Cada pessoa viveu o desamparo desde seus corpos e respectivos privilégios ou vulnerabilidades da sobrevivência — mulheres com trabalhos essenciais, como as caixas de supermercado ou cuidadoras de idosos em asilos, mantiveram suas rotinas de vida com agravantes de risco e necessidades domésticas de cuidado pelas crianças fora da escola; mulheres da elite encastelaram-se no teletrabalho, descreveram seus aprendizados para a rotina doméstica, algumas exibiram suas mãos destreinadas para a faxina como um troféu de sobrevivência. Eu poderia falar dos homens, mas prefiro pensar no desconcerto do desamparo vivido pelas mulheres, pois é de nós que a efervescência da criação pode ser mais transformadora. Nem toda mulher se entende como feminista, e nem espero que a pandemia provoque um arrebatamento de consciência.
Esse é meu ponto de partida e de chegada: reconheço um potencial produtivo na desorganização da vida social, mas a transformação feminista não é uma consequência espontânea do vivido pela pandemia. A experiência de confinar-se à casa, separar-se de familiares, vestir máscara para sair à rua ou ter medo de adoecer provoca um estranhamento do que descreveríamos como "vida normal", isto é, a naturalização das normas sociais.
Dos mais privilegiados aos mais vulneráveis socialmente, os efeitos da pandemia na vida social impactaram como nos relacionamos, quem somos e como (des)humanizamos uns aos outros. O desamparo é como uma ferida ética que pode nos esfoliar a pele por um tempo longo, ou pode ser esquecida pelas vantagens dos privilégios que nos impõem antolhos para o real. Importa saber o que faremos com essa ferida — a mim, interessa aprofundar a ferida de tal maneira que os valores feministas sejam parte da ética da vida comum para uma política justa para os corpos.