Um mundo sem fome

Para economista, pandemia sacudiu acomodação social em relação à desigualdade

Luciana Quintão Especial para Ecoa

[Alimentação]

Durante a pandemia, a doação de alimentos deu um salto. Se de um lado temos a má administração do governo, de outro a sociedade respondeu rapidamente e uniu forças em solidariedade aos mais vulneráveis. A prática da inteligência social é a resposta para uma sociedade mais evoluída e sem fome e o melhor caminho para nos levar a uma nação mais justa.

Ecoa traz na série O Mundo Pós-Covid-19 um grupo de especialistas que, em depoimento a jornalista Mariana Castro, contam como imaginam uma civilização pós-pandemia a partir de temas como Tecnologia, Trabalho, Educação, Ciência, Alimentação, Cidades, Novas Economias, Espiritualidade, Meio Ambiente e Comportamento. Além de desenhar possíveis cenários para o que vem depois, eles falam sobre como as escolhas de agora podem contribuir para a construção de um futuro mais desejável.

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Está clara a dificuldade de isolamento social para quem vive nas favelas, assim como salta aos olhos a quantidade de pessoas sem emprego e sem seguridade social. Todas essas carências, ou fomes, já existiam antes da pandemia e estão crescendo à luz do sol e debaixo de nossas vistas.

Teimamos em costurar a realidade com uma linha de falta de organização social e indiferença há muito tempo, o que tem nos levado a violências enormes e descabidas retratadas pelas estatísticas brasileiras. Na área de alimentação, podemos dizer que o Brasil nunca se afastou de verdade do Mapa da Fome. Basta divulgar o número de pessoas que já viviam em insegurança alimentar antes da pandemia: 52 milhões de brasileiros abaixo da linha de pobreza, sem saber se terão o que comer na próxima refeição. Somos o sétimo na lista de países mais desiguais do mundo.

Ao mesmo tempo, desperdiçamos recursos que não cumprem sua função de construção de riquezas, de formação de cidadãos saudáveis, da preservação do meio ambiente, de criar boa infraestrutura e de gerar contas do governo superavitárias, o que é fundamental para a promoção de investimentos sociais. Esses investimentos sociais deveriam, pelo menos, fornecer as necessidades básicas a todos os cidadãos.

Mas a realidade nos mostra que, como consequência da má administração pública, temos carência de saúde, moradia, educação e propagação da violência, condição que mantém as várias fomes do país. A perpetuação de várias fomes também é fruto da acomodação de grande parte da sociedade.

Mas a pandemia parece ter dado uma sacudida nessa acomodação. Vimos uma resposta rápida dos cidadãos, que uniram forças em solidariedade, reconhecendo e assumindo o seu papel de poder. Em São Paulo, só em abril, saímos de uma média de 40 toneladas de alimentos doados para 1.250. De 22.500 mil beneficiados saltamos para 300 mil. Muitas outras redes estão sendo formadas e considero este exercício um divisor de águas - antes e depois pandemia.

Somos seres inteligentes, mas muitas vezes esquecemos de usar nossa inteligência em prol da sociedade. Esquecemos de garantir os direitos de todos e do que realmente importa. Esquecemos de cuidar e preservar, educar e desenvolver, demonstrando uma grande desinteligência que sempre cobra o seu preço. A prática da inteligência social é a resposta para uma sociedade mais evoluída e sem fome(s), devendo ser matéria obrigatória de reflexão principalmente neste momento de crise. Inteligência social é o uso da nossa inteligência para promover o melhor resultado para o coletivo, para promover o equilíbrio social, político e econômico, é cada um assumir o seu papel.

É desde ter leis que realmente sejam úteis, como A Lei do Bom Samaritano - que impulsiona a doação de alimentos - a leis que combatem o desperdício de alimentos. Inteligência social significa cuidarmos do nosso próprio lixo. É tanta comida sendo jogada fora que se o desperdício de alimentos fosse um país, ele seria o terceiro maior emissor de efeitos de gás estufa do mundo!

Comida jogada fora, além de poluir e acabar com o meio ambiente, exclui milhões de pessoas do sistema social, diminui a produtividade e aumenta os gastos com a saúde. A pergunta que devemos nos fazer é como se tem fome em um país que está entre os maiores produtores de alimentos do mundo? A resposta é uma só: falta de inteligência social.

Esta pandemia está servindo para evidenciar nossas fraquezas enquanto organização social e nos lembrar que devemos fazer jus à nossa inteligência construindo nações mais justas e responsáveis. Vamos relembrar que sociedade significa "associação amistosa com os outros", ou seja, seres que vivem em estado gregário e em colaboração.

Que todas as ciências se curvem a esta verdade e aprendam a trabalhar juntas por um bem maior, uma vez que estamos todos interconectados. Devemos entender que são as nossas ações, ou omissões, que nos levam para o sucesso ou fracasso social e optar pela solução adequada, capaz de eliminar assim as várias fomes do país.

  • Luciana Chinaglia Quintão

    É economista e empreendedora social. Em 1998, fundou a ONG Banco de Alimentos, que atua com o objetivo de minimizar os efeitos da fome e combater o desperdício de alimentos. É autora do livro ?Inteligência Social?.

    Imagem: Divulgação

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Há dois legados para a educação: desistir da educação pública como componente da sociedade democrática saudável, e pensá-la como projeto de país.

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