Padre rebelde

Em 35 anos com os mais vulneráveis, Júlio Lancellotti diz: "Mudança vem pela humanização, e não pela religião"

Paula Rodrigues De Ecoa, em São Paulo Ricardo Matsukawa/UOL

Da última vez que a reportagem de Ecoa conversou com o padre Júlio Lancellotti, ninguém estava de quarentena no Brasil. Os comércios ainda estavam abertos e as escolas ensaiavam a melhor forma de dispensar os alunos. Parece distante, mas não é. Pouco mais de um mês atrás, o sacerdote planejava como lidar com a Covid-19 quando ela atingisse quem não tem teto. À época, ele ofereceu um andar da Casa de Oração do Povo de Rua, espaço que gere na região central da capital paulista, para a Prefeitura. "A gente precisa buscar não só os próprios interesses, mas dos irmãos em necessidade", disse na ocasião. Não foi possível adaptar o local para receber infectados, mas a missão de ajudar seguiu com a mesma força.

E assim tem sido há mais de três décadas. Na semana passada, o padre nascido em 1948 no bairro do Belém, em São Paulo, completou 35 anos de ordenação. Em sua trajetória, dedicou-se principalmente a apoiar os mais vulneráveis. Hoje, cerca de 500 homens e mulheres vão todos os dias a sua paróquia se alimentar e receber kits de higienização e máscaras. O sacerdote já realizou trabalhos com jovens encarcerados, portadores de HIV, população LGBTQI+... E já foi alvo de duras críticas também, justamente por estar ao lado de quem está.

Júlio Lancellotti foi chamado de padre rebelde e acusado de ir contra o bom comportamento no cristianismo. Mas ele aceita o rótulo, e rebate: "O cristianismo por natureza é conflitivo. Jesus não foi pregado na cruz por falta de opção, mas porque gerou conflito. Se nesse mundo excludente você não tiver uma dose de rebeldia, é porque se adaptou a esse modelo", diz, dessa vez em nova entrevista, na qual desenha perspectivas de humanidade em meio a uma pandemia.

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Padre, como tem sido a rotina do senhor desde o início da pandemia?
Eu acordo muito cedo. Às 7h começamos o atendimento a pessoas em situação de rua que vai até 10h30. E pela tarde eu tenho ficado em casa, no que o povo chama de home office, né?

Estão acontecendo missas por lives também...
Ah, sim, as celebrações de domingo têm sido transmitidas pela internet. Tem sido celebrações muito difíceis, emotivas. Mas de muita comunhão. No último domingo vimos que tivemos 2 mil visualizações. É uma forma de comunicação. Esse momento de isolamento chama para uma outra forma de comunhão mesmo.

E como tem se sentido, observando o que estamos vivendo?
Comprometido. É um compromisso que eu tenho. Não adianta dizer que nós estamos do lado deles e no momento mais difícil não estar de fato. Mas é um desafio para a vida. Um desafio histórico. E uma das coisas que penso muito é que uma transformação desse cenário não vai ser automática. Não é porque passamos por um momento muito difícil que as pessoas vão mudar o jeito de pensar, que a sociedade vai se reestruturar. O pensamento econômico ainda é muito forte. A primazia do capital é muito grande, e o desprezo pela vida do outro é muito forte.

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Então o senhor acha que não dá para sair diferente e melhor disso?
Não automaticamente. Eu não acredito que as mudanças na história aconteçam assim, de um dia para o outro. As mudanças têm que ser gestadas por muito tempo. No momento, nós estamos tendo mudanças conjunturais. Tem bastante solidariedade acontecendo, mas também tem bastante insensibilidade.

Nós conversamos no começo do surto no Brasil, quando o senhor estava se preparando para ceder um espaço [a Casa de Oração do Povo da Rua, na Luz] para tratar possíveis casos de Covid-19. Como estão as coisas agora?
Não aconteceu. Acharam que o local precisaria de muitas adaptações e optaram por outro lugar. Mas nós continuamos recebendo um grupo bastante grande todas as manhãs. Pessoas que vêm aqui atrás de um momento de acolhida e um café da manhã. Agora também estamos preocupados em ajudá-las no cadastro para receber a renda emergencial, já que a população em situação de rua está ficando completamente excluída nisso também, porque tem toda uma burocracia.

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Vemos o governo pedindo CPF, número de celular para receber confirmação [para acesso à renda emergencial], e as pessoas em situação de rua não têm nem um cobertor. E aí a gente vê que a desigualdade ficou escancarada. Tudo é muito descolado da realidade dessas pessoas.

Padre Júlio Lancellotti

Há um vídeo que viralizou em que o senhor aparece abençoando anarquistas. Como dialogar com grupos diversos?
Sério? (risos). Bom, eu tenho muitos amigos do movimento anarquista, de grupos de sociologia libertária. Acho que eu consigo perceber a força de transformação que está neles. A vontade de mudar a sociedade. Durante minha vida, pude encontrar os jovens mais idealistas, mais corajosos também. Os que mais têm amor pelo próximo se arriscando, enfrentando a força da repressão com uma coragem inigualável.

Já te chamaram de "padre rebelde". O senhor se vê assim?
Eu acho que a rebeldia, em uma sociedade como a nossa, é um imperativo. Se nesse mundo excludente, elitista, cheio de contrastes, você não tiver uma dose de rebeldia é porque você se adaptou, se domesticou a esse modelo. Uma pergunta que eu me faço e procuro ler e estudar muito: Jesus teve muitos opositores? Sim, teve. Se você pega o evangelho de São Marcos, já nas primeiras páginas querem matar Jesus porque ele contestou todo tipo de institucionalização. Contestou todo tipo de poder, de discriminação e preconceito. Ele se solidarizou com os indesejáveis.

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Presente na fragilidade

A maior parte da sua vida foi dedicada a esses grupos "indesejáveis". Quando resolveu estar ao lado dessas pessoas?
Não teve um momento. Eu nunca fiquei do lado contrário. Pela formação que eu tive, tanto familiar quanto a religiosa, sempre foi importante estar do lado do mais fraco. Do que está perdendo, esquecido, sofrendo. Dificilmente eu aceito convite para ir a uma festa, mas não deixo de ir a enterro, velório ou hospital. Porque são nesses momentos que as pessoas estão mais frágeis. Se você não vai a uma festa, eles até esquecem que você não foi, porque sempre tem muita gente se divertindo. Mas em um velório, eles ficam te esperando. É no momento de maior fragilidade que a necessidade é mais forte e você precisa estar presente. O poder de Deus é a fraqueza. Quando a gente se ordena padre, escolhemos uma frase bíblica para ser o lema da ordenação. Eu escolhi uma frase que está na carta de São Paulo aos Coríntios que diz: Deus escolheu o que é fraco para confundir o que é forte.

Por que o senhor escolheu essa frase?
Porque ela mostra que o poder e amor de Deus estão do lado do que é pisado, não do que pisa.

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Muitas vezes o movimento da teologia da libertação é acusado de deturpar o cristianismo, correto?
Sim, mas acusado por quem? Por aqueles que têm medo da força dos pobres. A força histórica dos pobres. E essas pessoas têm medo da força do pobre porque é uma força que muda, transforma, reorganiza a forma de viver.

O senhor já disse ter se considerado um "fracassado". Você ainda se vê assim? O que é o sucesso para um sacerdote?
Eu fico espantadíssimo quando alguém fala de sucesso para mim. Essa é uma palavra que me causa aversão. Porque ela mostra a meritocracia, a competitividade, em detrimento da solidariedade e da cooperação. E ela mostra a conivência com esse sistema. Se você for conivente com esse sistema, você pode ter sucesso. Eu não quero ser bem-sucedido nesse sistema porque significaria que eu aderi a ele. Sucesso é um conceito que tem que ser contextualizado. Dentro da nossa cultura, ele traz embutido a meritocracia, a competição e, consequentemente, a exclusão, porque para alguém ser o primeiro, outro tem que ser o último.

Lá no Congresso, em Brasília, tem muitos religiosos. Tem até a bancada da Bíblia né? Junto com a do boi e da bala. Mas onde está a bancada que humaniza?

Padre Júlio Lancellotti

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Quando o senhor recebeu ameaças de morte, disse que sua segurança pessoal está atrelada a de quem defende. Acredita que, se não estivesse ao lado de quem está, não receberia ameaças?
Ah, claro que não! Se eu estivesse jantando com grupos de elites corporativas eu não teria ameaça alguma. A ameaça não é a mim. É à população de rua, aos jovens infratores, aos presos e presas, aos negros e empobrecidos. É por isso que eu sofro essas ameaças. Inclusive, essa semana eu comemorei 35 anos de ordenação de padre, e um dos livros que marcou minha vida chama-se "Pastoral numa Sociedade de Conflitos" [do padre João Batista Libanio]. Me marcou porque muitas vezes a religião tenta cobrir, esconder o conflito. Mas o cristianismo por natureza é conflitivo. Jesus não foi pregado na cruz por falta de opção, ele foi pregado porque gerou conflito.

O senhor usa sua força religiosa como um escudo para as pessoas?
Muitas vezes isso acontece, sim. Mas acontece de duas formas. Às vezes sou um símbolo religioso que ajuda, mas em outras prejudico. As autoridades policiais costumam bater em moradores de rua e falar: "Vai chamar o padre". E isso é o que mais me fere. Na antiga Febem tinha um cassetete com o qual os meninos apanhavam em que estava escrito: "Padre Júlio Lancellotti". Aí eles batiam neles com isso e falavam: "Vocês não tinham chamado o padre?"

Em nenhum desses momentos o senhor pensou em desistir?
Olha, tem certos caminhos em que não há mais volta. Eu já passei por tantas situações que me considero um sobrevivente. Não há mais volta.

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Fé é compromisso

Mas não tem um custo psicológico? Não traz sofrimento?
Tem, sempre tem. Mas você não entra em uma luta sem saber do risco do ferimento. Eu lembro que eu costumava sentar ao lado da minha mãe e pedia um carinho, um afago. E ela me dizia: "Aguenta! Porque essa é a vida que você escolheu. É duro, mas toda luta tem sua cota de solidão." A luta é muito solitária, e você tem de aguentar firme. Uma coisa que eu aprendi muito com esse povo sofrido é que não tem amor sem dor. Quem me ensinou isso foi um menino da Casa Vida, soropositivo, que morreu com 11 anos, o Daniel. Eu dizia que ele era meu professor de teologia. Chegou um momento em que me pediu para levá-lo a igreja. Eu o levei no colo porque ele já não conseguia andar. Chegando lá, ele viu a imagem em que Jesus está mostrando o coração. Aí ele olhou para a imagem, olhou para mim e me perguntou: "Por que o coração de Jesus está para fora?". Eu respondi: "O coração dele está para fora porque ele ama muito. Quando a gente ama muito é isso o que acontece." E aí ele completou: "E dói." Contei isso para dizer que, quando você coloca seu coração para fora, para amar outra pessoa, você está sujeito a dor. O amor nos torna vulneráveis. E quando você ama, acaba passando pelas mesmas coisas que as pessoas que você ama passam, na felicidade ou na tristeza.

O momento é de grandes incertezas, medo do futuro... Qual é a função da religião agora?
Eu penso que a questão não é religiosa. A questão é de humanidade. É uma questão de dimensão humana, porque a compaixão não é da dimensão religiosa. É da dimensão humana. Porque senão a gente começa a pensar que a mudança vem pela religião, e não vem. E quem não tem religião? E os ateus? Os agnósticos? Ficam de fora? A mudança vem pela questão da humanização da vida.

A fé não é uma redoma de vidro que vai te trazer privilégios ou incolumidades. Vejo muitas pessoas falando que fé é conforto para esses momentos, e eu discordo. A fé não é conforto, é compromisso. A fé não é uma almofada para você sentar. É a sandália que você coloca para caminhar. Esse é um momento duro para todos nós, é um momento em que muitas pessoas estão sofrendo demais, um momento de grande desafio para mudar o modelo social, econômico, político e também os parâmetros pessoais. É um momento de sermos e aprendermos a ser generosos.

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