Histórias necessárias

Premiado quadrinista, Marcelo D'Salete coloca no centro narrativas de pessoas comuns que lutam para sobreviver

Lia Hama Colaboração para Ecoa, de São Paulo Rafael Roncato/Divulgação

Aos 41 anos, Marcelo D'Salete exibe um respeitável currículo de autor de histórias em quadrinhos. Seus dois últimos livros "Angola Janga" (Veneta, 2017) e "Cumbe" (Veneta, 2014) venderam, juntos, mais de 200 mil cópias no Brasil, foram adotadas por escolas públicas e privadas, ganharam prêmio e edições em vários países.

Filho de um eletricista e de uma auxiliar de enfermagem, Marcelo foi criado nos bairros de São Mateus e Artur Alvim, na zona leste de São Paulo. Por meio da literatura e do rap na adolescência, tomou consciência sobre questões como a luta contra a discriminação racial e os movimentos de resistência negra.

Formado em artes plásticas, mestre em história da arte pela USP, ilustrador e professor, Marcelo aponta a necessidade de se contar histórias de pessoas reais, mais do que de super-heróis. "A história da diáspora africana passa pela trajetória de pessoas que foram traficadas, passaram por situações extremamente difíceis, mas que conseguiram estabelecer estratégias de negociação e sobrevivência. São as histórias dessas pessoas e de seus descendentes que precisam ser contadas", diz o quadrinista.

O autor falou a Ecoa sobre influência dos mangás, processo de pesquisa e criação sobre o Quilombo de Palmares e a herança fundamental dos povos bantos à cultura brasileira.

Ecoa - Quanto se avançou à maior presença e visibilidade negra no universo dos quadrinhos no Brasil?

Marcelo D'Salete - Comecei a publicar histórias em revistas de quadrinhos em 2002, 2003. Comparado com aquele período, temos muito mais autores negros publicando hoje. Naquele momento eu conhecia pouquíssimos. Lembro do Maurício Pestana com álbuns falando de história negra no Brasil e alguns autores não negros abordando o tema. Hoje em dia, além de mim, temos vários outros autores, negros e não negros, tratando desse universo de um modo complexo e interessante, como João Pinheiro, Sirlene Barbosa, Rafael Calça, Jefferson Costa e João Sánchez.

O que impulsionou esse movimento?

É um fenômeno que precisa ser entendido dentro de um contexto. O que a gente vê nos quadrinhos tem a ver com o debate que acontece em outras artes. "Pantera Negra" (2018) é muito lembrado porque foi um sucesso comercial estrondoso, mas antes dele houve outros filmes interessantes, que provocaram debate e tiveram boa acolhida, como o "Corra!" (2017), do Jordan Peele.

No universo da literatura no Brasil, houve uma mudança de paradigma importante nos últimos anos. Não dá para ignorar que obras de autores não brancos estão entre os livros mais comentados do ano, são temas de festivais, têm grande circulação e muitos leitores. A gente pode falar da Conceição Evaristo, da Djamila Ribeiro, do Ailton Krenak, do Lázaro Ramos, do Geovani Martins e do Itamar Vieira Junior, entre outros. Tudo isso colaborou para um amadurecimento também no universo dos quadrinhos.

Rafael Roncato/Divulgação Rafael Roncato/Divulgação

Quais são as histórias que precisam ser contadas?

De pessoas comuns que passaram por situações extremamente difíceis de vida, mas que conseguiram estabelecer estratégias de negociação e de sobrevivência. Gente como a [escritora] Carolina de Jesus, o [abolicionista] Luiz Gama, a [líder quilombola] Tereza de Benguela, a [atriz] Ruth de Souza, o [dramaturgo] Abdias do Nascimento e diversos outros personagens que não têm nada a ver com reis ou super-heróis. São pessoas que precisamos conhecer para compreender esse Brasil profundo, que têm muito a ensinar tanto a jovens como a adultos no país hoje.

A gente foge desse caminho, que é um pouco preocupante, de pensar em rei e rainha e virar similar a uma narrativa europeia. Mesmo os reis e rainhas europeus não são pessoas que deveríamos ter como exemplos, gente que mandava cortar cabeças e que não eram democráticas.

A liderança mais conhecida no Quilombo de Palmares é Zumbi, mas há outros personagens importantes. Quais você destacaria?

Ele foi um líder importante, mas a história de Palmares é maior do que apenas a figura dele. Tivemos outras pessoas relevantes, como Ganga Zona e Ganga Zumba, que eram antigas lideranças. Uma pessoa que era chamada de rainha, a gente não sabe ao certo o nome, talvez Aqualtune, foi uma mulher importante em Palmares. Estamos falando de cinco gerações que viveram na Serra da Barriga, que não conheceram o que é a escravidão nas vilas coloniais porque passaram suas vidas nos mocambos.

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É difícil achar iconografia sobre personagens negros na história. Como você fez para dar cara aos personagens de Palmares?

No meu caso, entra o universo mais poético da ficção. A gente tem relatos sobre Palmares que são de fontes militares, mas não temos quase nada de imagens sobre os quilombos. Temos uma única imagem que é um pequeno desenho falando dos mocambos da Serra da Barriga, que aparece no canto de um mapa feito pelos holandeses por volta de 1640.

Eu precisava de imagens pensando nesses povos tradicionais de origem banto da região de Angola, de onde vieram grande parte dos escravizados para o Brasil. Para isso, fui atrás de fotografias, principalmente de antropólogos que estudaram esses grupos no início do século 20. Como eram grupos cuja forma de vida não tinha sido muito afetada pela civilização, acabei usando-os como referência para esses personagens. Foi importante também ver os símbolos gráficos que fazem parte dessas culturas. Tudo isso eu acabei utilizando para retratar o universo deles.

Você mistura ficção e realidade na HQ. Só os documentos históricos não davam conta de uma obra como essa?

Tive que criar a partir desses documentos, que são vários fragmentos sobre Palmares. Alguns fatos são muito importantes e precisavam estar no livro. Em Palmares, havia cerca de 20 mil pessoas que estavam organizadas em diversos quilombos. Existia um grupo de sábios que decidiam as principais questões da comunidade. Em 1678, Palmares sofre uma derrota e Ganga Zumba faz um acordo com o rei de Portugal. Existe registro desse acordo, então precisava pôr na trama. Depois Ganga Zona fez outro acordo. Não existe nenhum documento que diz que Zumbi concordou, provavelmente ele era refratário ao acordo. Há uma série de fatos, de pontos pacíficos, e tentei colocar qual seria a posição de cada personagem.

Quais são as principais heranças bantos na cultura brasileira?

Quando a gente fala em "cultura banto" é bom colocar entre aspas, porque há uma série de culturas razoavelmente bem diferentes na região central e no centro sul da África. São vários povos diferentes falantes do quimbundo, do quicongo e diversas outras línguas. Esse conceito banto é uma grande abstração. A gente utiliza porque é mais fácil de compreender e, dentro desse grande universo, existem características semelhantes. É como pensar na América de língua espanhola, cada grupo com um tipo de espanhol.

Estamos falando de 60%, 70% das pessoas escravizadas da África que foram trazidas para cá. Isso tem uma presença fortíssima na nossa linguagem. Palavras como moleque, quindim, marimbondo e diversas outras são de origem banto. Essa herança é muito forte no canto, na religiosidade, em diversas celebrações como a congada, a umbigada, a capoeira, o jongo, o samba.

Que pensadores do movimento negro influenciaram sua obra nos quadrinhos?

O interesse para fazer o livro de Palmares surgiu a partir de um curso promovido por um intelectual muito bom, o Petrônio Domingues. Também teve outro escritor importante para mim, o Luís Fulano de Tal, autor de "A Noite dos Cristais". Ele tem uma forma extremamente ágil de falar sobre a Revolta dos Malês [levante de escravizados em Salvador em 1835]. Li "Rebeliões da Senzala" e "Sociologia do Negro Brasileiro", de Clóvis Moura, e também o trabalho do Flávio Gomes, grande pesquisador sobre quilombos. Na área de ficção, li a escritora Toni Morrison.

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Seu trabalho tem uma linguagem bem cinematográfica. Qual a influência do cinema no seu processo criativo?

No início da faculdade, comecei a estudar mais a fundo sobre como fazer uma história e fui atrás de roteiros antigos, de filmes do neorrealismo italiano. Muito dessa forma de pensar a composição da imagem e do ritmo veio dessa influência e também de outros quadrinistas que têm forte relação com o cinema.

Quais quadrinistas mais te influenciaram?

Para quem vê de fora, talvez seja difícil de enxergar. Mas me influenciaram bastante "Akira", do Katsuhiro Otomo; "Preto e Branco", do Taoyo Matsumoto; "Homunculus" e "Ichii - The Killer", do Hideo Yamamoto. Cresci lendo mangás. Gostava de quadrinhos que trabalhavam bem contando a história com muitas imagens e poucas palavras. É fácil os quadrinhos deixarem a imagem em segundo plano e eu queria que a minha história fosse contada, em grande parte, a partir da imagem. Tem um potencial instigante para o leitor.

Como os quadrinhos podem ajudar a combater a intolerância?

A arte, de maneira geral, tem papel fundamental de questionar a estrutura social que vivemos hoje. Se a gente não cria questionamentos fica difícil conseguir superar os problemas e imaginar algo diferente disso. O quadrinho é uma linguagem dinâmica, acessível, que atinge em grande parte os mais jovens. Não é à toa que, nos últimos anos, tem sido alvo de ações de grupos conservadores, como a reação ao beijo gay.

A arte caminha lado a lado com a liberdade. Qualquer governo mais autoritário vai ter problemas com essa liberdade - e é isso o que nós vemos hoje.

Marcelo D'Salete

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