Eu sou, porque nós somos

Evidenciada na pandemia, noção de comunidade sempre foi central para famílias negras, faveladas e periféricas

Paula Rodrigues De Ecoa, em São Paulo

Carro de som para conscientizar a população. Voluntários dedetizando as ruas. Pessoas se organizando para arrumar cestas básicas e distribuí-las. Incontáveis vaquinhas online para arrecadar fundos. Presidentes da rua que monitoram casos suspeitos de Covid-19. A lista é extensa. Esses são alguns dos exemplos do que vem sendo feito nas favelas do Brasil desde março deste ano. Tudo de forma autônoma e coletiva.

A pandemia, que escancarou até para quem nunca quis ver os problemas sociais e raciais do país, também trouxe para o centro da conversa e de manchetes de jornais o que foi chamado de "solidariedade", nada mais do que o combustível que favelados e faveladas têm usado para tentar frear ou amenizar as consequências brutais do novo coronavírus em uma população de cerca de 13,6 milhões.

Mas essa não é apenas uma questão de solidariedade. Não dá para resumir em solidariedade o trabalho de pessoas como Buba Aguiar, Raul Santiago, Rene Silva, Anna Karla Pereira, Jota Marques, Christianne Teixeira, Gizele Martins, Gilson Rodrigues, Celso Athayde, Cleide Alves e tantos outros que fazem partes de coletivos que estão na linha de frente contra a Covid-19 nas favelas. É isso, mas não só.

Trata-se de política autogestionada que não nasceu ontem. É sobre transformar em ação, em força organizacional, um traço herdado de povos negros escravizados que, aqui no Brasil, lutaram para reconstruir laços comunitários e familiares perdidos no momento em que foram obrigados a deixar seus países de origem no continente africano em diversos momentos ao longo da história.

Pouca coisa mudou em relação à falta de apoio e ofertas do Estado a essa população, forçada a construir laços em espaços que hoje chamamos de favela. Apesar de nada homogêneas, essas favelas têm sua maior característica sociocultural e ancestral intacta: a valorização das alianças, da comunidade, o entendimento de que viver é um ato que se faz apenas no coletivo. É o fundamento básico africano do ubuntu, ou seja, "eu sou, porque nós somos".

Ou como diria o rapper paulistano Emicida na música "Principia":

"Rodeio o globo, hoje tô certo de que todo mundo é um.
E tudo, tudo, tudo, tudo que nóis tem é nóis."

Meu pai me falava muito isso: a gente tem que ser inteligente porque a gente é preto, pobre e mora no Coroadinho. Você tem tudo para serem racistas com você, então prova pra eles que você é melhor. Foi isso que aprendi aqui na quebrada. Mas também que todo mundo se ajuda, não pode deixar para trás. E se alguém ficar para trás, volta todo mundo para socorrer

Christianne Teixeira, líder comunitária de Coroadinho (MA) e membro do G10 Favelas

Não consigo me ver fora dessa forma de vida. É sobre minhas memórias de infância quando minha tia organizava ações sociais de distribuição de cesta básica e enxoval de bebê enquanto tomava conta de mim para minha mãe e meu pai trabalharem. É sobre hoje compreender que não existe real emancipação enquanto meus pares estiverem sob condições de subsistência

Anna Karla, cofundadora da Frente Favela Brasil (PE)

A história das favelas é feita de apoio mútuo. Nossa música, memória, comunicação, educação... Tudo é feito pela coletividade, que é a base da nossa ancestralidade. Antes de favela, era quilombo. E antes de quilombo temos outras várias histórias marcando a nossa história com esse trabalho coletivo que vem dos nossos povos negros.

Gizele Martins, jornalista e mestre em educação, cultura e comunicação em periferias urbanas. Participa do Maré 0800 e da Frente de Mobilização da Maré

As falas acima são de três mulheres. Negras. Faveladas. Uma do Maranhão, outra de Pernambuco e, por fim, do Rio de Janeiro. Todas são exemplos de como a produção em rede de saberes e vivências das favelas consegue, mesmo com a histórica ausência de ofertas de equipamentos e serviços do Estado, gerar frutos, principalmente durante o atual cenário de pandemia. Desde o começo da quarentena, surgiram ações de diversos coletivos que trabalham para, de alguma forma, amenizar o sofrimento da população.

"Somos nós, o povo preto e periférico, mais uma vez o mais atingido", diz Anna Karla, que tem sua posição sustentada pelos números apresentados por pesquisas, como a realizada pelo NOIS (Núcleo de Operações e Inteligência em Saúde) da PUC-Rio Janeiro.
Com base nos dados do Ministério da Saúde, analisou-se que a doença mata 55% dos negros e 38% dos brancos internados no Brasil. Além disso, só em São Paulo, 20 bairros com mais mortes por Covid-19 estão nas periferias. Nesta pandemia, quem morre mais tem cor e CEP definidos.

"Não tem sido fácil desde o primeiro momento, quando a gente constatou que não seria só uma gripezinha. A gente passou a observar outras favelas, como a Rocinha, Heliópolis... Observando muito o Gilson, pessoas de referência", conta Christianne Teixeira, líder comunitária de Coroadinho (MA) e membro do G10 Favelas. O Gilson citado é Gilson Rodrigues, morador e Presidente da União de Moradores e Comerciantes de Paraisópolis, em São Paulo.

Junto à associação de moradores, ele desenvolveu uma tecnologia organizacional dentro da quebrada que contava com 420 voluntários que distribuem cestas básicas e são responsáveis por dar treinamentos de primeiros socorros. Cada um cuida de 50 casas dentro de Paraisópolis. Mas esse é só um dos casos.

O Gabinete do Alemão, a Frente da Cidade de Deus e a Frente de Mobilização Maré (todos no Rio de Janeiro), os carros de som para conscientizar a população em Heliópolis (SP) e em Aglomerado da Serra (BH), o #MapaCoronaNasPeriferias criado pela galera do Favela em Pauta em parceria com o Instituto Marielle Franco. Parece até injusto começar a citar alguns sem ter espaço para citar todos, mas esses são alguns dos exemplos de como o coletivo tem sido uma das principais ferramentas encontradas para lidar com os problemas da pandemia.

Isso tudo está mais visível agora porque nesse grau de confinamento, a experiência que existe nas favelas chama muito mais atenção. Cada vez mais a importância das relações sociais se faz presente. E tem outro ponto: uma grande presença da juventude. É uma juventude que se mobiliza em uma perspectiva de domínio do espaço público, domínio da rua. Um processo de empoderamento da juventude negra que se manifesta por meio de ações muito mais mobilizadoras.

Jailson de Souza e Silva, geógrafo e criador do Observatório de Favelas

Quando o morro descer e não for Carnaval

O termo "comunitário" é frequente quando pensamos nos espaços que formam os cidadãos de uma favela. São os próprios moradores que criam canais como jornais, rádios, escolas e cursinhos voltados a atender a demanda do local, na tentativa de diminuir o abismo da desigualdade entre quem mora no morro e quem mora no asfalto.

"Comecei a minha militância quando entrei no pré-vestibular comunitário na Maré. A partir dele, comecei a circular a favela inteira e a conhecer moradores e moradoras. Entender e perceber a inteligência da população da qual faço parte, das identidades, da cultura, mas também da falta de direitos. Foi na comunicação comunitária que comecei a formar minha identidade enquanto mulher, parte de um grande coletivo que é a favela", conta a jornalista Gizele Martins. Foi lá que ela conheceu e começou a trabalhar no jornal O Cidadão, publicação independente que desde 1999 cobre histórias do Complexo da Maré, no Rio de Janeiro.

Os registros dão conta de que a primeira favela do Brasil é o Morro da Providência, situada no Rio de Janeiro e criada em 1897, resultado da ocupação de dois grupos: em sua maioria os negros recém-libertos e também soldados que voltaram da Guerra de Canudos (1986-1987). Toda essa noção de criar laços comunitários, porém, é mais antiga.

É importante assinalar que os laços comunitários foram formados nas senzalas em meio a uma diversidade de grupos étnicos. Foram formados também pela necessidade de encontrar saídas e alternativas à vida escrava. No seio dessas comunidades, os escravos puderam preservar grande parte da cultura africana e transmiti-la aos filhos e netos.

Trecho do livro "Uma História do Negro no Brasil", de Wlamyra R. Albuquerque e Walter Fraga Filho

Quando sequestrava-se africanos para servirem como escravos aqui, não se levava em consideração que essas pessoas possuíam parentescos, rivalidades culturais, etnias ou nações diferentes umas das outras -- muitos não falavam nem a mesma língua. Mesmo assim, foram obrigados a viver juntos. E recriar, também juntos, seja na religiosidade com o candomblé, seja com o samba ou a capoeira e tantas outras manifestações afro-brasileiras, algum tipo de comunidade para conseguirem suportar os horrores da escravidão.

No livro "Uma história do negro no Brasil", assinado com o historiador Walter Fraga Filho, Wlamyra afirma que "a família cativa constituiu um dos pilares sobre os quais se formaram as comunidades de senzala."

"A gente tem que pensar que isso foi construído ao longo de muito tempo, inclusive no próprio continente africano. O modo como essas populações se reuniam e a própria noção de família que não era uma noção ocidental e católica, com um pequeno núcleo só com pais, mães e filhos, mas sim mais expandida, que engloba diversos parentes, de sangue ou não, incluíam os vínculos de vizinhas, religiosos, vínculos do espaço de trabalho...", conta Wlamyra. A própria criação da religiosidade afrobrasileira com o candomblé contempla essa concepção.

"No candomblé, o negro reinventa vínculos de parentesco que não são consanguíneos, mas são vínculos de parentescos que se mostram tão fortes quanto. Isso é uma forma de autopreservação incrível. De sobrevivência. Tanto de sobrevivência da cultura, como econômica, financeira... É uma forma de se salvar no dia a dia", diz Wlamyra.

A transmissão da importância dessa vivência em redes esteve presente em vários momentos da história desses negros escravizados. Foi um pilar para construir planos de fugas que dependiam da solidariedade de outros escravizados para funcionar, e também para construir formas de resistência como comunidades quilombolas.

Com a abolição oficial, em 1888, porém, após toda a festa de comemoração nas ruas brasileiras, que o escritor Machado de Assis descreveu como o "o único delírio popular que me lembro de ter visto", grande parte dos que foram trazidos para cá para realizarem trabalho escravo tiveram que encarar uma nova realidade: estavam sem trabalho e sem moradia.

Enquanto alguns voltavam para trabalhar nas fazendas que anteriormente os escravizara, outros decidiram tentar a vida de diferentes formas e em outros lugares.

Para contornar o problema da falta de moradia, surgiram os cortiços nos centros de cidades como Rio de Janeiro e São Paulo, e que logo sofreriam uma ostensiva série de ataques vinda da imprensa da época e de agentes médicos que elegeram esse tipo de moradia como a vilã para a crise sanitária causada pela pandemia de Gripe Espanhola em 1918.

A campanha contra fez com que esses espaços fossem, em grande parte, exterminados. A única saída para a população recém-liberta foi, mais uma vez, reinventar-se e procurar novos lugares para ocupar. A construção das novas casas aconteceu pelos próprios moradores, que continuariam sem reparação do Estado.

Wlamyra R. Albuquerque e Walter Fraga Filho descrevem as moradias, criadas à semelhança dos modelos de senzala e casas de Canudos, como "barracos separados, construídos com paredes de barro batido e cobertas de sapê ou telhas de cerâmica. Eram construídas pelos próprios cativos. Nessas habitações, eles tinham a oportunidade de organizar o espaço e dotá-lo de elementos culturais aprendidos na África."

Para o geógrafo e criador do Observatório de Favelas, Jailson de Souza e Silva, é possível dizer que as favelas, antes de tudo, foram se formando por meio da memória oral da história de negros que, antes de serem favelados, eram escravizados. E é a coletividade que se apresentou desde o começo com a construção comunitária das casas e que se apresenta como o maior traço sociocultural da população que vive nesses espaços.

Certamente essa forma de convivência nas favelas deriva dessa ancestralidade. É a grande característica que permite que esses espaços tenham sobrevivido historicamente. A necessidade gera essas formas mais coletivas de viver. Você precisa do outro para existir. Você sempre precisa de laços comunitários para ocupar o espaço do dinheiro que você não tem, dos recursos necessários que a classe média tem. O favelado precisa de outros mecanismos que gerem efetivamente a solução para seus problemas.

Jailson de Souza e Silva, geógrafo e criador do Observatório de Favelas

E ter a consciência que o pobre tem seu lugar

A vida do negro que deixou a senzala foi, e ainda é para seus descendentes, uma eterna luta para se provar como cidadão. Tenha sido o quilombo, o meio rural ou o urbano o destino pós-abolição, a luta por um espaço para poder exercer seus hábitos, costumes, cultura, religião e relações pessoais se manteve contínua. E aqui entra a importância da territorialidade para a construção dessa coletividade.

Todo tempo existe uma força de destruição para acabar com a territorialidade dessas pessoas, o que gera um eterno ciclo: se destrói a territorialidade expressa em seus países de origem, em senzalas, quilombos e cortiços e, então, essas pessoas precisam encontrar novos territórios. E são as favelas os territórios mais recentes encontrados para reproduzir tais laços comunitários. Não é o espaço o motivo da existência dessa noção de comunidade, mas é a partir dele que se tem a possibilidade de criar esse conceito e, na prática, fortalecê-lo.

No livro "Quilombo, favela e periferia: a longa busca da cidadania", Lourdes Carril, geógrafa com ampla pesquisa sobre segregação espacial, social e racial urbana, relaciona a territorialidade dessas favelas à condição de cidadania, poder civil e à base de direitos. "O território é a partir de onde você negocia e luta com o outro. É onde você se reconhece como sujeito territorialmente expresso e isso faz com que saibam quem é você e como você pode também ser ator de um processo de reivindicações, de demandas, necessidades", diz.

Ela explica que tirar das favelas a noção de território, como muitas vezes agentes do Estado tentam fazer com desapropriações, significa justamente deixar as pessoas com uma sensação de vazio, como se, mais uma vez, uma parte da cidade fosse negada a elas. Ou seja, o favelado não pode pertencer ao centro, mas também não pode pertencer à periferia. Logo, a mensagem passada é que ele não deveria pertencer a lugar algum na construção dessa cidade.

"Eu percebi que o território é algo que empodera. Causa o sentimento de ligação com um determinado lugar que não é só concreto, é um lugar em que se estabelece ligações. Como a gente vive em um mundo em que essa ligação de território é necessária, o não pertencimento, que também inviabiliza essas relações em rede, leva a uma sensação de desenraizamento, a uma fragmentação, uma fragilidade de todas as formas, social, política e econômica", afirma.

A lógica do condomínio

O fato é que o ser humano não vive sem constituir comunidade. Elas existem em todas as sociedades. Como explica o psicanalista Christian Dunker, "essa noção remete, então, a um passado comum". Se anteriormente na história essa concepção foi utilizada para unificar politicamente países europeus como Itália e Alemanha, aqui no Brasil ela assume um caráter mais ligado ao território, provocado pela "forte desigualdade entre proprietários e os que são propriedade dos proprietários".

Dunker, quando escreveu o livro "Mal-estar, sofrimento e sintoma: Uma psicopatologia do Brasil entre muros", desenvolveu uma linha de pensamento chamada de Lógica do Condomínio que, de certa forma, serve de contraposição ao modelo de comunidade explícito nas favelas. Se nas favelas a diversidade entre povos serve como motor para a criação de novos laços comunitários e novas formas culturais, nas chamadas classes médias, porém, é a diferenciação, o apreço pelo exclusivo e excludente que se mantém uma constante.

Quando o Brasil conseguiu se internacionalizar um pouco, começou a aparecer uma certa cultura do luxo que é apropriada de uma maneira muito curiosa, em que você compra coisas que não têm a ver com seu padrão e que são ostensivamente caras: carros, bolsas, viagens... Mas tem a função de causar inveja ao outro. Isso marca que eu sou diferente, que você não deve me confundir com outras pessoas. A gente pode entender um pouco disso na medida que estamos em uma sociedade em que ser confundido com o outro é ser confundido com alguém que pode ser objeto de violência, né?

Christian Dunker, psicanalista

Ao contrário do ocorre nas favelas, essas pessoas passam, então, a desenvolver um estilo de comunidade em que o narcisismo é o principal componente. Existe a comunidade, mas só entre iguais. O fruto disso, como define Dunker, é a explosão do narcisismo das pequenas diferenças, que se baseia na competição de um com o outro, na exibição do consumo.

"Só que isso cria uma visão de mundo onde a gente está sempre em culpa, tudo tem que ter uma utilidade, tudo tem que ser transformado em dinheiro e o princípio da acumulação só pela acumulação. Assim se forma o individualismo", completa Felipe Milanez, professor de humanidades da UFBA (Universidade Federal da Bahia).

Para Milanez, grande parte do problema que levou a cidade a ter as configurações atuais "é a mentalidade da conquista racista que subjuga o outro. Tem um problema do narcisismo europeu que surge aí, também de olhar e não se ver igual. Só que aí o que não é igual, não é diferente, ele é inferior. Isso acontece desde 1500."

Ele explica que, quando os portugueses chegaram ao Brasil, enquanto os indígenas tentavam ainda descobrir o que eram aqueles corpos brancos, em meio a questionamentos curiosos como se aqueles corpos apodreciam, por exemplo, os europeus queriam saber quem era o "rei", o poder maior que deveria ser dominado ou exterminado para que conseguissem colonizar aquela terra.

"Isso tem a ver com a cosmologia, a cosmovisão, que o [Ailton] Krenak tanto fala. Os indígenas não têm uma relação que seja antropocêntrica, em que não é só quem tem o formato humano que importa. Então as diferenças são sempre bem-vindas para eles. Uma árvore, um rio, um animal? Cada um possui uma parte fundamental na construção dessa comunidade", diz.

Mais especificamente nos condomínios, o privado invade o público em busca dessa comunidade ideal murada que separa um determinado jeito de se viver na cidade, em que as regras do condomínio são vistas até como maiores que as do Estado. Nesse processo de segregação, os muros ganham um papel fundamental.

"No princípio, eles tinham a função de produzir uma homogeneidade estética e de produzir uma definição da circulação de pessoas bem divididas em dois grupos: os proprietários e os funcionários que passam a vestir uniforme e que têm circulação pela porta de serviço", explica Dunker. No segundo momento, porém, eles se apresentam no imaginário como uma opção de separar a vida no condomínio dos sujeitos perigosos "de fora", vistos como pessoas que invadiriam o espaço e acabariam com sua sensação de segurança e felicidade.

Lembra: a rua é nóis

Apesar da Covid-19 ser devastadora, especialmente nas favelas, as ações de moradores têm conseguido reduzir um problema que poderia ser ainda maior. Muitos estão cansados, mas parar não é uma opção. Para conseguir entrevistar as líderes comunitárias foi difícil. O tempo era curto. Anna Karla, por exemplo, estava instalando pias com a Frente Favela Brasil nas ruas das favelas do Coque e Ibura, ambas em Pernambuco. Às 21h30, mandou uma foto em que aparecia ainda por lá, ao lado de uma pia que serviria para moradores lavarem as mãos nas ruas.

Se fossemos um país sério, o Ministério da Saúde mandaria uma equipe para entender o que está acontecendo nesses lugares. Para aprender com os exemplos de lá e entender como se pode fazer gestão em uma comunidade tão extensa em que as pessoas estão de fato empenhadas em garantir uma proteção coletiva. Elas, mais do que ninguém, sabem que saúde é uma questão coletiva. Entendem o conceito de saúde pública de uma maneira mais clara do que alguém que nunca viveu nessas comunidades.

Wlamyra R. Albuquerque, historiadora, professora e doutora em história social da cultura

Para a historiadora, é até lógico pensar que a melhor forma de encontrar soluções para certos problemas é envolvendo os mais afetados por eles. "Como você resolve o problema da água, por exemplo? Quem melhor para pensar sobre isso do que alguém que vive nas favelas e sabe como a falta de água afeta a comunidade inteira?", diz. A construção de um mundo melhor, então, passa por aproveitar os talentos que muitas vezes são desperdiçados por falta de investimento e oportunidade.

"Nosso desafio fundamental é como você constrói esses mecanismos de convivência para toda a cidade e não em territórios específicos", diz Jailson, afirmando que os centros urbanos precisam começar a olhar para a vida nas favelas como um espelho, com olhos de quem quer aprender aspectos como a sociabilidade, as estratégias, as invenções e a forma de construção de soluções coletivas.

A construção de um futuro que estimula a coletividade deve passar também por incentivo do Estado. "Tem que construir uma política pública que estimule a coletividade, que estimule a fraternidade, que estimule a capacidade de mediação de conflitos de uma forma que não seja a violência e a ignorância. Ninguém aqui vai conseguir viver sem o outro", afirma Wlamyra.

Favelismo é o ato de participar dessa grande família voluntária. É entender que só a cooperação é capaz de superar nossos problemas mais profundos. É uma nova possibilidade vinda de um lugar jamais imaginado: a favela. Quem é de favela e periferia entende como é viver no caos e superá-lo todos os dias. A filosofia africana é uma constante na minha vida, e acredito que só assim construiremos um país diferente. Ubuntu.

Anna Karla, cofundadora da Frente Favela Brasil (PE)

As ilustrações que você vê ao longo desta reportagem foram feitas por artistas negras, convidadas por Ecoa a refletir sobre o que para elas significa comunidade. O trabalho foi desenvolvido por Carol Passos, Juh Barbosa e Movimento1989.

+ Especiais

Paraíso racial

Ideia adotada no Brasil pós-escravidão ajuda a explicar racismo atual

Ler mais

Anielle Franco

Irmã de Marielle fala de empoderar mulheres negras e do ciclo da vida

Ler mais

Bela Gil

Chef argumenta sobre urgência de reforma agrária e alimentação para todos

Ler mais
Topo