Dá para dizer que esse é o início do registro da memória?
Isso. Veja: a linguagem oral permitiu que a nossa memória individual fosse coletivizada. Mas, quando todos os indivíduos que participavam da conversa na fogueira à noite morriam, essa memória coletiva só passava para outros indivíduos pela tradução oral. Essa foi a primeira vez na história que as nossas impressões, emoções e a nossa visão cosmológica do mundo foi impressa em um meio não biológico. E ele está lá até hoje. Esses caras escreveram a Ilíada há 40 mil anos, e ela está lá em pedra. E o que é mais sensacional é que os caras descobriram uma forma de pintar que durou 30 mil anos. No meu livro, eu descrevo uma cena, claro, tirada da minha imaginação, de como eles migravam na neve para penetrar no subterrâneo e fazer seu ritual de encontro com a transição do mundo real para o mundo imaginário.
Mas já havia uma divisão clara entre o mundo mágico e o mundo concreto naquela época?
Tudo leva a crer que sim, que existia inclusive uma classe, não sei o nome mais correto, de sacerdotes, xamãs ou arautos da visão. Isso é impressionante porque existe desde o começo dos tempos. A gente valoriza muito aqui no ocidente evidentemente os mitos gregos, a Odisséia, a Ilíada, a origem da descrição da condição humana. A cada dois anos, eu leio a Odisseia e a Ilíada só para ver como eu me sinto. E a minha impressão não mudou desde os meus vinte anos. Todavia a Ilíada é inspirada no mito de Gilgamesh da Mesopotâmia, que é muito mais antigo. E Gilgamesh já tem o dilúvio, já tem a tal da arca, já tem a maçã, já tem a serpente, e esse tópico se repete.
É o que dizem: é sempre a mesma história que é contada, certo?
Metade da vida da humanidade foi plagiar. Você pega a história das religiões modernas, monoteístas, e eles adotaram todos os mitos pagãos, deram uma revestida. Eu fui descobrindo isso ao longo dos anos e é impressionante. O próprio Gilgamesh remete você a um mundo anterior, do qual a gente não tem um registro escrito porque é antes da escrita, mas você tem o registro pictórico nessas cavernas. E é impressionante porque você muda de perspectiva quando começa a examinar a etnografia dessas gravuras com as interpretações possíveis. Era um mundo muito mais analógico e tangível, existiam abstrações mentais, é óbvio, mas elas não eram tão dominantes como as que hoje existem. Nós criamos um mundo de faz de conta, nós criamos um mundo nos dez mil anos onde essas abstrações mentais passaram a ser mais importantes do que a vida humana. Sistemas políticos, ideologias, religiões, dinheiro, são todas abstrações humanas.
No capítulo doze, eu tenho um quadro que talvez seja a figura mais legal do livro que é a história do dinheiro. Como as diferentes civilizações usavam algo para carregar valor e transferir para trocar bens. É uma coisa absurda. O império romano usava sal. Os astecas usavam grãos de cacau quando precisavam de troco. Quando precisavam fazer compra grande, eram roupas de algodão. Mas, a cada passo, o dinheiro começa a ser menos tangível. O exército romano precisa receber a moeda de ouro, de prata dos caras. De repente, mil anos depois, a gente tem zeros e uns na conta bancária e acha que é a mesma coisa, porque a gente assume essa abstração mental de que o que está lá é real. E evidentemente não é. É um contrato mental humano. E esse barato, que é uma criação nossa, tem um valor que rege o mundo hoje em dia. Ele manda no mundo, mas é uma abstração mental, não caiu do céu, não tem nada de divino.
Outro dia, me perguntaram o que eu acho das fake news? As fake news são a coisa mais antiga da humanidade. Um exemplo disso é um faraó em crise que vira para o sacerdote e fala: "Ô, os caras não querem construir a pirâmide, o que eu faço?". O sacerdote: "Ah, muito simples, é o seguinte: eu vou ser sacerdote para a vida inteira?" Soa familiar, não soa? E o faraó: "Não, você, seu filho, seu neto, seu bisneto, todo mundo vai ser sacerdote do faraó." E ele: "Tá bom, então é o seguinte: você vai lá, se veste de ouro, ao meio dia, você sai do templo de Tebas, na praça central, todo mundo vai estar lá, o sol vai bater em você, eu vou dizer que você não é mais o faraó, você é a encarnação de Rá, o deus Sol, pronto." E funcionou! O cara fez exatamente isso e olha as pirâmides que têm lá. Os caras não estavam construindo as pirâmides, eles estavam construindo a pirâmide para um deus!
Então a gente como humano já nasce com a tendência a acreditar nessas abstrações?
Isso. Tem duas fragilidades fundamentais do cérebro humano: a grande vantagem é que nós somos capazes de criar essas abstrações. Somos uma máquina de criar universos. Por isso que nós temos essas bolhas da internet, onde os caras vivem em comunidades, onde a Terra é plana, não tem lei da gravidade, vacina não é boa? Qual é o nosso problema? Nós somos geradores de abstrações mentais contínuas: religiões, sistemas econômicos, sistemas políticos, ideologias, deuses, ciência, matemática, enfim. Só que nós temos uma fragilidade neurobiológica que permite que, ao comunicar essas abstrações, que eu chamo de vírus informacionais, os cérebros de milhões de pessoas se sincronizam quase que automaticamente. É o que a gente chama de crença, que nada mais é do que uma fragilidade biológica que faz com que um vírus informacional sincronize milhões de pessoas a fazerem parte de um universo abstrato.
E, aí, vem o nosso querido Marshall McLuhan. Quando ele diz que, no momento que o meio de comunicação, que é a mensagem - e ele está absolutamente certo - atingir a velocidade utilizada pelo cérebro para processar a informação, nós estamos fritos. Porque vamos criar a aldeia global. Ele achava que a aldeia global seria extremamente positiva. Infelizmente aí ele estava errado. A aldeia global passou a ser o que é. Por que você acha que o Trump usa o Twitter? Porque ele tem mais seguidores do que todas as redes de televisão americana juntas. Então, quando ele fala qualquer absurdo, o universo que ele criou nesse Twitter instantaneamente sincroniza. E não há jeito de que a NBC, o New York Times, Washington Post vá lá e fale que é mentira, que é fake news. Não adianta, o universo já cristalizou. E isso é um fenômeno neurobiológico. Não é um fenômeno de comunicação.
A comunicação é uma manifestação secundária da habilidade e da fragilidade do sistema nervoso humano. Qual é a única maneira de você impedir a cristalização desses universos? É você bloquear a transmissão do vírus informacional. É como você ter uma vacina para um vírus real. Porque, no momento que ele é solto, você pode esquecer. Você não vai desmentir nunca.