Medicina Psicodélica

Há 30 anos, médico francês Jacques Mabit trata dependentes químicos com ayahuasca na Amazônia

Carlos Minuano De Tarapoto, Peru* Ramiro Solsol/UOL

Cheguei ao Peru na década de 1980 para liderar o Hospital de Lampa em Puno, no sul do país, como chefe de missão dos Médicos Sem Fronteiras. Lá, descobri as medicinas tradicionais andinas, que me chamaram a atenção. Como médico, constatei a eficácia dessas terapias. Mas era algo que não tinha explicação racional dentro do paradigma ocidental.

Fui para Tarapoto [na Amazônia peruana] em 1986, com a ideia de investigar essas práticas. Era uma cidade pequena, um povoado rural, dominada pelo narcotráfico, terrorismo, porém com intensa circulação da medicina tradicional.

Rapidamente tomei contato com curandeiros e todos disseram a mesma coisa: 'Se você não experimentar a medicina, não entenderá. São as plantas que te falam'. Fiquei confuso, nunca tinha conversado com plantas.

Em minha primeira experiência com ayahuasca [beberagem psicodélica], três meses após chegar a Tarapoto, com um curandeiro, em Iquitos, não senti nada, só uma mudança suave de percepção.

As pessoas ao meu lado vomitavam, choravam, eu tinha medo, nunca havia usado nenhuma substância do tipo, queria ficar no controle, sem entrar na experiência, e foi o que aconteceu. Depois todos estavam rindo, felizes, conversando, me senti um pouco idiota.

Voltei para outra sessão, e desta vez não tive nem tempo de frear, foi muito forte. Foi uma experiência intensa de morte, mas em uma noite entendi muito mais do que tudo o que havia estudado antes. E abriu-se um caminho que me mostrou o que eu precisava fazer, e que estou vivendo até agora.

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Cura na Selva

Após beber ayahuasca, guiado por visões estranhas e coincidências esquisitas (que contaremos mais à frente), o médico francês Jacques Mabit foi tragado pelo universo que buscava conhecer. Se tornou curandeiro e decidiu criar na selva amazônica peruana um centro para tratamento de dependentes químicos e de pesquisa e proteção da medicina tradicional local.

Para conhecer melhor a história desse personagem, a reportagem de Ecoa viajou até Tarapoto, pequena cidade localizada no estado de San Martín, no Peru, na fronteira entre os Andes e a Floresta Amazônica, onde há exatos 30 anos funciona o centro terapêutico Takiwasi (palavra quéchua que traduzida para o português significa Casa que Canta).

Vale destacar que o curandeirismo amazônico, em especial a medicina tradicional peruana, se trata de um sistema de conhecimento muito antigo e complexo, que trabalha com uma enorme variedade de plantas. A principal delas é a ayahuasca. E essas práticas no Peru são reconhecidas como patrimônio cultural.

A ayahuasca é uma bebida preparada com folhas de um arbusto chamado chacrona (Psychotria viridis) e um cipó conhecido como mariri (Banisteriopsis caapi), duas plantas amazônicas psicoativas. É usada há milhares de anos por dezenas de povos indígenas na Amazônia e há décadas por cultos religiosos brasileiros, como Santo Daime e União do Vegetal, que se espalharam pelo mundo todo.

No Brasil, o uso da ayahuasca por povos indígenas e grupos religiosos está protegido por uma regulamentação de 2010. Mas, pesquisas com a bebida amazônica avançam com resultados promissores na direção também de um possível uso terapêutico.

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Ponte entre dois mundos

Simpático e bem-humorado, Mabit recebeu a reportagem de Ecoa em sua curiosa sala no Takiwasi. Símbolos por todos os cantos mostram uma fusão entre culturas e mundos. Em quadros, imagens de Jesus, São Jorge, Virgem Maria e outros santos. Atrás dele, uma estátua indígena. Na porta, uma espada. Ao lado do computador, mapachos (cigarros medicinais) e garrafas de água florida, ferramentas usadas pelos curandeiros nas cerimônias com ayahuasca. Acomodada próximo a uma pilha de documentos, outra garrafa com alguma mistura de plantas.

O médico francês conta que sua intenção é justamente essa: consolidar uma ponte entre dois mundos, o da medicina tradicional amazônica e a ciência ocidental. Mas reconhece que, no início, o mergulho no universo misterioso e fantástico dos curandeiros peruanos foi motivado também pela triste realidade do atendimento de saúde que encontrou ao chegar ao país na década de 1980, então com 25 anos. Hoje Mabit tem 67.

"Estava decepcionado com a medicina ocidental que praticavam nos hospitais, havia muita ineficiência nos tratamentos por exemplo de doenças mentais e degenerativas."

Mabit conta que a população mais humilde, sem acesso aos serviços de saúde, recorria a soluções mais baratas e locais, ou seja, os curandeiros. Mas, ele relata ter constatado que essas práticas, clinicamente, realmente funcionavam.

Por isso, seu plano inicial era conhecer melhor esses recursos e avaliar o que poderia ser incorporado aos serviços de saúde básica. Fez isso como investigador associado do IFEA (Instituto Francês de Estudos Andinos). Nesse período, percebeu que não eram apenas indígenas que buscavam as terapias, havia um fluxo de pessoas de Lima e de estrangeiros que viajavam para Tarapoto em busca da ayahuasca. "O Peru é o berço da medicina psicodélica", observa Mabit.

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Matéria-prima para Ayahuasca pronta para cozimento

Visões da Ayahuasca

"Estava convencido de que ia morrer", descreve o médico sobre a primeira experiência em que sentiu os efeitos da ayahuasca. Mabit conta que em suas visões brigou durante toda a sessão com uma cobra gigantesca que o envolvia e o levava para abismos profundos dentro dele mesmo. Só após aceitar o final derradeiro e imediato, a serpente se foi.

"Nessa vivência de morte, eu aprendi sobre a importância exagerada que as pessoas se dão a si mesmo e sobre o potencial dessa medicina", relata o médico. Em outra sessão de ayahuasca, teve uma visão em que doze pessoas, como em um tribunal, o questionavam porque estava bebendo ayahuasca. "Me disseram que eram os espíritos guardiões da floresta."

E, também, lhe deram uma missão: tratar dependentes químicos. "Foi uma surpresa total, pois é algo que nunca me interessou, são pacientes difíceis, recaem, há muita frustração, fiz de conta que não vi nada durante três anos", relembra Mabit.

Mas, seguiu bebendo ayahuasca, fazendo dietas, acumulando conhecimento, até que novamente teve uma visão, desta vez de uma mulher. "Ela me falou que se eu quisesse continuar ali aprendendo teria que fazer o trabalho com os dependentes químicos". Ele relata que tentou negociar, dizendo que não tinha a menor ideia de como fazer isso. Mas, segundo o médico, a tal entidade insistiu: "Nascer se aprende nascendo, está na hora de nascer."

Por coincidência, no dia seguinte, um amigo psiquiatra de Lima que sabia que Mabit estava pesquisando ayahuasca pediu para que ajudasse um paciente dele, um dependente químico resistente aos tratamentos. "Foi meu primeiro paciente, atendi ele em minha própria casa."

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Ayahuasca e Psicoterapia

Se os espíritos da floresta realmente falaram com o médico Jacques Mabit nunca saberemos. Mas a inspiração que ele teve bebendo ayahuasca impactou a vida de mais de mil pessoas que já passaram pelo centro Takiwasi.

Para além das histórias fantásticas, o fato é que o tratamento oferecido, que combina a medicina ocidental com o conhecimento indígena da floresta trouxe uma oportunidade real de mudança de vida para muitas pessoas e se tornou uma referência internacional.
O método aplicado no centro possui três eixos principais: convivência e trabalhos em grupo, sessões de ayahuasca e dietas com outras plantas, e psicoterapia.

As plantas, segundo Mabit, fazem emergir os problemas e dão indicações de tratamentos. "O próprio paciente também vê o que precisa fazer". De acordo com o médico, as plantas permitem um mergulho nas raízes do problema. "Geralmente encontramos questões emocionais, familiares e espirituais."

Depois, esse material que surge nos trabalhos é levado para a psicoterapia, para integrar por exemplo o que se passa nas sessões com ayahuasca. Na opinião do médico, se a integração com a psicoterapia não é feita, a pessoa pode interpretar de maneira equivocada a experiência, comprometendo a eficácia do trabalho.

Claro que nem todos que passaram pelo tratamento conseguiram um bom resultado. Cerca de 32 % abandonaram o tratamento prematuramente, segundo um estudo publicado no Journal of Psychoactive Drugs em 2019. Mas, o mesmo artigo ressalta o alto índice de recuperação do centro, e destaca um aumento significativo na qualidade de vida geral dos pacientes.

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Proibição na França

Apesar de Tarapoto enfrentar muitos problemas com drogas, os moradores da pequena cidade passam longe do Takiwasi. "São os últimos a quererem beber ayahuasca, eles têm muito medo". Metade do fluxo de pessoas que chega ao centro são de outras regiões do Peru, segundo o médico.

Outros 20% vêm da América Latina e 15% de outros continentes como Europa e África. "Como sou francês, obviamente vem muita gente da França". Por ironia, no país o consumo da ayahuasca atualmente é proibido.

"Fui muito atacado na França. Até o ano 2000 fazia sessões de ayahuasca por lá, mas parei porque vi que teria problemas". O médico chegou a ser alvo de um processo judicial por supostamente dar drogas para pessoas com dependência. Mas, a investigação que durou três anos não encontrou nada.

"O objetivo era proibir a ayahuasca na França", avalia Mabit. E foi o que aconteceu. O avanço das pesquisas com psicodélicos em vários países, inclusive com ayahuasca, não foi capaz de mudar o cenário. "Pode ser que mude em algum momento, mas ainda há muita resistência entre autoridades e mesmo na comunidade médica."

Por outro lado, Mabit e os projetos desenvolvidos no Takiwasi já receberam diversos prêmios nacionais e internacionais, entre eles o reconhecimento do Ministério da Saúde do Peru pelo trabalho para a saúde mental da população.

"Mais íntimo de mim"

O trabalho no Takiwasi não se restringe apenas aos dependentes químicos. Desde 1995, também podem participar de trabalhos no centro pessoas interessadas em conhecer a medicina tradicional peruana, ou que desejam tratar outros problemas de saúde, física ou psicológica. Todos os meses há grupos para fazer retiros e dietas.

No mundo todo, pesquisas científicas estão comprovando que os benefícios dos psicodélicos não se limitam aos tratamentos de doenças mentais. Pessoas sem nenhuma enfermidade também podem obter benefícios, por exemplo, em ganhos de cognição, criatividade e autoconhecimento. Foi mais ou menos por essa via que o gerente de comunicação brasileiro, Ricardo D'Aguiar, chegou ao Takiwasi.

"Fui pela primeira vez em 2009 fazer um filme e com o intuito de buscar um tratamento pessoal, na época tinha acabado de sair de um relacionamento de longa data", conta D'Aguiar. Lidar com a separação era um problema para ele e durante uma imersão de três meses no Takiwasi descobriu que essa dificuldade tinha relação com outros setores de sua vida. "Tinha a ver com a história da minha família e a separação dos meus pais."

Segundo ele, além de revelador, o processo ajudou em um momento muito difícil. "Me colocou num caminho de afirmação da minha vida, descobri o quanto ela é preciosa, me tornei mais íntimo e amigo de mim mesmo."

Além dos trabalhos com a medicina dos curandeiros amazônicos, o Takiwasi também ajuda a preservar a floresta e as plantas com as quais trabalha. Segundo Jacques, o desmatamento e o crescimento mundial do consumo de ayahuasca ameaçam a sustentabilidade da planta.

Outro impacto do projeto vem de parcerias com povos nativos da região. Através do seu Laboratório de Produtos Naturais, o Takiwasi trabalha com 74 famílias de produtores agroflorestais, em 21 comunidades indígenas e camponesas. O centro oferece formação para a gestão sustentável dos recursos florestais, garantindo a eles um pagamento justo pela recolha e cuidado das plantas medicinais.

*Essa reportagem teve o apoio do Amazon Rainforest Journalism Fund do Pulitzer Center e do Fundo para investigações e novas narrativas sobre drogas da Fundação Gabo e Open Society Foundations.

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