Tem também a cultura da eficiência, com as fundações empresariais buscando projetos, por exemplo, com alunos acima da média para investir neles e mostrar no final do ano que atingiu suas metas. Isso não está deixando para trás quem mais precisa, que são os alunos abaixo da média?
As pessoas gostam de ilhas de excelência, e temos várias em escolas, em redes, em vários setores. É muito mais difícil achar apoio para aqueles com mais dificuldade, com menor nível de aprendizagem, com maior vulnerabilidade. Demora mais tempo, exige mais recurso, é mais complexo. Nesse caso, tanto os políticos quanto os empresários estão dando mais de seu recurso, que tem um limite, para quem pressiona menos, para uma camada que nem tem voz. E, no final do ano, as fundações têm que prestar contas em um relatório.
Muitas fundações e empresas não sabiam atuar na área social. No início dos anos 1990, elas precisaram muito das organizações intermediárias, das ONGs mais robustas para desenvolver seus projetos. Com o tempo, essas fundações foram formando seus próprios quadros. Isso é mais fácil para elas, porque controlam seus funcionários, controlam os números, não precisam gastar horas dialogando, fazendo concessão. Você atua nos projetos do seu jeito, mais empresarial, mais focado. Além do mais, às vezes a ONG tinha um nome tão famoso que aparecia mais que a marca das empresas.
Até pouco tempo, o Brasil, como um todo, não enxergava a desigualdade. Com isso, de 20% a 30% das crianças não saíram do nível abaixo do adequado de aprendizagem. Isso é gravíssimo. As organizações perderam capilaridade das necessidades e deixaram de inovar muito, perderam essa escuta, esse olhar. A ênfase na eficiência mudou um pouco com a pandemia, e a minha esperança é que continue assim. Temos que prestigiar mais a equidade e não a eficiência, e trazer todos para o mesmo patamar.
Na pandemia, as empresas perceberam que não chegariam no ponto se não existissem essas organizações de base ou intermediária, que de alguma forma eles tinham deixado de apoiar. As fundações voltaram a fazer articulações e parcerias com organizações de base. Voltou a capilaridade, que eu espero que continue, para não perder essa conexão das fundações com o campo social.
Houve também mais parcerias horizontais entre as fundações de empresas. Sempre tinha um discurso de "precisamos fazer mais coisas juntos" entre as fundações, e isso acabou acontecendo agora na pandemia. E não acontecia por essa mesma lógica que as fundações deixaram de atuar com as ONGs: porque é mais cansativo, custoso, burocrático, um cede daqui e outro, de lá, faz reunião, chama todo mundo. Era essa a lógica da eficiência e do curto prazo.
Mas a pandemia mostrou que, se as fundações não fizessem os projetos juntos, o impacto seria zero, cada um trazendo uma migalha porque o problema era muito grande. Eram necessárias parcerias horizontais e verticais, juntar esforços, para ir mais rápido. A agilidade e a desburocratização é possível e tem um bom resultado, sem perder transparência e controle. Um precisava do outro para ter mais impacto e precisava da ONG para chegar nos territórios. Foi o oposto da lógica anterior. Essa inversão pode ser boa e deve continuar.
Uma das constatações da pandemia é que o ensino à distância aumentou ainda mais as desigualdades dentro do ensino no Brasil. Dá para diminuir esse abismo se considerássemos a banda larga como um direito do cidadão? Como vê essa questão?
Não está certa a falta de uma política pública na área. A gente só vai conseguir alguma escala com algum acordo com as empresas de telecomunicação. A boa banda larga simplesmente não existe nas periferias. As pessoas não conseguem carregar um vídeo. Com várias pessoas em uma casa, a internet cai.
Ações pontuais podem ser feitas, como a da Cufa [Central Única das Favelas, em acordo com a Tim para levar banda larga para 2 milhões de pessoas em bairros carentes]. Esse acordo surgiu da necessidade das pessoas da favela, mas vai depender de política pública para ter uma escala nacional.
A internet foi mais um fator de agravar desigualdades. Isso me angustia muito, porque as pesquisas mostram que mais de 5 milhões de alunos não receberam nada de aula durante a pandemia. Um negócio totalmente diferente das escolas privadas. Nas públicas foi muito precarizado. E não sabemos quando vai terminar essa pandemia. Não sabemos se em 2021 vai ser normal. Provavelmente não desde o começo. É dramático. Mostra que o Brasil precisa valorizar muito mais a educação.
Como vê a atuação do governo federal nisso tudo? E as tentativas de tirar o orçamento da educação para criar o programa Renda Brasil?
Quantas vezes o Paulo Guedes [ministro da Economia] explicitamente quis tirar o dinheiro da educação? Nos bastidores, deve ser o tempo todo. Tirar dinheiro do Fundeb [Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica] é um absurdo. Existe neste governo uma grande desresponsabilização do Estado nas políticas públicas. E uma atribuição às famílias por essa responsabilidade. É muito claro que a Damares Alves [ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos], agora mais do que nunca, quer implantar o homeschooling, porque aí a responsabilidade não é do Estado, é da família. É um retrocesso enorme em um país como o Brasil. Porque não são os alternativos que eu conheço que vão adotar isso. A população das periferias é que vai ser atingida.
A gente não tem uma política de educação. Parece até que eu estou inventando, que é exagero. Mas foi o próprio ministro [Milton Ribeiro] que falou que não é responsabilidade do MEC. Como assim? Ainda bem que tem um Conselho Nacional de Educação que dá alguma normativa. Fica cada governador, cada prefeito por si. É inacreditável. É desesperador. Uma fragmentação muito grande. As fundações que atuam fortemente na educação se uniram, criaram plataformas, criaram materiais e estão fazendo articulações com secretários municipais e estaduais.