A jardineira fiel

Em memória da esposa, ela quer criar jardim botânico em milhares de metros quadrados em São Paulo (SP)

Marcos Candido de Ecoa, em São Paulo (SP) Keiny Andrade/UOL

Após se divorciar, nos anos 1990, a filósofa e professora Maria Eliane Pereira de Oliveira conheceu a diretora escolar Maristela Dall'oca. Segundo Eliane, a companheira correspondia à imagem clássica que se tem de uma diretora: era durona e exigia respeito dos alunos. Foi Maristela que a convenceu a ficarem juntas.

Àquela altura, Eliane tinha viajado pelo mundo, se especializado em paisagismo, era mestre em pedagogia e tinha uma estante com centenas de livros de filosofia e literatura, só nunca teve um relacionamento com outra mulher até aquele momento. "Foi normal", diz.

Também juntas, por volta de 2018, sonharam em construir um jardim botânico em São Paulo. Como duas professoras, o primeiro objetivo era criar um espaço de educação ambiental, ensinando sobre meio ambiente para moradores de uma área cada vez mais devastada pelo avanço da cidade.

Como casal, hoje, há um sentido especial na criação do jardim particular. Em uma manhã, Eliane tentou acordar Maristela, mas a diretora morreu enquanto dormia. A causa foi um infarto, afirma a filósofa.

Sozinha, a partir daquele dia, Eliane tocou a casa e sonho que as duas tinham. Está construindo um jardim botânico que no futuro terá portas abertas para pesquisadores, observadores de pássaros, universitários, crianças, artistas e pessoas em busca de natureza dentro da maior metrópole do país.

Keiny Andrade/UOL
Keiny Andrade/UOL Vista aéra do Sítio Represa na região do Marsilac, extremo sul de São Paulo

Vista aéra do Sítio Represa na região do Marsilac, extremo sul de São Paulo

Desde a década de 1970, Eliane mora em um sítio em Engenheiro Marsilac, extremo sul da cidade de São Paulo. Ao todo, o terreno tem 13,5 hectares - ou 135 mil metros quadrados. A casa onde vive foi construída de forma sustentável, reaproveitando material de obras de prédios do centro da cidade e de Marsilac.

É lá onde hoje ela cultiva tipos peculiares de bromélias, orquídeas, samambaias, árvores como ingás e eucaliptos e um pomar com bananas, mexericas, cabeludinhas e um fruto roxo da Mata Atlântica pouco conhecido chamado grumixama, que lembra uma mistura de jabuticaba com mirtilo.

Para planejar o jardim que circula a casa, Eliane estudou paisagismo. A fama cresceu. A casa venceu premiações e foi publicada em revistas de arquitetura.

Apesar disso, ela diz que se adaptaria às exigências do futuro jardim botânico. "Se precisar sair daqui para dar espaço para o jardim, quem sabe eu até me mudo", diz.

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Mas esse jardim não será o primeiro legado de Eliane. Em Marsilac, a paisagem é de interior, mas os problemas da cidade grande continuam. São 350 km² de área, equivalente a 23,68% da capital.

Os guarani, que hoje vivem na Terra Indígena Tenondé Porã e na aldeia Krukutu, tiveram que dividir espaço com alemães a partir de 1827, quando o império deu terras para criar uma colônia alemã a mais de 50 km do centro.

A distância dos serviços públicos e a presença estrangeira criaram desigualdades até hoje. Até 2010, Parelheiros e Marsilac tinham o pior índice de desenvolvimento da cidade.

Eliane, que dava aulas de filosofia em colégios da redondeza nos anos 80, articulou a criação da escola estadual Leonor Fernandes Costa Zacharias, instalada no bairro Jardim das Fontes. Por insistência da população, foi nomeada como a primeira diretora do colégio pelo governo estadual.

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Há cerca de um ano e meio, ela recebeu a visita de Lucas Gonçalves Ferreira, 22, filho de um amigo e prestes a se formar engenheiro florestal. A ideia era estudar as diversidades de bromélias do terreno, mas o universitário seguiu a ambição do jardim botânico.

"Uma das ideias é transformar o pomar em um jardim sensorial, com espelhos no chão para causar um efeito de ótica e fazer as pessoas observarem as copas das árvores — e com espécies nativas", diz.

Segundo ele, há uma articulação com o Herbário Municipal da Prefeitura de São Paulo para preservação e estudo de espécies.

Além disso, ele estudou e contatou jardins botânicos nacionais, como o Jardim Botânico do Rio de Janeiro, o mais tradicional do país. O desafio mais complexo é encontrar investidores para o pontapé inicial, seja no Brasil ou no exterior, diz.

Eliane diz ter feito uma pequena cerimônia para lançar as cinzas de Maristela no jardim. Em um banco próximo ao local, diz ter passado muitas tardes em discussão com Lucas para dar continuidade ao projeto, próximo a uma cerejeira. Nos últimos anos, passou a estudar mais metafísica.

As plantas escolhem onde ficar onde se sentem bem e a gente se sente feliz junto com elas. Enquanto estiver viva, vou estar feliz com elas. Depois, quando não estiver, outros vão estar.

Maria Eliane Pereira de Oliveira, filósofa

Marcel Uyeta/UOL Vista aéra do Sítio Represa na região do Marsilac, extremo sul de São Paulo

Vista aéra do Sítio Represa na região do Marsilac, extremo sul de São Paulo

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