Carro de som para conscientizar a população. Voluntários dedetizando as ruas. Pessoas se organizando para arrumar cestas básicas e distribuí-las. Incontáveis vaquinhas online para arrecadar fundos. Presidentes da rua que monitoram casos suspeitos de Covid-19. A lista é extensa. Esses são alguns dos exemplos do que vem sendo feito nas favelas do Brasil desde março deste ano. Tudo de forma autônoma e coletiva.
A pandemia, que escancarou até para quem nunca quis ver os problemas sociais e raciais do país, também trouxe para o centro da conversa e de manchetes de jornais o que foi chamado de "solidariedade", nada mais do que o combustível que favelados e faveladas têm usado para tentar frear ou amenizar as consequências brutais do novo coronavírus em uma população de cerca de 13,6 milhões.
Mas essa não é apenas uma questão de solidariedade. Não dá para resumir em solidariedade o trabalho de pessoas como Buba Aguiar, Raul Santiago, Rene Silva, Anna Karla Pereira, Jota Marques, Christianne Teixeira, Gizele Martins, Gilson Rodrigues, Celso Athayde, Cleide Alves e tantos outros que fazem partes de coletivos que estão na linha de frente contra a Covid-19 nas favelas. É isso, mas não só.
Trata-se de política autogestionada que não nasceu ontem. É sobre transformar em ação, em força organizacional, um traço herdado de povos negros escravizados que, aqui no Brasil, lutaram para reconstruir laços comunitários e familiares perdidos no momento em que foram obrigados a deixar seus países de origem no continente africano em diversos momentos ao longo da história.
Pouca coisa mudou em relação à falta de apoio e ofertas do Estado a essa população, forçada a construir laços em espaços que hoje chamamos de favela. Apesar de nada homogêneas, essas favelas têm sua maior característica sociocultural e ancestral intacta: a valorização das alianças, da comunidade, o entendimento de que viver é um ato que se faz apenas no coletivo. É o fundamento básico africano do ubuntu, ou seja, "eu sou, porque nós somos".
Ou como diria o rapper paulistano Emicida na música "Principia":
"Rodeio o globo, hoje tô certo de que todo mundo é um.
E tudo, tudo, tudo, tudo que nóis tem é nóis."