Homem de fé

Marcelo D2: 'Quem não aproveitou o momento catastrófico para revisar a vida perdeu uma oportunidade única'

Tereza Novaes (texto) e Matias Maxx (fotos) colaboração para Ecoa, do Rio de Janeiro (RJ) Matias Maxx/UOL

"Que tipo de ativista eu sou se nunca fui na Marcha da Maconha?", provoca Marcelo D2, entre risos, ao ser perguntado sobre sua atuação em prol da causa canábica. Não se definir assim é mero detalhe, já que letras, atitudes e posicionamentos falam por si.

O músico escreveu, entre outras músicas, "Legalize Já", hino pela legalização da erva no país, e se tornou uma das vozes mais contundentes contra retrocessos durante o governo do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), indispondo-se frequentemente com representantes da extrema direita, sobretudo no Twitter.

"Quem não aproveitou esse momento catastrófico para a vida e para o Brasil — que além de uma pandemia, teve um presidente fascista — para pensar em mudança ou para dar uma revisada na vida perdeu uma oportunidade única", diz.

D2 recebeu a reportagem de Ecoa na sala de seu apartamento no Leblon, zona sul do Rio de Janeiro, em uma manhã quente de verão. A entrevista foi quase toda acompanhada por Bebel, a filha caçula de 1 ano e meio, que, curiosa com o movimento, ia e vinha a todo momento.

Na conversa, ele compartilha o que pensa do futuro da maconha, fala sobre o novo disco com o Planet Hemp e de "P O V O . D E . F É", faixa de seu novo álbum solo "Iboru", cuja letra é uma parceria com o professor de história, escritor e sambista Luiz Antônio Simas.

Matias Maxx/UOL
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Ecoa: O Luiz Simas é um influenciador de verdade, não só por ter muitos seguidores no Instagram, mas porque é um cara conectado na vida do subúrbio, professor de ensino médio e conhecedor profundo da cultura brasileira. Como rolou essa parceria?

Marcelo D2: Ele é um cara muito interessado em tudo. O olhar que ele tem sobre esse Brasil que eu amo, das religiões africanas, do povo da rua, do bar, do samba... Ele realmente é um influencer, tá ligado? Porque ele é um cara que tem muita coisa para dizer, e é muito foda conversar com ele porque ele acha que você sabe o mesmo que ele. Tenho que ficar muito atento ao que ele diz porque, às vezes, não sei porra nenhuma do que ele está dizendo [risos].

Ele tem muito a contribuir com a nossa cultura. O Simas é um cara que gosta de fazer muitas coisas, de dar aulas, compor, tocar cavaquinho e escrever. E eu me identifico muito com isso, sabe? Porque por muito tempo eu fui vocalista e, nos últimos anos, percebi que dá para fazer mais coisas: dirigir, ser empresário, além de só compositor e cantor. Cada vez mais o celular e a internet te dão essas possibilidades, abrem mais esse leque.

Gravação do clipe do novo single de Marcelo D2, 'P O V O . D E . F É' - Yasmin Nascimento - Yasmin Nascimento
Gravação do clipe do novo single de Marcelo D2, 'P O V O . D E . F É'
Imagem: Yasmin Nascimento

Isso tem a ver também com a tua presença nas redes sociais? Você sempre se posiciona e já travou discussões que viralizaram a ponto do ex-presidente Jair Bolsonaro te citar no Twitter.

Eu gosto de discussão, de brigar, e o Twitter é o lugar perfeito para isso. Você dá sua opinião, o outro vai lá e rebate. E o Twitter só alimenta essa minha vontade de brigar, tá ligado? Eu gosto de brigar, mas o que é um pouco decepcionante é que eu falo o que acredito, mas o outro lado é cínico para caramba.

O cara não fala: "Sou racista, não gosto de mulher, não gosto de pobre". Esses caras se escondem atrás de um manto da religião, de Deus, da Pátria e tal. Isso é injusto pra caralho. Eles não são honestos, né? Em todos os sentidos, mas nesse tipo de discussão me deixa um pouco frustrado.

Quando você vê um cara fazendo o símbolo de white power [da extrema-direita] e diz: 'Pô, olha o que esse cara fez'. E ele responde: 'Não, não tem nada a ver'. Eles são covardes, um tipo de covarde óbvio, fácil de entender.

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Nos últimos quatro anos você lançou dois discos solo e agora um terceiro, além do novo do Planet Hemp, depois de um hiato de duas décadas. Você acha que tempos difíceis são mais profícuos para os artistas?

Quem não aproveitou esse momento catastrófico para a vida e para o Brasil — que além de uma pandemia, teve um presidente fascista — para pensar em mudança ou para dar uma revisada na vida perdeu uma oportunidade única.

Eu cresci em um lugar muito doloroso, e fui fazer música por causa disso. Até meus 20 e poucos anos, eu me sentia um cara invisível.

Quando eu encontrei o rap eu falei: "Caralho, mano! Esse cara falando da área dele, então, porra, eu posso falar do meu parceiro Peixe, do Andaraí, de Madureira, de Padre Miguel e da Lapa".

Tem uma porrada de coisa que é muito ancestral. É uma sabedoria que você tem, mas não sabe que tem. Esse momento que a gente passou foi revelador para mim, porque, se fosse há 20, 30 anos, eu sairia espalhando: "Vai tomar no cu, filha da puta!" para tudo quanto é lugar, como eu faço no Twitter.

Então, foi muito revelador me olhar no lugar de amadurecido. Fiz três discos que são quase a minha visão de entendimento do samba. Eu via o rap, o punk e o rock muito mais como resistência e luta do que o samba. Até o momento que eu comecei a compreender que o samba é resistência pra caramba. Esses três discos, para mim, são tão fortes quanto 'Usuário' [álbum de estreia do Planet Hemp, de 1995].

O 'Assim Tocam Meus Tambores' é um disco feito no meio da pandemia que fala de busca de identidade, quando a gente estava sendo massacrado por um apagamento total, por um governo que botou um anticiência para cuidar de ciência, um anti-educação na educação, um antinegritude na Fundação Palmares... O conceito do 'Jardineiros', do Planet Hemp, com exceção de duas músicas, é sobre plantar, semear e cuidar para poder colher.

E nesse disco novo ['Iboru'], que é de samba, tem uma música que eu escrevi a partir de um comentário de uma atriz, que falava que não precisava ter opinião política, depois de votar no Bolsonaro e alimentar todo esse discurso fascista. [Ele recita] 'A alma me alertou que é tempo de opinião, triste poesia que não está sozinha'. Isso é o tipo de coisa que eu aprendi com o samba, que faz parte desse amadurecimento.

Marcelo D2, artista

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Nessa "revisão na vida" que você falou, há espaço também para questões como feminismo e os direitos dos LGBTQIA+? Você tem filhos jovens, como essas demandas surgem hoje na sua família?

Sou um homem negro com privilégio de homem branco, tá ligado? Sei dessa minha posição porque é meu status na sociedade. As pessoas me veem como branco. Só quando convém, quando querem me botar em um lugar mais baixo, o racismo vem.

Mas eu sou suburbano, fui criado com muito machismo, muita xenofobia. Pô, eu tenho alguns amigos que me chamam de paraíba, porque eu chamava todo mundo de paraíba. E hoje em dia dá a maior vergonha disso. Cresci nesse universo, na rua. Aquela coisa chamar os outros de viado. É difícil desconstruir isso. E me cobram pra caralho. Cada merda que eu falo, as minhas filhas falam: 'Qual o problema, pai?' Aí peço desculpa. Pelo menos eu tenho a sensibilidade de olhar isso e entender essas mudanças e como elas são necessárias.

Hoje eu vi uma velhinha bolsonarista falando e pensei: 'Mano, que medo de ficar assim, velho burro, tá ligado?' Ficar velho sem entender o que está acontecendo com o mundo, continuar chamando os outros de viado, de paraíba.

A gente não nasce com consciência, temos que expandir isso, e pelo resto da vida. Quem está hoje nessas lutas sociais talvez não tenha consciência de como as coisas mudaram.

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E você se considera um ativista?

Não me acho ativista, não. Sou músico, a minha posição é enquanto artista. Que tipo de ativista eu sou se nunca fui na Marcha da Maconha? [risos] Não me considero ativista, mas, ao mesmo tempo, eu luto pela causa [da legalização da maconha] há 30 anos, quando ninguém ainda falava sobre isso. Sou amante da causa, um usuário que quer mudar as coisas, mas tem muita gente que é ativista, que é ponta firme, está dentro do movimento e vive isso no dia a dia.

Qual você acha que será o futuro da cannabis de uso recreativo e o medicinal?

Podemos pensar que a cannabis é uma planta tão forte, mas tão forte, que vai criar uma revolução gigantesca, capaz de acabar com o plástico e mudar a indústria farmacêutica. Estamos acostumados a falar só nesse âmbito do entretenimento, do uso pessoal. Essa percepção de colocá-la como droga nos faz esquecer o quão forte ela é para a indústria, para fazer tecido, por exemplo, e para a medicina.

No mercado nos Estados Unidos, quase todos meus amigos que participaram da legalização na Califórnia já foram engolidos pelo grande mercado. Agora é tentar segurar esse uso pessoal, ter controle sobre ele porque daqui a pouco ninguém mais vai poder plantar em casa. Você vai ter que consumir o que uma grande empresa vai produzir para você. Mas a cannabis é tão forte que ela vai causar uma revolução muito grande.

Quando era mais novo, eu era contra esse conceito de uso medicinal. Mas nesse mundo hipócrita que a gente vive, em que não há honestidade em quase nenhuma conversa, acho que o uso medicinal é um caminho para se calar esse discurso que a maconha faz mal. Não faz, muito pelo contrário, maconha faz bem.

Quando eu estive com o [ex-presidente do Uruguai] Pepe Mujica, perguntei para ele: 'Como você conseguiu convencer um país inteiro a legalizar?' Ele disse que as leis não são importantes. O importante é o povo, o quanto as pessoas acreditam naquilo. Depois, você muda a lei. Acho que o caminho do Brasil é esse, e eu acho que já mudou. A própria maneira de a polícia abordar usuário de maconha hoje em dia é diferente. Alguém me 'xingando' de maconheiro... Tu acha mesmo que tá me xingando?

Marcelo D2, artista

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