Uma bala voou sobre o ombro direito de Ângelo Rabelo e, no mesmo momento, o barco onde estava perdeu o controle. O militar não era o primeiro alvo. Naquele dia, ele navegava por um rio em Nabileque, no Pantanal, acompanhado por alguns policiais. Investigavam a movimentação estranha de barcos no local. Era uma operação de alto risco.

Por ali, caçadores se escondiam na mata para matar jacarés e vender seu couro para compradores na Europa, Ásia e Estados Unidos. Do fim dos anos 70 e até 1992, mais de 1 milhão de jacarés foram mortos anualmente, em uma batalha que deixou dezenas de mortos e feridos. Os caçadores eram chamados de coureiros e, além da caça ilegal, escravizavam e aliciavam moradores da cidade e ribeirinhos para o esquema.

Os coureiros se aproveitavam da localização para dominar o território. O Pantanal fica na fronteira entre Brasil, Bolívia e Paraguai. A área é alagada, pouco vigiada, e o deslocamento entre cidades pode levar dias em um barco. Em poucos anos, os contrabandistas transformaram a região em uma espécie de faroeste embaixo d'água.

Os paraguaios tornaram-se os coureiros mais temidos do Pantanal. "Os brasileiros e bolivianos se rendem. Os paraguaios atiram", dizia Rabelo para os recrutas. As armas Winchester 22 dos contrabandistas do Paraguai não eram as mais potentes, mas eles eram atiradores habilidosos. Para preservar a pele, os jacarés eram abatidos com um tiro exatamente entre os olhos, feito à distância, até mesmo à noite.

Rabelo conhecia o risco. Uma missão poderia terminar com prisões e apreensões ou com mortos e feridos. O hospital mais próximo estava a muitas horas de distância e um ferimento poderia causar uma morte a caminho do socorro.

"Vamos abordar e ninguém atira até eu mandar", ordenou Rabelo aos colegas de farda. Quando a embarcação se aproximou, ele sentiu a bala que voou sobre o ombro. Ao ouvir o tiro, suspeitou o que teria acontecido. Para despistar os policiais, os coureiros atiravam primeiro nos pilotos. Naquele dia, quem dirigia o barco era Walfrido Queiróz da Costa. O tiro acertou sua cabeça.

Um segundo disparo alvejou o ombro de Rabelo. O barco, então, perdeu o controle. O policial usou o braço saudável para evitar um acidente, mas a pequena embarcação bateu contra a margem. "Por sorte, o barco não virou", diz. Na água, Rabelo seria alvo fácil. Para piorar, ele poderia ser mordido por piranhas instigadas por seu sangue.

O tiroteio continuou com os reforços policiais. O tenente nadou e se refugiou na margem. Até hoje, aqueles dias são lembrados como uma verdadeira história de guerra.

Nascido em Belo Horizonte, Rabelo é conhecido entre moradores da cidade de Corumbá, ribeirinhos, fazendeiros, indígenas, artistas e engravatados de Campo Grande, Brasília, Rio de Janeiro e São Paulo.

O coronel comandou o primeiro grupo da polícia ambiental em Mato Grosso do Sul e, desde os anos 1980, quando estourou a guerra contra os coureiros, é guia de ambientalistas, cientistas e jornalistas no Pantanal. Entre os artistas-amigos, estão o fotógrafo Sebastião Salgado e os músicos Luan Santana, Almir Sater e Sérgio Reis.

No final dos anos 1980, Rabelo guiou a equipe de Benedito Ruy Barbosa, que escrevia uma nova novela chamada "Pantanal". "No meio da gravação, chegou uma denúncia de que um grupo de coureiros estava matando jacarés próximos ao local de gravação. Ele e a equipe acabaram saindo de cena para ir atrás dos sujeitos", lembra a roteirista Edmara Barbosa, roteirista e filha de Benedito Ruy Barbosa.

O trabalho de Rabelo, um contador de histórias habilidoso, inspirou Barbosa a escrever cenas do personagem Zé Leôncio. Na primeira versão da novela, o policial foi convidado para uma cena onde explica a importância dos jacarés. Os dois são parecidos: homens pantaneiros, obstinados, que cavalgam entre fazendas e rios. Ruy Barbosa e Rabelo são amigos até hoje.

Além dele, o policial também foi amigo do poeta Manoel de Barros, cujos livros ajudaram Juma a aprender a ler, na nova versão da novela Pantanal. Rabelo tem uma cópia autografada do escritor com dezenas de marcadores nas poesias favoritas, embora sejam desnecessários. Muitos poemas e versos foram decorados e recitados em várias conversas.

"O Manoel escreve que a importância das coisas não se mede com régua ou barômetro, mas pelo encantamento que provocam em nós", diz. "É uma lógica que encontrei no Pantanal".

Além do pai militar, os cavalos são as primeiras lembranças da infância entre tantas que levaram Rabelo a entrar para a polícia. Fascinado com os desfiles de 7 de setembro, entrou na cavalaria e treinou para ser um atirador habilidoso. Quando foi destacado como líder da primeira polícia ambiental do Pantanal, precisou aprender táticas de combate de guerrilha. Tinha 24 anos.

Nos anos 1980, os coureiros se escondiam na mata e usavam barcos sem motor para evitar o barulho. Em busca dos contrabandistas, os policiais observavam os urubus à espera dos jacarés mortos. Muitas aves eram baleadas por caçadores para apagar os rastros. Os militares tentavam evitar a anhuma, ave que canta estridente quando avista humanos.

"A gente fazia igual os coureiros: íamos a pé pelo mato ou entrávamos nos corixos d'água com cavalos", lembra o tenente-coronel Gersder Batista Ramos, baleado com um tiro de raspão na orelha em uma das operações. As missões duravam ao menos cinco dias, sem contato com a família. As informações eram anunciadas pelo rádio semanal, que contabilizava as baixas no Pantanal.

Entre os mortos, estava um soldado chamado Pedro Vital, que tomou um tiro e agonizou por seis horas até morrer a caminho da base médica instalada na Fazenda Rio Negro, em Aquidauana, usada como a casa do personagem Zé Leôncio na nova edição de "Pantanal", exibido pela Globo. Cerca de 8 policiais foram assassinados em mais de uma década de batalha contra os coureiros.

Internamente, os policiais alinhados a Rabelo eram chamados de rabelistas. Batista diz que o comandante era exigente com a conduta dos policiais, convocados para missões arriscadas. A fama do grupo crescia além do Mato Grosso do Sul. "Criou-se uma ciumeira", diz Batista. Os rabelistas afirmam terem sido alvo de perseguições internas e pressão de outros comandantes; Batista diz ter sido tachado como rabelista, retirado do Pantanal e transferido para Corumbá.

Enquanto isso, os coureiros foram se tornando cada vez mais sofisticados e agressivos. Eram financiados por contrabandistas poderosos, que traficavam o couro em aviões saídos do Paraguai e Bolívia. Além dos jacarés, começaram a matar ou a traficar onças, sucuris, ariranhas e araras para confecção de bolsas ou para traficantes de animais exóticos do exterior.

Por medo, as denúncias diminuíram. Sem prestar queixa, um fazendeiro afirmou ter sido obrigado a assistir à própria mulher ser violentada por coureiros, relataram os jornais da época. Os rumores em Corumbá também relataram a chacina de uma família inteira pelos coureiros.

A violência chegou aos ouvidos da ditadura militar, já em seus últimos anos, que anunciou operações da Polícia Federal e promessas de investimento que não eram cumpridas. Enquanto os coureiros possuíam aviões para agilizar o transporte, as forças policiais ainda reivindicavam helicópteros para a patrulha e alimentação.

A paranoia crescia. Policiais descarregavam metralhadoras em moitas onde suspeitavam da presença de coureiros, que sequer estavam ali. Agentes desconfiavam que fazendeiros estavam entre os chefes locais e abriam as porteiras para a matança de centenas de jacarés.

Os rabelistas, ou a PF, prendiam peões ou gerentes do esquema, que eram liberados após o pagamento de fiança. Era um jogo de gato e rato em um território alagado maior do que a Inglaterra. São 138 km² de Pantanal e mais de 60% do bioma está em Mato Grosso do Sul, onde o grupo de Rabelo atuou.

Do outro lado da fronteira, o coronel diz que as forças armadas do Paraguai eram coniventes e, ao mesmo tempo, ressentidas com as mortes de paraguaios pelos policiais brasileiros. "A gente quase começou a segunda guerra do Paraguai", lembra Rabelo.

Para descobrir o destino do contrabando, o policial Cesar "Paraguai" se infiltrou no país para obter informações que não eram repassadas aos brasileiros. Cesar tirava proveito das feições indígenas e de falar guarani, idioma aprendido com a mãe paraguaia. Despercebido, identificou couros e animais traficados em Concepción e Assunção, no Paraguai, e enviados para traficantes e para virar roupa nos Estados Unidos, França e Japão.

No Pantanal, Cesar seguia pistas de amantes e ribeirinhos aliciados para chegar até esconderijos e chefões. "Porra, a gente sofria. Mas quando você trabalha no Pantanal, você se cansa fisicamente, mas no meio daquela floresta, daquela água, com os pássaros? Parece que você não envelhece", diz.

Quando foi guia de Ruy Barbosa, Rabelo já tinha sequelas na mão causadas pelo disparo que, por sorte, errou sua cabeça. O policial se tratou em hospitais de São Paulo, com longas sessões de fisioterapia e algumas cirurgias. Os comandantes queriam aposentá-lo, o que também iria arrefecer os rabelistas.

Rabelo exigiu ser testado para retornar à função. Natação. Flexões. Corrida. Barra fixa. As provas eram feitas com uma mão só, mas ainda faltava retomar às aulas de tiro. "Como você vai atirar?", perguntou um comandante. "O tiro pegou na direita. Eu atiro com a esquerda", respondeu o coronel.

Com os anos, o coronel tornou-se um articulador pragmático. Ele afirma que, sem ajuda de políticos e empresários, teria dificuldades para liderar projetos ambientais. "É uma pessoa extremamente habilidosa no estabelecimento de parcerias", diz o ambientalista Clóvis Borges.

Nos anos 2000, Rabelo fundou o Instituto Homem Pantaneiro (IHP) e iniciou um projeto grandioso: a criação de um corredor com milhares de hectares sob os cuidados da ONG. Ele comprou terras, as uniu a fazendas e instituições da região que, por fim, foram conectadas a áreas de conservação do governo. No total, são 300 mil hectares sob proteção do Instituto - um trabalho feito sem revólveres, mas com biólogos e veterinários submetidos às mesmas entrevistas exigentes do coronel.

As alianças e doações são feitas por pessoas comuns, grandes artistas e empresas renomadas. Houve alianças que, apesar de bem-sucedidas, foram fechadas com personagens que vieram à debacle anos depois. É o caso do ex-bilionário Eike Batista, preso em 2017 na Lava Jato, e de Delcídio do Amaral, natural de Corumbá, senador por Mato Grosso do Sul que teve destaque em Brasília até ser preso e cassado.

Rabelo foi citado em uma delação premiada feita ao Ministério Público Federal e negou participação em um esquema envolvendo dinheiro de campanha para Delcídio. Segundo ele, em 2015 já estava afastado para sempre de Brasília, onde foi assessor de Delcídio nos anos 2000. "O bom militar sabe a hora de sair", diz.

Desde 2020 Rabelo esteve mais ocupado com os incêndios que mataram 17 milhões de animais no Pantanal. O maior desastre ambiental do bioma pegou o ambientalista desprevenido e mais de 90% das terras do instituto foram queimadas. O assunto ainda o comove. Desde então, além de usar câmeras e inteligência artificial contra o fogo, passou a monitorar onças-pintadas, à revelia de fazendeiros que torcem o nariz para protegê-las.

As operações dos rabelistas no passado enfraqueceram e encareceram o trabalho dos coureiros. Na época, ONGs ambientais pressionaram países e indústrias contra o couro animal e a era dos coureiros chegou ao fim.

Rabelo se preocupa quando assiste ao novo Zé Leôncio, interpretado por Renato Góes e Marcos Palmeira. Será que o homem pantaneiro, com chapéu, botas, cavalos e protetor da natureza pode acabar? É o maior temor do coronel. Segundo ele, novas máquinas e empresários estão chegando ao Pantanal e podem fazer desaparecer a postura eternizada na ficção de Benedito Ruy Barbosa e nos poemas de Manoel de Barros.

Ele também se orgulha do que vê. Nas próprias contas, mais de 1 bilhão de pessoas assistiram às duas versões da novela em 50 países. Os rabelistas, porém, costumam dizer que a ação contra os coureiros é "uma guerra que o mundo não viu". Hoje, estudos indicam a presença de milhares de jacarés no Pantanal, onde há a maior concentração das espécies no planeta.

Nessa guerra, ao menos 8 policiais e dezenas de coureiros foram mortos. Oficialmente, um paraguaio morreu no tiroteio que matou o técnico ambiental e feriu Rabelo, embora relatos falem em 18 paraguaios mortos. "Um policial que morreu recentemente costumava me dizer: eu fui herói sem medalha", diz Rabelo.

Enquanto puder, o policial com 62 anos vai continuar a patrulha dos milhares de quilômetros de terra e água do Pantanal. "Parece que a fala de nossos vaqueiros tem consoantes líquidas e carrega de umidez as suas palavras", diz. Os versos são de Manoel de Barros. "Penso que os homens desse lugar são a continuação dessas águas... Preciso falar mais nada porque isso aqui é do caralho, né?"

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