Contra o negacionismo

Natália Pasternak: 'Cada um, num exercício de cidadania, deve ser multiplicador da mensagem da ciência'

Luíza Antunes Colaboração para Ecoa, de Sheffield (Inglaterra) Divulgação

Durante a pandemia, a microbiologista Natália Pasternak tornou-se figura conhecida da população brasileira graças à sua presença constante em reportagens para esclarecer fatos científicos às pessoas comuns. Como uma das vozes mais potentes do país no combate ao negacionismo da ciência, ela foi considerada uma das 100 mulheres mais influentes do mundo em 2021 — a única brasileira da lista publicada pela BBC.

Presidente do Instituto Questão de Ciência e professora convidada na Fundação Getulio Vargas e na Universidade de Columbia (EUA), Natália acredita que o negacionismo não é motivado pelos fatos em si, mas pelo que eles representam. "A negação do fato científico não tem a ver com a ciência, tem a ver com as consequências de se levar esse fato a sério. O negacionismo é uma manutenção do status quo", afirma.

Ela investiga o assunto no livro "Contra a Realidade: A negação da ciência, suas causas e consequências" (Editora Papirus 7 Mares), fruto de uma parceria com o jornalista Carlos Orsi, com quem também escreveu o livro "Ciência no Cotidiano" (Editora Contexto), vencedor do Prêmio Jabuti em 2021.

Em conversa com Ecoa, Natália discute o filme "Não Olhe Para Cima" — que vem rendendo muitas comparações entre ela e a personagem Kate Dibiasky (Jennifer Lawrence) pela postura de ambas no combate à desinformação —, os perigos e as estratégias do negacionismo e como aproximar as pessoas da ciência.

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Ecoa - Há um cometa visível no céu e uma campanha presidencial para que as pessoas não olhem para ele. Para você, qual foi a crítica mais marcante da sátira "Não Olhe Para Cima" com a nossa realidade?

Natália Pasternak - O filme foi feito para fazer a paródia com o negacionismo climático, mas serve para explicar qualquer tipo de negacionismo. Porque essa é a essência dessa prática: negar os fatos e as evidências científicas, mesmo que eles estejam muito bem explicados, documentados e diante do nosso nariz.

Quais são as motivações para isso? O filme deixa claro. O negacionismo tem muito pouco a ver com ciência ou com os fatos. Negar o aquecimento global ou a eficácia de vacinas ou a chegada do cometa não tem a ver com o cometa, as vacinas ou o clima. Tem a ver com interesses políticos e econômicos que ficariam prejudicados caso governantes e tomadores de decisões aceitassem os fatos científicos.

O filme aborda bem como diferentes poderes patrocinam a criação de falsos debates e polarização, que são amplificados nas redes sociais. Existe alguma saída para esse ciclo de desinformação?

O falso debate é uma arma, uma estratégia do negacionismo. Por isso existem estudiosos de desinformação que aconselham cientistas sérios a não participar de debates que façam falsa equivalência. Para os negacionistas não interessa o conteúdo do debate, o que interessa é dizer: "eu fui convidado para falar em Harvard, em pé de igualdade com um cientista sério, olha como eu sou levado a sério pela ciência. Olha como existe uma controvérsia dentro da comunidade científica."

Essa falsa equivalência é uma armadilha, porque confunde o público e o leva a pensar: "A ciência está dividida". E a ciência não está dividida. É um consenso científico que o aquecimento global é real, que as vacinas funcionam. Mas o falso debate gera falsa equivalência, e o resultado disso é gerar mais desinformação, com aura de legitimidade.

É um assunto delicado porque debate espetaculoso não é da ciência, é da política. O foro do debate científico é aberto a controvérsias, mas você precisa conduzir um estudo, publicá-lo e submetê-lo à crítica dos seus pares. Ali é o local do debate.

As pessoas estão muito mais acostumadas a ver um debate político do que um científico. E você acaba chegando no absurdo que é falarem 'vamos votar para ver se um medicamento ou uma vacina funciona ou não'. E por mais absurdo que isso possa parecer, a gente chegou nesse ponto. Estamos fazendo consulta pública sobre vacinação.

Natália Pasternak

Na sociedade de hoje, discussões aparentemente impensáveis como o terraplanismo ganham destaque. Por que você acha que ideias negacionistas da ciência conseguem ganhar tanta amplitude?

Eu não sou psicóloga nem antropóloga. Mas as interpretações mais comuns para teorias conspiratórias tipo terraplanista dizem que as pessoas são motivadas por pertencimento a um grupo, o que te dá um sentimento de superioridade. Você faz parte de um seleto grupo de pessoas que sabe algo que os outros estão tentando esconder. Essa sensação é mais importante do que os fatos. Então, você vê que a questão não é científica, é um dogma, é quase uma religião.

Você acha que esse debate geral sobre ciência tem a ver com o fato de o público não entender bem como ela funciona? Como aproximar a sociedade da ciência?

Para aproximar o público da ciência tem dois caminhos. Um deles sempre foi muito bem explorado, que é mostrar a beleza da ciência. O trabalho de popularizar a ciência pela beleza, pelos avanços tecnológicos, já existe.

Agora, é preciso um outro trabalho, que é popularizar os processos da ciência, como a ciência funciona, como é feita, como o cientista trabalha. Esse processo nunca foi feito e precisa acontecer. Porque tão importante quanto as pessoas apreciarem a ciência, é elas entenderem como ela é feita. É entender o processo, não os detalhes. A gente não precisa que as pessoas entendam como se desenha uma vacina no laboratório, mas a gente precisa que as pessoas entendam como uma vacina é testada, quando um cientista publica um paper, o que isso quer dizer, como publicou e onde. A gente teve, ao longo da pandemia, muita informação sobre ciência que ficou mal digerida porque as pessoas não estão acostumadas com o processo.

Jefferson Rudy/Agência Senado Natália Pasternak durante participação na CPI da Pandemia, em junho de 2021

Natália Pasternak durante participação na CPI da Pandemia, em junho de 2021

É preciso explicar no churrasco da família, pro 'tiozão do pavê', por que você sabe que as vacinas são seguras e eficazes. Indicar artigos que expliquem bem, questionar os lugares com informação não confiável.

Natália Pasternak

Você escreveu o livro "Contra a Realidade" com o jornalista Carlos Orsi, em que defende que o negacionismo, em geral, é motivado não pelos fatos em si, mas pelo que eles representam e por suas consequências. Como a ciência pode combater algo que não pertence a ela?

A maior contribuição que o nosso livro trouxe foi justamente trazer essa distinção de que os responsáveis pela propagação do negacionismo são motivados pela consequência política e ideológica. Se um gestor público aceita que o aquecimento global é real, ele tem que agir de acordo com esse conhecimento: pensar em produção de energia limpa, em créditos de carbono, o que fazer com a produção animal.

Já as vítimas do movimento negacionista não são motivadas pelas consequências. São pessoas que acreditaram e foram enganadas. Para essas pessoas, a gente deve esclarecimento. Precisa esclarecer de onde vêm a evidência científica e também a motivação. É ingenuidade achar que só apresentar a informação científica será suficiente.

Em primeiro lugar, a vítima [do negacionismo] caiu porque tem um envolvimento emocional com o movimento, não é só intelectual. É emocional, ideológico, político, às vezes até religioso. É preciso esclarecer os fatos científicos e também como o movimento negacionista funciona. Não adianta mostrar que é mentira, você tem que explicar como aquela mentira foi construída, e o que aquele movimento está ganhando com essa mentira. É claro que não é fácil.

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Como combater o negacionismo no nosso dia a dia? Como podemos levar ciência a mais pessoas?

O que a gente pode fazer é multiplicar a mensagem. A melhor maneira de comunicar a ciência é no dia a dia, nos grupos de WhatsApp, nos almoços de domingo. Esses são os lugares onde cada um, num exercício de cidadania responsável, deve ser multiplicador da mensagem da ciência.

Esse é um papel extremamente importante que as pessoas deixam de fazer porque esquecem ou porque não querem ser o 'chato'. As pessoas subestimam o poder do boca a boca. E principalmente dentro de ambientes familiares e de amigos. Do mesmo jeito que a desinformação se propaga fácil nesses grupos, você também pode ser quem compartilha a informação, dentro de um ambiente onde a confiança das pessoas já existe.

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