Especialmente quando o assunto é juventude.

"Eu não sou só a Hamangaí, eu sou Pataxó Hã-Hã-Hãe. É preciso me afirmar enquanto povo, quanto coletivo, isso já me faz entender como eu me posiciono, como eu dialogo com o reitor da minha universidade e com as lideranças da minha comunidade. Como eu levo o que eu estou passando aqui para pessoas da minha aldeia entenderem e como eu trago a demanda da minha aldeia para a universidade? Essa luta se iniciou há muitos anos e cada vez mais eu penso que ou a juventude se posiciona, se articula, se envolve com a luta dos mais velhos para resolver esses problemas, ou as coisas só vão piorar para os povos indígenas do Brasil."

Inspiração dos maiores

E, ali, eu vi que era bem isso que eu tinha que fazer mesmo: eu tinha que honrar essa luta. Eu tenho que honrar o sangue dos meus ancestrais e continuar essa luta junto com a juventude. Essa é minha missão. Aquilo foi um chacoalhão. Tinha muitos jovens, muitas lideranças mais velhas, cacique Raoni estava lá, Sonia Guajajara e vários outros? Ouvir eles falando me fez entender que ou a gente luta ou o nosso povo vai continuar morrendo.

Hamangaí Pataxó, jovem líder indígena e estudante de medicina veterinária na Universidade Federal do Recôncavo da Bahia

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