Mutirão e Fé

Benedita da Silva: "Não tem desenvolvimento econômico se não investir no negro e na negra."

Elena Wesley, do data_labe Colaboração para Ecoa no Rio de Janeiro (RJ) Ascom

"Temos condições melhores do que quando eu comecei." Talvez, para um jovem, ouvir esta frase possa parecer excesso de otimismo, mas as condições melhores são fruto de muita luta para esta política de 79 anos de idade, que se recusa a ser chamada de senhora pela repórter. Essa política que é "mulher, negra e favelada", como se afirmou Benedita da Silva, no primeiro discurso como eleita na Câmara dos Vereadores, em 1982, quando a "coqueluche" da diversidade ainda não era usada para vender produtos e reposicionar empresas.

Os gritos de "demagoga!" que ouviu ao fundo, disparados por seus colegas homens e brancos, não a intimidaram. Empregada doméstica e liderança comunitária do Chapéu Mangueira, morro da zona sul carioca, Benedita sabia que a favela precisava entrar na política institucional para ampliar sua luta.

"A maioria das melhorias nas favelas foi feita por mutirão das associações de moradores. Para quem chegou agora, parece quase nada, mas nós, que carregamos poste e lata d'água na cabeça, sabemos que a iniciativa sempre foi da comunidade, nunca do poder público".

Dentro do PT, seu partido, o machismo era um grande obstáculo. "O máximo a que a gente chegava era ser secretária na associação. Eu falei: 'Não vamos ficar aqui só fritando bolinho pra festa, não. Vamos participar!'".

Evangélica da Assembleia de Deus desde os anos 1980, Bené avalia que a captação de fiéis pela direita é reflexo da dificuldade da esquerda de dialogar com as religiões. "Não tivemos paciência, tolerância de ouvir, informar e usar uma narrativa que a pessoa entenda. Qual a diferença do nosso discurso para o que a Bíblia diz que 'Maldito é aquele que explora o trabalhador' ou 'Cuide dos órfãos e das viúvas'? Isso significa que tem que ter emprego, justiça e casa para todos".

Acervo Pessoal
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Ecoa - Benedita, é possível que os cristãos se engajem mais nas pautas progressistas?

Benedita: Existem muitos cristãos que não se dobraram a Baal [Benedita cita trecho do Antigo Testamento, I Reis 19:18] e que estão não só orando, mas orando e trabalhando, gente que não concorda com isso que está aí. O que está acontecendo é crime!

A verdade é que a esquerda ignorou a organização popular e cristã, porque 'a igreja é o ópio do povo'. Nós que somos de fé - o católico, o evangélico, o candomblecista - não fomos protagonistas na formulação das mudanças, não dialogaram com a gente. Eu fui a primeira mulher assembleiana a ir para um partido de esquerda e eu dizia que tínhamos que fazer alguma coisa, mas não havia espaço no interior do partido para esse diálogo.

Essa coisa de gente comunista é muito forte para os evangélicos desatentos, que não buscam se envolver na política. Em 1964, muitos de nós sofremos, fomos perseguidos, entregaram a gente. Você estava no culto de manhã, à noite já não estava mais. Então a esquerda é ruim porque defende as mulheres? Porque não persegue os LGBTQIA+s e os considera pessoas que têm direitos?

Na comunidade tem resistência, tanta igrejinha com trabalho social, visita doente, divide a farinha com a vizinha. É preciso ouvir essas pessoas.

Eu tenho feito isso e muita gente está fazendo.

O povo chega dizendo que ouviu isso e aquilo do PT porque o pastor falou, e eu digo que na Bíblia está escrito 'ai daqueles que espalham fake news, que maltratam o pobre'. Falo da bênção que é o Minha Casa Minha Vida, o Luz para Todos, o Bolsa Família.

Benedita da Silva, deputada federal

Acervo Pessoal

Fui com Lula aos maiores rincões desse país. Vi a alegria com que o povo o recebia. Lula não conhece o Brasil sentado no sindicato, mas porque andou, dialogou. Ele falava com os evangélicos, com os candomblecistas, com os espíritas, com todo mundo. É isso que a esquerda precisa fazer.

O campo progressista nos anos 1980 ficou conhecido por trazer pautas ligadas às condições do trabalhador, enquanto a esquerda atual é associada à defesa de pautas identitárias. Você vê diferença?

Tem quem pense que as questões identitárias atrapalham um projeto maior. Uma pessoa que faz uma leitura dessas não vai compreender que quem está passando fome é a raça negra e que, se ele investir na raça negra, ele estará ajudando a economia. Não tem desenvolvimento econômico se não investir no negro e na negra.

Como foi ser uma mulher negra da favela na política institucional dos anos 1980?

Entrei em função da minha militância comunitária. Nós tínhamos demandas como urbanização da favela, saneamento, creche, água, essas lutas que ainda temos hoje. Não queriam [contratar] gente do morro, tinha que ser recomendado pela paróquia.

[Naquela época] teria uma conversa sobre a criação de um partido onde o pobre, a mulher, o negro, o favelado, o marginalizado teriam vez. A princípio, eu pensei "ah, tamo dando um duro danado aqui, ninguém olha por nós". Fui a São Paulo conhecer o projeto e voltei com a incumbência de filiar a galera favelada. Quando chegou a eleição, em 1982, fizemos uma assembleia com todas as pessoas da comunidade para definir as candidaturas. E não é que me escolheram? Pensei: 'Essa gente é louca, vai que eu ganho...". Fui eleita vereadora da cidade do Rio de Janeiro e apresentei o projeto de urbanização da favela.

O que mudou nesses 40 anos de vida pública?

Muito mais gente fez junto. A organização das favelas começou a tomar tal grandeza que o poder público ficava intimidado. A classe média começou a criar associação de bairro depois que as favelas já tinham criado sua associação. Quando nós íamos para a associação de bairro com nossas demandas, falavam que tínhamos que ver como um todo. Ora, a gente descia pra trabalhar, pegava o ônibus, limpava a casa, trabalhava no comércio.

Nem tinha funk naquela época e já implicavam com o som da comunidade. Tivemos a oportunidade de ser recebidos pela prefeitura, brigamos para ter as nossas favelas no mapa da cidade. Não estávamos no mapa da cidade porque era uma forma de derrubar as casas [dos moradores de comunidade].

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Mutirão

No dia em que foi assassinada, Marielle falava do hiato na representação de mulheres negras no Legislativo entre a senhora, a deputada Jurema da Silva e ela. Naquele ano, tivemos votação expressiva que elegeu deputadas negras, mas em 2020 tivemos, no Rio de Janeiro, somente a Tainá de Paula (PT) e a Thais Ferreira (PSOL). O que explica essa baixa representação?

Primeiro quero falar de Marielle. Semanas antes a gente tinha tirado foto na Caminhada das Mulheres Negras na Avenida Atlântica, e eu disse: Marielle vem aí para federal ou senadora.

Eu tinha muito orgulho de ver aquela mulher preparada. Para mim foi um choque. Voltei da Bahia às pressas com a deputada Jandira [Feghali] (Pc do B). Falei com a Mônica [Francisco] (PSOL) que entendia aquela dor, mas que elas tinham toda a condição de dar continuidade ao trabalho. Não foi diferente. Tivemos Talíria (PSOL), a Mônica, até de direita tivemos candidatas negras eleitas.

Mas nessa eleição [2020] nos faltou estratégia. Não era para sair todo mundo. Se cada partido tivesse uma meta de eleger duas mulheres negras, dois homens negros, sentaria com o movimento e combinaria de formar gabinete junto, mandato coletivo, traçaria qual a politica que vamos implementar, mas a gente não consegue sentar para traçar.

Temos condições melhores do que quando eu comecei. Hoje temos o fundo eleitoral, a cota feminina e temos a racial. Ah, os partidos se rasgaram com essa? (risos)

Discurso de Benedita da Silva durante Marcha de 1983 do Movimento Negro

Arquivo pessoal

Conta como foi essa sacada?

Você conhece o Frei Davi [da Educafro]? Ele não tem partido, conversa sobre um projeto e coloca na mão de um parlamentar. Foi assim com a política de cotas que fez a Uerj ser a primeira universidade com cotas.

Quando eu voltei para o Legislativo, dei continuidade a essa discussão com ele, porque ia ter uma reforma eleitoral. Apresentei o projeto por uma cota para a população negra. Eles não colocaram o projeto, mas continuou tramitando. Assim que passou a cota das mulheres, entramos [com a racial], mas esqueceram lá um tempão. Como agora estávamos nessa de falar do negro ali e acolá, o ministro bota pra votar.

Quando passou "baseado na consulta da deputada Benedita", eu pensei "pronto, vão me matar, agora eles vão ter que dar dinheiro pra negrada (risos)". O secretário nacional da Igualdade Racial do PT ligou: "Bené, o pessoal já veio pra cima...", a gente ria tanto... Ninguém chega aqui porque é negro. Tem concurso, prova, tem que falar com o eleitorado, o eleitorado tem que votar na gente. A gente só tem agora a oportunidade do espaço e a garantia dos recursos para poder fazer a campanha. Vamos ter mais coisa ainda por aí, se Deus quiser.

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