Enquanto se preparava para tirar fotos na escadaria do Theatro Municipal, no centro de SP, o homem negro, um senhor septuagenário de cabelos e barba brancos, é surpreendido. Um estranho reconhece ele e a sua companheira de mais de 25 anos, Regina Lúcia dos Santos. Pede para tirar uma selfie e vai embora.
Naquele mesmo lugar, mas em 7 de julho de 1978, Milton Barbosa, o Miltão, reuniu uma multidão para protestar contra o racismo. Fato raro, colocou na mesma manifestação gente da direita e esquerda, que, desafiadora, ignorava a ditadura em vigor. Nascia ali o MNU (Movimento Negro Unificado), que viria a se tornar o principal movimento social do país em torno da pauta racial.
Não é exagero dizer que a luta contra a discriminação racial no Brasil é feita de um antes e depois de Miltão. Mas ele mesmo tem um antes e vários depois, ainda inexplorados. É o menino criado sem pai que caiu no samba. O metroviário que esnobou a USP. O homem que aglutinou em torno de si figuras importantes e referências na luta racial, como os intelectuais e ativistas Abdias do Nascimento (1914-2011) e Lélia Gonzalez (1935-1994). O militante que ajudou o PT, mas caiu fora pela falta de espaço. O ativista que distribuía jornais na porta do baile com a mesma seriedade que subia ao palco para falar ao lado dos Racionais.
Ao longo da conversa com Ecoa para reviver aspectos de sua vida, Miltão tropeça em fendas que se abrem na memória. A cada novo salto no passado, explica algo do fortalecimento do movimento negro no país, navegando entre o que se lembra e o que se pode contar. Entre um e outro, o septuagenário parece ter mais vida - e histórias - do que a própria vida é capaz de suportar - e de guardar.