Uma nova humanidade

Para líder indígena, esperança de futuro melhor está na entrega ao presente, na disposição de viver o agora

Ailton Krenak Especial para Ecoa

[Espiritualidade e natureza]

A pausa involuntária nos dá a chance de assumir nossa interdependência em relação a tudo que é vivo e a parar de aliciar nossas crianças a um sistema danoso ao planeta. Muita gente diz que gostaria de estar no mato nesse momento de pandemia. Grandes mudanças não acontecem de uma hora para outra, mas podemos escolher romper com o modelo de vida que nos trouxe até aqui.

Ecoa traz na série O Mundo Pós-Covid-19 um grupo de especialistas que, em depoimento a jornalista Mariana Castro, contam como imaginam uma civilização pós-pandemia a partir de temas como Tecnologia e afetividade, Trabalho, Educação, Ciência, Alimentação, Cidades, Novas Economias, Espiritualidade, Meio Ambiente e Comportamento. Além de desenhar possíveis cenários para o que vem depois, eles falam sobre como as escolhas de agora podem contribuir para a construção de um futuro mais desejável.

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A ideia de ética, moral e solidariedade que era emoldurada por valores humanos está sendo (re) avalidada. Aí se encontra nossa chance de mudar.

Tenho conversado com várias pessoas e ouço muita gente dizer: "Eu queria estar no mato agora". A ideia de que podemos pensar a vida a partir das cidades foi colocada em xeque. Não é uma aposta de que vamos deixar as cidades. Mas reconheço uma oportunidade de reavaliar nossa dependência em relação a um velho padrão de assentamento urbano.

A promessa de viver nesses espaços passa pela crença de que uma superestrutura pode fornecer tudo que um indivíduo precisa: comida, moradia, trabalho, remédio, assistência. Essa promessa foi tão projetada a ponto de as pessoas correrem para esses grandes centros. Mas o que estamos vendo é uma legião de seres humanos abandonados, sem nunca terem usufruído dessa promessa.

Se essa condição de isolamento durar mais tempo por conta da Covid-19, outras questões vão emergir. As crianças estão em casa, sem frequentar as aulas. Bem antes da quarentena, o movimento liderado pela ativista Greta Thunberg já reunia estudantes em protesto contra o aquecimento global. São crianças e jovens dizendo que o mundo adulto está no rumo errado e que elas não querem continuar assim.

Depois que a pandemia passar, vamos continuar aliciando nossas crianças para um sistema danoso ao ecossistema que habitamos? Um sistema que compromete a perspectiva de termos água para beber? Vamos escolher reproduzir isso? Há algumas alternativas a essa educação convencional, como a Schumacher School e a Gaya. Mas essa pode ser a hora de repensar tudo no que diz respeito à educação.

Não acredito que os poderosos vão passar por essa experiência e acordar um dia de manhã querendo mudar. Os grandes investidores, os bilionários, não são eles os agentes da mudança. Mas os conceitos de expansão econômica, de desenvolvimento e progresso não são mais garantia de felicidade. Quem tem sensibilidade não precisa estar em um lugar de poder para trazer a mudança.

Há um conjunto de fatores errados e concatenados que podem descarrilhar se soubermos olhar para o presente como uma oportunidade de ruptura com o padrão de vida que nos trouxe até aqui. Ninguém sabe como vamos sair desse lugar em que estamos - e ninguém quer ficar preso em casa, pedindo delivery. Não precisa ser assim.

Mas se, ao passar por uma experiência dura como essa, tivermos sabedoria para aproveitar o impacto dessa pausa involuntária e mudar paradigmas já cristalizados, seremos capazes de pensar outro mundo. Um mundo em que a terra seja entendida como um organismo vivo e não como algo imaginado.

Os agentes de mudança são as novas gerações. Não as que ainda virão, mas as crianças que já estão aqui, com quatro, cinco anos. São elas que irão trazer a mudança, assim que puderem influenciar na escolha desse mundo que queremos. Isso me enche de esperança. Não no sentido futurista, mas ao pensar no aqui, no agora.

Esse pensamento sobre o presente tem a ver com se jogar, se entregar para o novo e parar de vender o amanhã. Diz respeito a uma disposição em relação à vida, a ter fé e acreditar que é dentro da vida que evoluímos. Evolução tem a ver com dança, com esse movimento que vem de dentro.

O pensamento crítico racionalista foi se distanciando demais da vida ao mesmo tempo em que o lugar que entendemos como espiritualidade foi se aproximando da manipulação por religiões, seitas. Mas há cientistas como o Antonio Nobre, por exemplo, que chegam a uma conferência falando que as árvores são generosas umas com as outras, que elas têm uma rede. Ao mostrar evidências disso, chegamos no que entendo como espiritualidade - essa sensação de experimentar o contato com o que está ao seu redor, com uma montanha, o rio, a floresta, um pássaro.

Acredito na espiritualidade como a interdependência de tudo o que é vivo. A mesma vida que está em mim está na pedra, no rio, na árvore. Isso não tira nada da minha singularidade. Pelo contrário: traz expansão dos sentidos. Chegar a essa relação com a natureza não é um aprendizado que acontece como virar a página de um livro, mas aponta para um caminho oposto ao voltar ao normal e sugere uma possibilidade de criarmos uma nova narrativa sobre a humanidade.

  • Ailton Krenak

    É líder indígena, ambientalista e autor. Escreveu o livro "Ideias para adiar o fim do mundo", da Ed. Companhia das Letras, 2019

    Imagem: Divulgação

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No podcast Geração P, você pode acompanhar mais entrevistas, análises, bate-papos e histórias sobre os impactos da pandemia na sociedade, economia e cultura.

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