Marchando para viver

Nilma Bentes ajudou quilombolas a terem direito constitucional a terras, mas vê luta como 'cócegas no poder'

Guilherme Henrique Colaboração para Ecoa, de São Paulo Nay Jinknss/UOL

Se você não está disposto a trabalhar por isso, então não se meta
Nilma Bentes, agrônoma

Uma das principais lideranças da luta de mulheres negras no país, a agrônoma de 73 anos oscila, ao longo da conversa com Ecoa, entre a disposição combativa de querer fazer mais e o cansaço pelos 40 anos de luta. "Vou aguentando a vida na marra. Costumo dizer que sou uma sobrevivente de mim mesma", afirma.

No meio do passeio por sua história, Nilma não esconde que a sensação de inadequação perante o mundo e a violência premente moldaram sua personalidade. "Nunca fui uma pessoa sã. Você não sabe se é discriminada por ser mulher, negra ou homossexual. Fato é que tudo isso precisa ser varrido da cabeça para que possamos continuar nessa luta", diz.

Se o desconforto é companhia inescapável durante a trajetória, Nilma fez dele um propulsor para levar o movimento negro a considerar outras realidades, como a do Norte do país e das mulheres.

Assim, participou da formulação de propostas para a Constituição de 1988 que contemplassem quilombolas e outras comunidades originárias e idealizou a Marcha das Mulheres Negras, que em 2015 levou cerca de 50 mil mulheres ao Congresso Nacional. Apesar do longo histórico de mobilização, ela não vê outro caminho a não ser marchar em frente.

Acredito que o movimento negro ainda não consegue dialogar com toda a população. Por isso, também o considero pequeno diante da quantidade de gente que se considera preta e parda no país. Até o momento, só fizemos cócegas no poder

Racismo se aprende em casa

Deborah Faleiros/UOL

Nilma nasceu, cresceu e se engajou na militância em Belém (PA). Passou a infância e adolescência mudando de casa. Devido à tuberculose do irmão mais velho, a família ia "aonde falavam que o ar era melhor", diz. Quando o jovem morreu aos 18 anos, fixou-se no Umarizal, no centro da capital paraense.

Ex-trabalhadores de uma fábrica de castanhas, o pai motorista e a mãe lavadeira criaram os filhos como "a maioria das famílias negras de Belém", diz Nilma, para resumir uma vida cheia de dificuldades. Dos oito irmãos, só três estão vivos.

A ativista lembra que as primeiras lições sobre o racismo foram aprendidas no seio familiar. A avó materna era branca e não gostava de negros. Por isso, a mãe ensinou a evitar contato com a avó para não ter "aborrecimento". Saber desde cedo que a discriminação pode estar tão próxima a ponto de ser íntima faz Nilma refletir. Revendo seu passado, ela pensa na paralisia causada pela constante sensação de não pertencimento.

Era atleta na faculdade e reconhecida por isso, mas sempre me coloquei em segundo plano, porque sabia que o racismo ia me alcançar. Isso é autoestima (...) Por ter sido avisada desde criança [sobre o racismo], me questiono se isso não se tornou um obstáculo ao meu pensar livre. Se minha mãe não tivesse me alertado, eu poderia 'apanhar' da vida, mas talvez tivesse feito coisas diferentes. É até injusto dizer isso agora, ela fez o possível para nos proteger

Nilma Bentes, agrônoma e ativista do movimento negro

Um clarão na floresta

Deborah Faleiros/UOL

Moradora de Belém, Nilma vai a outras cidades do estado como Santarém e Itaituba para formações políticas e palestras. Em cada visita a uma região diferente, a percepção sobre a degradação ao meio ambiente aumenta. "[A mata] ainda é grande, mas já foi muito maior."

Não é apenas impressão. Dados do Imazon (Instituto do Homem e Meio Ambiente Amazônico) mostram que o Pará liderou o desmatamento no país na Amazônia Legal nos meses de agosto e julho. Só em agosto foram 638 km² de floresta devastada, equivalente ao território da cidade de Itu, no interior de São Paulo, onde moram 175 mil pessoas.

Nilma conhece essa realidade não só por viver no Pará, mas por ter visto a expansão econômica que sustentou o desmatamento na região. Por 25 anos, ela foi analista de projetos do Banco da Amazônia. Entrou na instituição em 1971, assim que concluiu a faculdade na Universidade Federal Rural da Amazônia.

Olhando para trás, tenho um sentimento de culpa pelo que fiz e o que não fiz no banco

Durante a ditadura militar (1964-1985), o discurso nacionalista de integração da Amazônia ao projeto desenvolvimentista passava pela ocupação do território. Como esteio desse pensamento, ganharam protagonismo instituições oficiais como o Banco da Amazônia e a Sudam (Superintendência do Desenvolvimento da Amazônia), criada em 1966.

Até se aposentar em 1996, Nilma conta que não teve vida fácil. "Não sei como fiquei tanto tempo lá. Os diretores do banco e os empresários me odiavam. Chegou um período, nos anos 1980, que eu fiquei escanteada. Não analisava projeto grande, porque sabiam que ia dificultar. Também não pegava projetos dos pequenos produtores, porque eu ajudava com recursos."

A porra-louca no grupo com estilo capoeira

Deborah Faleiros/UOL

Diferentemente do que aconteceu no Sudeste, a articulação negra em Belém não foi influenciada pelos movimentos norte-americanos, conta Nilma. "Aqui chegava muito pouco. A gente sabia das figuras de Malcolm X (1925-1965) e Martin Luther King (1929-1968) só pelo nome."

Para ela, a organização de ações em defesa do negro se deu entre pessoas que compartilhavam muito mais da raiva do que de estratégia ou planos de ação. A referência do que fazer era nacional. Uma delas foram os atos para a criação do Memorial de Zumbi dos Palmares na Serra da Barriga, em Alagoas, promovidos pelo político e intelectual Abdias dos Nascimento (1914-2011), nos anos 1980.

Um dos colegas de Nilma, Brasilino Santos Correa, foi a uma das manifestações e voltou a Belém inspirado. Compartilhou tudo com Nilma, Zélia Amador de Deus, futura professora da Universidade Federal do Pará, e Felisberto Damasceno, futuro assistente de gabinete da Câmara dos Deputados. A partir daí, fundaram o Cedenpa (Centro de Estudos e Defesa do Negro do Pará).

Correa deixou a organização em seguida. Hoje, ele integra a Comissão Executiva do Plano da Lavoura Cacaueira, instituição pública de pesquisa do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento.

Arquivo pessoal Arquivo pessoal

Cada integrante do grupo atuava em uma vertente de acordo com suas afinidades pessoais. "Zélia estava envolvida com questões culturais, e Felisberto, por seu vínculo com o PT já nessa época, discutia questões políticas. Eu era mais porra-louca, me metia em tudo."

Nesse período de formação, o grupo ainda discutia qual seria o foco de atuação. "Surgimos para fazer denúncia. Sempre achei que deveríamos fazer uma intermediação que ajudasse o negro a tornar-se negro, colocá-lo em contato com aspectos culturais", explica. Decidiu pelos dois.

Na cultura, atuou com o bloco afro Axé Dudu (força negra, em ioruba) e oficinas de violão e pandeiro para crianças. Na política, promoveu encontros com mulheres quilombolas e comunidades negras rurais no Pará, além de publicar cartilhas para que identificassem o racismo em 1986.

Nós não seguimos metodologia de partido, igreja ou sindicato. Não somos nem ONG nem movimento social. Nossa metodologia é a capoeira: sobe, agacha, levanta, esquiva, ataca e recua. A gente é algo que não sei definir. É o que dá pra ser

Nilma Bentes, agrônoma e ativista do movimento negro

Com o tempo, o grupo passou a executar o que Nilma chama de "ações na ponta", ou seja, ajudar na formatação de leis contra o racismo e a ter um vínculo estreito com o poder público. No nível federal, o Cedenpa se reuniu com o MNU em Brasília para elaborar ideias a serem inseridas na Constituição, promulgada em 1988.

Uma delas foi a salvaguarda constitucional para as comunidades quilombolas, que até aquele momento não tinham amparo legal. A partir da articulação, a garantia à existência dessas populações originárias foi prevista no artigo 68:

Aos remanescentes das comunidades dos quilombos que estejam ocupando suas terras, é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes títulos respectivos
Artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição Federal

No nível estadual, o Cedenpa articulou a inclusão na Constituição do Pará (1989) dispositivos de combate ao racismo em 1989. Em 2001, conseguiu que a Secretaria de Educação de Belém criasse um Grupo de Trabalho para superar o racismo no ambiente das escolas municipais.

A atuação do grupo também é internacional. Em 2001, ela esteve em Durban, na África do Sul, para o III Conferência Mundial contra Racismo, um marco na luta contra a discriminação racial no mundo. Hoje, o Cedenpa opera com cerca de 60 pessoas e conduz projetos desenvolvidos financiados com verba de agências de cooperação nacionais e internacionais.

Às vezes, é até complicado ficar publicizando muito, porque aí vamos atrair mais trabalho

Caminhando contra racismo

Deborah Faleiros/UOL

"Eu ia fazer aquela marcha com 100 mil ou 100 mulheres", afirma Nilma. O tom pode parecer impositivo, mas, enquanto diz a frase, a ativista exibe um sorriso que demonstra o orgulho de quem bateu o pé para que mulheres negras, quase sempre inviabilizadas, ganhassem protagonismo na luta contra o racismo no Brasil.

Resultado: a Marcha das Mulheres Negras reuniu cerca de 50 mil pessoas ao Congresso Nacional em novembro de 2015.

Nilma diz que, mais do que levar milhares de mulheres às ruas, fundamental foi o processo de construção que durou quatro anos. "Em alguns momentos achei que não fosse possível." A coordenação em torno da AMNB (Articulação de Organizações de Mulheres Negras Brasileiras) envolveu debates, rodas de diálogo, seminários, oficinas e atividades culturais para criar um ambiente de amálgama social necessário ao ato.

As idas e vindas resultaram em mudanças, que não pouparam nem o nome da Marcha. "Eu queria colocar 100 mil mulheres, mas fui convencida. Poderia ser ruim se não chegássemos a esse número."

Outro ajuste foi a inclusão do termo "Bem Viver", filosofia que valoriza a recuperação de saberes indígenas em substituição ao desenvolvimentismo convencional. A ideia está centrada em uma nova concepção de vida que respeite a natureza e o bem comum.

Zaika Produções / Coalizão Negra por Direitos Zaika Produções / Coalizão Negra por Direitos

No fim, aquele exército de mulheres foi para a rua como a "Marcha das Mulheres Negras contra o Racismo e a Violência e pelo Bem Viver". Nilma conta que foi criticada por outras militantes negras por não ter utilizado preceitos da filosofia africana, como o Ubuntu, termo que congrega conceitos humanísticos como solidariedade, cooperação, respeito, acolhimento e generosidade.

"Eu não conhecia o Ubuntu. A escolha do Bem Viver foi motivada porque estamos na região Norte, que tem grande proximidade com povos indígenas da América Latina, e pelos encontros que tivemos no Fórum Social Mundial, em Belém, em 2009. Depois disso, fui estudar", diz Nilma, que conta ter lido textos do professor Wanderson Flor do Nascimento, que leciona filosofia africana na UnB (Universidade de Brasília).

Ainda que sob críticas, Nilma acredita que pautar o Bem Viver naquele momento significou deixar a luta menos urbana, algo que ela crítica nos movimentos progressistas brasileiros.

Uma parcela da esquerda não compreende essas nuances regionais. Às vezes é um pensamento até meio fascista, porque essas pessoas querem nos impor o que deve ser feito, desconsiderando nossa própria experiência

Nilma Bentes, agrônoma e ativista do movimento negro

As demandas do porvir 

Deborah Faleiros/UOL

As mobilizações em torno da marcha serviram para escancarar o machismo que há no movimento negro, conta Nilma, para quem a mobilização foi um marco.

"Muitos coletivos de mulheres negras foram criados e se constituíram por esse motivo [machismo]. É duro dizer, mas o homem negro se alinha mais pelo machismo do que pelo racismo. Existe uma dor, quase rancor, porque nossos companheiros não são tão solidários como gostaríamos que fossem."

Outras iniciativas também se espalharam pelo país, como a marcha de São Paulo, em 2017. "Há uma estética maravilhosa, parece um desfile de moda. Ao mesmo tempo, essas jovens são muito sérias e fazem tudo com muito cuidado. A manifestação extrapola a militância e tem um papel fundamental para a autoestima", diz.

Nilma diz que o futuro do movimento negro precisa estar alheio à "fogueira das vaidades" e priorizar uma construção coletiva, ainda que a ideia tenha limitações. "O MNU (Movimento Negro Unificado) já nasce utópico. É uma pretensão achar que o negro é igual e que vai ser unificado."

A ressalva alcança também a Coalizão Negra por Direitos, que reúne mais de 200 articulações, entre elas o Cedenpa e o MNU. A militante elogia membros da organização, como o historiador Douglas Belchior, um sujeito, diz, de "muita paciência". Mas diz que a Coalizão não pode aderir a partidos políticos. "Se isso acontecer, acaba", sentencia.

Questionada sobre a possibilidade de uma marcha nacional semelhante à de 2015, Nilma afirma que a ideia tem povoado sua mente.

Acho que está na hora de fazermos algo, mesmo com a pandemia. Atacar o sistema de alguma forma. Precisamos encontrar uma forma de organizar os desejos de todo mundo e dar um recado mostrando a força das mulheres. Nada começa quando inicia nem termina quando acaba. Tudo é processo

Nilma Bentes, agrônoma e ativista do movimento negro

CABEÇAS NEGRAS

Deborah Faleiros/UOL

Quem são as pessoas que colaboraram para a formação da consciência negra no Brasil? Criado há 10 anos, o Dia da Consciência Negra tem se consolidado como um momento de combate ao racismo e também de valorização da cultura afro-brasileira. De personalidades do cenário nacional e internacional a nomes que ficaram de fora dos holofotes, fato é que muita gente colaborou para a construção não só da data, mas para a vivência da consciência negra na prática.

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