Sem passagem

Maricá (RJ) mostra como viabiliza transporte gratuito para a população e planeja ônibus com energia limpa

Gabriele Roza (texto) e Lucas Seixas (fotos) Colaboração para Ecoa, do Rio de Janeiro (RJ) Lucas Seixas/UOL

Quando o professor Thiago Sá, 35, chegou em Maricá, município da região metropolitana do Rio de Janeiro, em 2018, ficou surpreso. Ele tinha acabado de mudar de São Paulo, onde a tarifa de ônibus é uma das mais caras do país, para um município com tarifa zero. Em Maricá, basta dar sinal para os ônibus, chamados "vermelhinhos", para acessar a cidade de 362 km², uma das maiores da Costa do Sol, no Rio de Janeiro.

A catraca continua nos ônibus para registrar o número de passageiros, que chega a 110 mil por dia no município de 161 mil habitantes, mas não tem cobrador e nem validadores de cartões instalados. Desde 2014, quando foi fundada a Empresa Pública de Transportes (EPT), os moradores conseguem andar de ônibus de graça no município.

''Participei das Jornadas de Junho, em 2013, que começaram justamente com uma questão de preço do transporte. Também estive próximo do Movimento do Passe Livre, então foi muito feliz chegar numa cidade em que realmente o transporte é gratuito'', diz Thiago.

Há oito anos, o sistema gratuito começou com apenas dez ônibus e três linhas, hoje são 115 ônibus e 38 linhas. As bicicletas completam as rotas de deslocamento na cidade. Apelidadas de "vermelhinhas'' e igualmente gratuitas, elas vão até onde os ônibus não chegam. Thiago costuma ir para a escola municipal onde trabalha de bicicleta, mas com a expansão das linhas, passou a utilizar mais os ônibus públicos.

''Há dois anos, não tinha ônibus que chegasse até o meu bairro, mas agora tem um ônibus que passa a cada meia hora.''

SUS do transporte

Para o economista e coordenador executivo da Casa Fluminense (espaço para a construção coletiva de políticas e ações públicas no estado do Rio de Janeiro) Vitor Mihessen, a experiência de Maricá pode e deve ser reproduzida em outros municípios do estado. Ele lembra do Mapa da Desigualdade 2020, um levantamento que mostra o peso da tarifa do transporte público no orçamento familiar mensal de moradores de periferias do estado do Rio.

Nesses lugares, mais de um terço da renda é comprometido com as passagens de ônibus.'' Zerar esse custo para a população é importante para liberar essa grana mensal para itens prioritários como a alimentação, já que no país o transporte supera o gasto de consumo com comida''.

Em 2015, foi promulgada a Emenda Constitucional 90/15, que garantiu o transporte como um direito social, mas no Código Penal a história é outra. Artigo de 1940 determina que quem entrar em transporte sem ter recursos para pagamento pode ter como pena detenção de dois meses ou multa.

Vitor Mihessen acredita que o sucesso do Sistema Único de Saúde (SUS) na garantia do direito à saúde é um ótimo exemplo para a mobilidade urbana. Ainda mais que o transporte é meio para acessar outros direitos também garantidos em constituição, como saúde, educação e lazer. ''Um sistema único de transporte é uma projeção que se faz como alternativa a esse aspecto mercadológico. O ideal seria criar um sistema único de transporte com a estrutura de governança do SUS, com conselhos, planejamento e fundo''.

Além de Maricá, um levantamento realizado em abril mapeou 44 cidades com políticas universais de tarifa zero, entre elas Caucaia (CE), Paranaguá (PR), Formosa (GO) e Itapeva (SP). Segundo o mapeamento, os municípios com ônibus gratuitos no Brasil reúnem uma população de 2,1 milhões de habitantes.

O atual prefeito de Maricá Fabiano Horta (PT) explica que o transporte público no município colabora para o desenvolvimento social, ambiental e econômico. Segundo ele, o sistema facilita a geração de empregos na cidade, já que empresas de diferentes segmentos podem empregar pessoas sem um gasto a mais com passagem de ônibus.

''A primeira vantagem do Tarifa Zero é que, por não pagar passagem, o morador tem mais dinheiro no bolso e pode gastar com alimentação, no comércio ou com serviços. A segunda é poder circular por todo o município, e isso traz integração e sentimento de pertencimento, porque as pessoas participam da cultura e da vida da cidade'', diz o prefeito.

Felipe Okelly, presidente da União Maricaense dos Estudantes e usuário do sistema de transporte

Jovens aproveitando a cidade

Felipe Okelly, 27, graduando e presidente da União Maricaense dos Estudantes (UMES), garante que os benefícios melhoram a qualidade de vida dos jovens. Ele conta que o município oferece bilhete único para locomoção de universitários e de alunos de cursos técnicos que moram em Maricá, mas estudam em outros municípios. ''A prefeitura faz o crédito em dinheiro, não é com crédito em quantidade de passagem, você pode se locomover em todos os lugares, o cartão funciona aos finais de semana e não tem limite de quantidade de vezes que você usa durante o dia.''

Com uma costa litorânea de 46 km, a praia acaba sendo um dos principais espaços de lazer. ''Uma galera mais conservadora diz que o jovem que não tem nada pra fazer, pega o ônibus e vai à praia. Pra mim, isso é ótimo!''. Para além da praia, com o ônibus Felipe consegue acessar o Cine Henfil, cinema de rua gratuito, a Casa de Cultura e rodas culturais nas praças.

Lucas Seixas/Uol Lucas Seixas/Uol

Antes tinha que ficar o dia inteiro na rua porque se voltasse pra casa, não ia conseguir voltar para a atividade. Dá pra ir pra casa descansar, almoçar, fazer atividade física e depois voltar.

Felipe Okelly

As pedras no caminho da tarifa zero

A população precisou ter paciência até conseguir a implementação de um sistema gratuito e de qualidade em todo município. Em 2013, o Ministério Público estadual condenou a empresa que concedia o transporte público de Maricá, a Viação Nossa Senhora do Amparo, por uma série de irregularidades na manutenção da frota, na cobrança de tarifas e na prestação de serviços aos usuários de ônibus.

A empresa batalhou na Justiça para que não fosse implementada a política de tarifa zero. Em 2015, uma determinação da Justiça proibiu que a frota gratuita circulasse. A decisão foi tomada após um pedido do Sindicato das Empresas de Transportes Rodoviários do Estado do Rio de Janeiro (Setrerj). O Sindicato alegou que a entrada da Empresa Pública de Transportes (EPT) no mercado ''promove concorrência desleal e implicou em desequilíbrio econômico-financeiro das empresas prestadoras do serviço''.

O contrato de concessão com Amparo seguiu até janeiro de 2021. Depois disso, o vermelhinho entrou em circulação em todas as linhas. Atualmente, a EPT é a única a operar o sistema de ônibus da cidade, mas não se trata de uma estatização. O prefeito explica que é um modelo híbrido, que mescla público e privado.

''Parte da frota é do município e outra, alugada de empresas de ônibus. A definição sobre quais linhas priorizar e quantos veículos colocar em cada uma delas, conforme a necessidade da população, é exclusiva da prefeitura'', explica.

Para o economista Vitor Mihessen, ''um modelo que coloca nas mãos do empresário um direito constitucional de ir e vir está fadado ao colapso''.

Lucas Seixas/Uol O professor Thiago Sá, 35, morador de Maricá desde 2018

O professor Thiago Sá, 35, morador de Maricá desde 2018

Do petróleo ao ônibus elétrico

Maricá é a cidade que mais recebe royalties do petróleo no país, segundo a Agência Nacional do Petróleo (ANP). Segundo a prefeitura, os recursos provenientes do petróleo viram investimentos e obras de infraestrutura para beneficiar a população, como a política de tarifa zero no transporte. Como a principal fonte de combustível do mundo não é infinita e muito menos renovável, o desafio do município é diminuir a "petrodependência" nos próximos anos.

''A cidade está se preparando e vivendo esse afluxo dos royalties do petróleo de maneira muito responsável'', defende o prefeito. ''Criamos um fundo soberano municipal, que retém mensalmente 5% dos royalties para que tenhamos a continuidade das políticas públicas sociais e de investimentos''.

O Fundo Soberano de Maricá, criado em 2018 pela prefeitura, é uma poupança a partir da arrecadação mensal dos royalties de petróleo. O saldo atual do Fundo Soberano é de um bilhão de reais e a previsão é que chegue a R$ 2 bilhões em 2024. Segundo informa a prefeitura, o objetivo do fundo é garantir que as políticas públicas sejam mantidas mesmo quando o município deixar de receber recursos provenientes do petróleo.

Com os recursos de royalties oriundo de matriz energética poluente, a cidade começa a desenvolver ônibus não poluentes. Em 2022, Maricá colocou em teste o primeiro protótipo de ônibus movido a energia limpa, fabricado em parceria com a Coppe/UFRJ. Segundo o Secretário de Desenvolvimento Econômico de Maricá, Igor Sardinha, a previsão é de que os três modelos de ônibus híbrido (elétrico-hidrogênio, elétrico-etanol e puramente elétrico) sejam concluídos até 2024. Depois desse período, o município vai começar a substituir gradualmente os ônibus comuns pelos híbridos.

''Será um produto patenteado e pronto para ganhar escala e, assim, começar a fazer parte da nossa frota e ser vendido para outros municípios, estados e países. Até 2038, o planejamento é que Maricá tenha 100% da frota com energia limpa'', diz o secretário.

Lucas Seixas/UOL Lucas Seixas/UOL

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